Opinião

Lei contra o abuso de autoridade e o conceito de dia no processo penal

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15 de fevereiro de 2024, 16h18

É cediço que a lei contra o abuso de autoridade (Lei nº 13.869/19) provocou profundos impactos na atuação das autoridades públicas brasileiras, em especial no tocante à atividade policial, tanto em função das diversas condutas que passaram a ser enquadradas como criminosas quanto em virtude do enrijecimento de pena para tantas outras que já encontravam previsão típica em nosso ordenamento jurídico. 

Dentre as diversas novidades ocasionadas pela nova redação legal, merece destaque a discussão inaugurada pelo teor do inciso III, do §1º, do artigo 22, segundo o qual incorrerá na pena de detenção, de um a quatro anos, além de multa, o indivíduo que cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h ou antes das 5h. 

Isso porque, como bem se sabe, até então eram aceitos no processo penal dois critérios distintos para se definir o conceito de dia: o cronológico — entre 8h e 18h — e o geográfico — do alvorecer ao entardecer, enquanto existente luz solar. 

É o que se depreende, a título de exemplo, dos entendimentos proferidos pelo egrégio TJ-SP e pelo STJ para aplicar a causa de aumento de pena contida no §1º do artigo 155 do Código Penal, dispositivo relacionado à prática de furto durante o “repouso noturno”. Veja-se. 

Pautando-se no critério temporal, são inúmeros os julgados reconhecendo o intervalo entre 5h e 6h como sendo período noturno. A título de exemplo, cita-se os seguintes:

(i) Apelação Criminal nº 0000110-22.2017.8.26.0319, de Relatoria do Desembargador Andrade Sampaio, julgada pela 09ª Câmara de Direito Criminal do TJSP em 23 de janeiro de 2020, analisando furto que teria ocorrido às 05h e 25min (cinco horas e vinte e cinco minutos);  

(ii) Apelação Criminal nº 1501795-52.2019.8.26.0599, de Relatoria do Desembargador Silmar Fernandes, julgada pela 09 ª Câmara de Direito Criminal do TJSP em 10 de dezembro de 2020, analisando furto que teria ocorrido às 05h (cinco horas); e 

(iii) AgRg no Habeas Corpus nº 674.534/MS, de Relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, julgado pela 5ª Turma do STJ 10 de agosto de 2021, analisando furto que teria ocorrido às 5h e 30 (cinco horas e trinta minutos).  

Não obstante, diversos casos que tratavam da pretensa ocorrência de furto cometido em horário incerto também foram resolvidos com a aplicação do aumento da pena em virtude do período noturno, de modo a comprovar que nem mesmo a incerteza sobre o horário da conduta poderia impedir a conclusão de que não se tratava de dia, em clara adoção do critério geográfico para solucionar a questão. Pois bem: 

(i) Apelação Criminal nº 0019805-66.2018.8.26.0564, de Relatoria da Desembargadora Fátima Gomez, julgada pela 9ª Câmara de Direito Criminal do TJSP 20 de março de 2021, fundamentando o aumento da pena no fato de que “o crime ocorreu durante o repouso noturno, pois é incontroverso que ocorreu durante a madrugada”;

(ii) Apelação Criminal nº 0019805-66.2018.8.26.0564, de Relatoria do Desembargador Alcides Malossi Junior, julgado pela 05ª Câmara de Direito Criminal do TJSP em 14 de janeiro de 2021, considerando se tratar de período noturno — ainda que, expressamente diante do não conhecimento do horário da conduta — pelo fato ter se dado “durante a noite”; e 

(iii) Habeas Corpus nº 498.428/SC, de Relatoria do Ministro Antônio Saldanha Palheiro, julgado pela 06ª Turma do STJ em 18 de fevereiro de 2021, enrijecendo-se a pena sob o pretexto de que a conduta teria sido praticada “entre as 5h e 6h, portanto durante o repouso noturno”.

Com a criação da figura delitiva acima referida (artigo 22, §1º, inciso III da Lei nº 13.869/19), contudo, passou a existir uma espécie de crime próprio de invasão de domicílio para indivíduos que, no exercício da função pública e amparados por determinação judicial, adentram residência particular no horário específico supramencionado, desde que não se trate de hipótese de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro.

