Opinião

Quanto de conspirações é necessário para caracterizar o crime de tentativa de golpe de Estado?

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19 de fevereiro de 2024, 6h31

A distinção entre os planos político e jurídico, necessária na análise da tipicidade da conduta de crime de fundo político, como previsto no artigo 359-M do Código Penal, é tarefa difícil se não se dispõe de todos os elementos e nuances de fato no momento da avaliação.

Feita a ressalva, cumpriria indagar se, com o descobrimento das imagens da reunião ocorrida em julho de 2022, exibidas pela televisão, na qual o ex-presidente e os integrantes da alta cúpula do governo planejavam o golpe, pode-se falar que cometeram, em tese, o crime de golpe de Estado?

Dispõe o artigo 359-M:

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena — reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.

Embora o tipo penal não exija ação de grupos organizados, é certo que só ações dotadas de algum poder de infundir medo por violência ou grave ameaça poderia representar perigo ao governo.

É pressuposto do crime que o governo que se queira depor esteja legitimamente constituído, isto é, regularmente investido, no exercício das funções. E em julho de 2022, seis meses antes da eleição e posse do governo que venceu as eleições, não havia governo a ser deposto.

Daí a tese de que, não tendo havido qualquer ação material consistente em violência ou grave ameaça por parte dos participantes daquela reunião, tudo não teria passado de cogitação/preparação para um futuro e hipotético golpe, que sequer poderia ser tentado por falta de objeto.

A tese exige a análise de duas questões distintas: a primeira consistente em saber qual o momento da execução do crime; e a segunda se as ameaças e conspirações, somadas aos fatos apurados até o presente momento, afetam o bem jurídico protegido pelo direito penal.

Sobre a primeira questão, observa-se que o crime de que fala tem o seu momento consumativo antecipado para fase inicial, punindo a própria tentativa. A lei penal equipara os comportamentos consistentes em dar golpe de Estado e tentar dar golpe de Estado.

Antecipação punitiva de um crime
As chamadas sociedades do risco, no enfrentamento da perigosidade de comportamentos excepcionalmente danosos para a sociedade, cada vez mais serve-se da técnica de adiantamento das barreiras para proteção de bens jurídicos valiosos, visando a surpreender e punir certas ações em estádios anteriores à lesão ou à própria concretização do perigo.

As especificidades dos chamados crimes coletivos, que afetam bens jurídicos supraindividuais, obrigam o legislador a uma reengenharia que seja capaz de punir os fenômenos delitivos em suas fases matinais, priorizando a finalidade preventiva do direito penal.

Divulgação

Exemplos dessa antecipação punitiva ocorre nos crimes de terrorismo, associação e organização criminosa etc., nos quais a simples reunião ou permanência dos agentes no ente criminoso constitui uma perturbação externa à democracia e à paz e à segurança cidadã, justificando a tipificação.

A antecipação do momento consumativo de certos crimes à fase da tentativa é manifestação dessa política criminal. Em crimes coletivos, em que os agentes se associam unicamente para cometer graves crimes, esperar que atuem para só então fixar o momento da consumação seria consentir com a realização de ações em si mesmas desvaloradas, que geram preocupante intranquilidade social.

A respeito, leciona Munhoz Conde:

“Geralmente, nos tipos delitivos de resultado, a consumação se produz no momento da produção do resultado lesivo (p. ex. nos crimes contra a vida: com a morte do sujeito passivo). Sem embargo, o legislador pode adiantar a consumação a um momento anterior. Assim, nos delitos de consumação antecipada (delitos de intenção, delitos de perigo), o legislador não espera a que se produza o resultado lesivo que com a proibição penal se trata de evitar, senão que declara já consumado o fato num momento anterior. Assim, por exemplo, no art. 472 (do Código Penal Espanhol), o delito de rebelião se consuma desde o momento em que se produz um levantamento público e violento para alcançar determinados fins (derrogar ou suspender a Constituição, destituir o Rei, impedir a livre celebração de eleições, dissolver as Cortes, etc.); não é necessário conseguir ditos fins, pois, como a história demonstra, quando os rebeldes conseguem seus fins, a rebelião triunfou e se converteram em novos donos do poder político.” (Munhoz Conde, Francisco y Garcia Aran, Mercedes, Derecho Penal, Parte General, Sétima edicion, Tiran Lo Blanch, Valencia, 2007, p. 410).