Surgiram, à época, entendimentos doutrinários conflitantes sobre os impactos que esta figura delitiva causaria nas limitações temporais acerca do cumprimento de mandados de busca e apreensão em residências particulares, sendo eles: 

  • (i) a nova legislação teria atualizado o conceito de dia, passando a compreendê-lo como sendo o espaço temporal entre 21h e 5h. Logo, entradas domiciliares realizadas a partir das 18h, por exemplo, seriam lícitas — desde que antes das 21h —, o mesmo podendo ser dito para aquelas que se dessem entre 5h e 6h; outros, contudo, apoiavam o entendimento de que  
  • (ii) alteração alguma sofreu o que se entende por “dia” no âmbito do processo penal, sendo lícitos os cumprimentos de mandados de busca e apreensão — dentro das limitações do artigo 5º, XI, da Constituição — realizados apenas entre as 8h e 18h, ou na existência de luz solar, a depender do caso em concreto — ficando ressalvado, contudo, que o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar dentro dos horários estipulados no novo tipo penal configurariam o crime em comento. 

Celso Pitta (1946-2009) foi preso pela PF por volta das 5h da manhã em 2008, em casa, enquanto dormia. Foi flagrado pela imprensa ainda de pijamas e algemado

A questão foi — ou, ao menos até o presente o momento, parece ter sido — solucionada pela 6ª Turma do STJ. Vejamos. 

No âmbito da Ação Penal nº 1500317-85.2020.8.26.0627, os agentes policiais, munidos de mandado de busca e apreensão, adentraram em residência particular por volta das 5h30, conforme documentado nos autos por meio da juntada das imagens das câmeras de segurança do imóvel, rechaçando-se o horário documentado pelos agentes públicos no boletim de ocorrência lavrado: 6h. 

De proêmio, tanto em primeira instância (foro de Teodoro Sampaio/SP) quanto perante a 9ª Câmara de Direito Criminal do E. TJ-SP predominou o entendimento de que:

Com o advento da Lei nº 13.869/2019, estancou-se a celeuma acerca dos conceitos de ‘dia’ e ‘noite’ para a realização de busca domiciliar, estabelecendo-se como lícito o interregno entre as 05h e 21h (art. 22, § 1º, III)”.

A mesma linha de raciocínio foi inicialmente seguida no âmbito do Col. STJ por meio da análise da ministra Laurita Vaz, que, monocraticamente, ao negar provimento ao Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 168.319/SP, assim aduziu: 

“Ocorre que o Legislador ordinário, ao incluir na Lei de Abuso de Autoridade norma regulamentadora do art. 5.º, inciso XI, da Constituição da República, permitiu a realização de buscas e apreensões domiciliares a partir das 5h (cinco horas).”

Inclusive, na ocasião, fez-se referência a outro julgado sobre o tema, segundo o qual: 

O termo ‘dia’, presente no artigo 5º, XI, da Constituição da República, nunca foi objeto de consenso na doutrina. Há quem trabalhe com o critério físico (entre a aurora e o crepúsculo), outros que prefiram o critério cronológico (entre 6 e 18 h) e há também quem trabalhe com um critério misto (entre 6 e 18 h, desde que haja luminosidade). Atualmente, a Lei n. 13.869/2019 (Abuso de Autoridade) estipula a possibilidade de cumprimento dos mandados judiciais durante o período entre as 5h e 21h.”

Contudo, em sede de agravo regimental interposto contra a decisão monocrática supramencionada, os ministros da 6ª Turma do STJ seguiram o entendimento oposto, para anular a entrada domiciliar em questão, concordando com o voto-vista do ministro Rogerio Schietti Cruz, cuja interpretação foi acompanhada por Sebastião Reis Júnior, Antônio Saldanha Palheiro e Jesuíno Rissato (desembargador convocado do TJ-DF)

Na ocasião, ficou consignado que: 

“[…] o art. 22, III, da Lei n. 13.869/2019 não definiu os conceitos de “dia” e de “noite” para fins de cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar. O que ocorreu foi apenas a criminalização de uma conduta que representa violação tão significativa da proteção constitucional do domicílio a ponto de justificar a incidência excepcional do direito penal contra aqueles que a praticarem. É dizer, o fato de que o cumprimento de mandado de busca domiciliar entre 21h e 5h foi criminalizado não significa que a realização da diligência em qualquer outro horário seja plenamente lícita e válida para todos os fins.” 

Ainda em seu voto, o ministro relator se valeu da interpretação de outros dispositivos da própria lei em questão para fundamentar seu raciocínio. Veja-se:

A própria Lei de Abuso de Autoridade é repleta de exemplos que corroboram essa assertiva. Basta pensar no art. 9º, que tipifica a conduta de “Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. Extrai-se do dispositivo que, se a desconformidade for manifesta, pode haver crime, mas, mesmo se não o for, continua ilegal e passível de relaxamento a decisão que decreta medida de privação de liberdade em desconformidade com as hipóteses legais. Situação similar ocorre no art. 10, o qual dispõe que é crime “Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida […].

Assim, mesmo que realizada a diligência depois das 5h e antes das 21h, continua sendo ilegal e sujeito à sanção de nulidade cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar se for noite, embora não configure o crime de abuso de autoridade previsto no artigo 22, III, da Lei nº 13.869/2019.”

Desta forma, entende-se que o posicionamento em questão seria o mais adequado a prevalecer em nosso cenário jurídico, sendo certo que a criminalização do cumprimento de mandado de busca e apreensão após às 21h ou antes das 5h  não conduz, per si, à legalidade das entradas domiciliares promovidas entre 5h e 6h ou após as 18h — ainda que todo crime seja ilícito, nem todo ilícito corresponderá a um crime. 

Caso contrário, se assim o fosse, todos os demais julgados acima citados para fins de aplicação da causa de aumento de pena referente ao repouso no turno em crimes de furto deveriam, obrigatoriamente, serem objeto de revisão criminal para fins de se adequar a dosimetria da pena com base no “novo” entendimento jurisprudencial acerca do conceito de “dia” no processo penal. 

Graças ao brilhantismo do ministro Rogério Schietti Cruz, portanto, a segurança jurídica será preservada, restando aguardar quantos novos casos nesse exato sentido precisarão ser levados ao STJ até que o entendimento em questão seja fixado e respeitado.

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Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
Código de Processo Penal (1941). Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Lei de Abuso de Autoridade (2019). Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Habeas Corpus nº 674.534/MS, de Relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, julgado pela 5ª Turma em 10 de agosto de 2021.
Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 166.418/MG, de relatoria do Min. Ribeiro Dantas, julgado pela 5ª Turma do STJ, em 06 de setembro de 2022.
Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 168.319/SP, de relatoria do Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado pela 6ª Turma do STJ, em 05 de dezembro de 2023.
Habeas Corpus nº 498.428/SC, de Relatoria do Ministro Antônio Saldanha Palheiro, julgado pela 06ª Turma do STJ em 18 de fevereiro de 2021.
Recurso Em Habeas Corpus nº 168319/SP, julgado monocraticamente em 07 de julho de 2023, pela Min. Laurita Vaz.
ESTADO DE SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Criminal nº 0019805-66.2018.8.26.0564, de Relatoria da Desembargadora Fátima Gomez, julgada pela 09ª Câmara de Direito Criminal em 20 de março de 2021.
Apelação Criminal nº 1501795-52.2019.8.26.0599, de Relatoria do Desembargador Silmar Fernandes, julgada pela 09 ª Câmara de Direito Criminal, em 10 de dezembro de 2020.
Apelação Criminal nº Apelação Criminal nº 0019805-66.2018.8.26.0564, de Relatoria da Desembargadora Fátima Gomez, julgada pela 09ª Câmara de Direito Criminal, em 20 de março de 2021.
Apelação Criminal nº 0019805-66.2018.8.26.0564, de Relatoria do Desembargador Alcides Malossi Junior, julgado pela 05ª Câmara de Direito Criminal, em 14 de janeiro de 2021.
Habeas Corpus nº 2051137-84.2023.8.26.0000, de Relatoria do Desembargador Sérgio Coelho, julgado pela 09ª Câmara de Direito Criminal, em 27 de abril de 2023.

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