O crime de tentativa de golpe de estado, como o próprio nome já diz, não sanciona o resultado golpista; a lei pune a simples tentativa de praticá-lo por meio de violência ou grave ameaça. É espécie do chamado tipo de empreendimento, no qual a causa de diminuição da pena, inerente à tentativa, desaparece e não se aplica a eximente da desistência voluntária (cfr. Roxin, Claus, Derecho Penal, Parte General, 2ª ed., Tomo I, trad. Diego Luzón Pena, Tompson Civitas, Madrid, 1997, p. 336).

A lei penal não espera os agentes tomarem o poder, com todas as consequências trágicas que isso costuma provocar. Estrategicamente antecipa as barreiras de punição ao início das ações a fim de impedir o resultado lesivo, autorizando a atuação dos mecanismos de persecução penal para reprimir o intento de sublevação.

Assim, a resposta quanto ao início de execução do crime depende do objeto de análise. Se se examina a reunião de julho de 2022, exclusivamente, é plausível a compreensão de que, por mais evidentes que fosse a intenção declarada e repetida, como os agentes não puseram em prática suas ações antes das eleições, não chegaram a ultrapassar a fase de cogitação.

Outra, contudo, será a resposta se o referido evento é visto como parte dos diversos atos no processo de preparação, que se iniciou antes da mencionada reunião, passou por episódios violentos ocorridos no final do ano de 2022, por ocasião da posse do governo junto ao TSE, com a invasão da sede da Polícia Federal e a tentativa de explosão de bomba no aeroporto de Brasília, e culminou com a violenta invasão e depredação das sedes dos três poderes em 08 de janeiro de 2023.

Golpe de Estado demanda tempo e organização
Há sobradas razões para uma visão realística do problema.

Um golpe de Estado, como a experiência demonstra, não é algo que se organiza e executa em curto espaço de tempo. Trata-se de um processo que deve contar com diversos atores organizados, liderança, planejamento, estratégias de ação, meios materiais, pessoas operacionalmente engajadas e, na maioria das vezes, apoio popular, mesmo quando gestado por quem domina as estruturas do poder.

Um fenômeno complexo como o de se cuida, portanto, não deve ser examinado de maneira fragmentada. O foco da análise há de capturar suas distintas etapas, desde a concepção, passando pelas fases de organização até a execução propriamente dita, averiguando o possível fio de conexão de sentido entre elas e os agentes, de modo a identificar globalmente a realidade (materialidade) e a autoria dos delitos.

No caso concreto, compulsando os autos dos processos em julgamento no STF, que apuram os crimes praticados em 08/01 — APs 1.060, 1.067, 1.065, 1.090, 1.091, 1.109, 1.172, 1.183, 1.413, 1.416, 1.502 e 1.498 — aparecem com muita clareza o encadeamento lógico e cronológico das diversas etapas do processo que conduziu ao episódio de 8 de janeiro. Ficou amplamente comprovado que o violento assalto à sede dos três poderes foi organizado e executado com planejamento e com inequívoco apoio/omissão de autoridades militares encarregadas da segurança e das próprias forças armadas.

Os que se dispuserem a ler com atenção os acórdãos dificilmente dirão que “tudo aquilo não passou de uma baderna praticada por vândalos”.  Mas ainda assim se poderia indagar: o ex-presidente poderia ser responsabilizado penalmente por aqueles crimes se, comprovadamente, não esteve presente nesses eventos?

O cidadão mediano sabe que mandantes, autores intelectuais, não precisam estar presentes à cena do crime. “Autor intelectual é quem, sem executar diretamente a conduta típica, possui, não obstante, o domínio dela, porque a planificou e organizou sua realização, podendo, por conseguinte, decidir sobre sua interrupção, modificação ou consumação” (Enrique Cury Urzúa, Derecho Penal, Parte General, Editorial Jurídica de Chile, Santiago, 1985, p. 245, apud Silva Franco, Alberto e Stoco, Rui, orgs. CP Comentado, 8ª ed. RT, São Paulo, 2007, p.227).

Mas é possível seguir perguntando: sob que fundamento se poderia dizer que o ex-presidente e seus assessores diretos tinham domínio sobre a situação? Bem, elucidar em detalhes como era esse domínio exige exame das provas no momento oportuno, pelas autoridades competentes.

De todo modo, deve-se recordar que o artigo 13, caput, do Código Penal acolheu a teoria da equivalência das condições ou conditio sine qua non, ao prever que “considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.  A resposta deve-se buscar, então, no referido processo de golpe, não no dia 08 de janeiro.

Declarações complicam ex-presidente e integrantes da alta cúpula
A menos que se pudesse isolar os fatos criminosos comprovados, desvinculando-os completamente dos acontecimentos anteriores — os diversos pronunciamentos do ex-presidente e de seus correligionários, ministros e militares mais próximos, sustentando que haveria fraude eleitoral, estimulando o golpe e mantendo viva a expectativa mesmo após as eleições, como retratavam os cartazes exibidos pelos acampados às portas dos quarteis durante meses e mantidos ali por decisão dos comandantes militares – esses acontecimentos são a causa determinante da invasão da sede dos três poderes.

Sem eles, não teria havido esse triste espetáculo na história do Brasil.

Os réus condenados atuaram, na sua maioria, no âmbito de uma associação criminosa armada (CP, artigo 288, Par. Único) e cometeram os crimes de atentado violento ao estado democrático de direito (CP artigo 359 L), golpe de Estado (CP artigo 359 M), dano ao patrimônio público (CP artigo 163, parágrafo Único, I, II, III e IV) e crimes ambientais (artigo 62, I, da Lei 9.605/98).

O crime de associação criminosa caracteriza-se por autoria múltipla, que prescinde da imediata identificação dos agentes, bastando comprovação do vínculo associativo de três ou mais pessoas (RHC176370), crime formal que se consuma no momento associativo, não no da prática dos crimes fim.

E nada importa que apenas alguns executaram atos materiais.

O STF declarou textualmente: Os extremistas buscavam gerar o caos para obrigar as Forças Armadas, ante a interpretação deturpada do artigo 142 da Constituição e do Decreto 3.897/2001, na edição de decreto para a garantia da lei e da ordem, com a assunção das funções dos poderes constituídos. Portanto, o insuflamento visava tanto à abolição violenta do Estado democrático de Direito, quanto à deposição de governo legitimamente eleito, ou golpe de Estado, fato que denota desígnio criminoso autônomo na mesma empreitada criminosa. (fls. 54-AP 1.091/DF).

Os crimes resultaram, inequivocamente, de um comprovado processo de incitação pública por parte dos interessados. Condenados os executores materiais dos delitos, a tarefa subsequente será identificar todos os que, de qualquer modo, concorreram para os crimes, em particular aqueles que determinaram e instigaram — fizeram nascer a ideia ou reforçaram a decisão preexistente da prática criminosa.

A pesquisa nos meios de comunicação dá conta de que já em 2021 o ex-presidente fazia ameaças de que não haveria eleições em 2022 sem o voto impresso. A chamada minuta do golpe — encontrada na casa do ex-ministro Anderson Torres e que, segundo as últimas notícias, passara por ajustes mesmo após as eleições — era a parte visível das promessas feita aos radicais de que seria decretada a GLO — Garantia da Lei e da Ordem e a prisão de ministros do STF, mantendo-se o ex-presidente no poder.

Felizmente, ao que parece faltara apenas apoio efetivo e institucional das Forças Armadas!

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça do MP-MT aposentado, mestre em Direito pela Unesp e doutor em Direito Constitucional pela Universidad Complutense de Madri (Espanha).

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