Jurisprudência do STF no 8 de Janeiro sobre investigados pela Polícia Federal
15 de fevereiro de 2024, 6h06
Foi deflagrada semana passada operação da Polícia Federal como desdobramento do inquérito dos atos antidemocráticos junto ao Supremo Tribunal Federal.
Dali promoveram-se prisões e buscas e apreensões à alta cúpula do governo Bolsonaro, incluindo o ex-presidente, os ex-chefes das Forças Armadas, ex-ministros e ex-assessores, tendo em vista a articulação de um golpe de estado durante o ano de 2022, ainda antes das eleições presidenciais.
A imprensa tem noticiado uma série de provas contundentes, como articulações em aplicativos de mensagens, diários com anotações, versões de uma minuta para decretação de estado de sítio e Garantia da Lei e da Ordem, e mesmo a filmagem de uma reunião com todos os investigados.
Diante disso, é de se conjecturar que ao menos algumas dessas personagens serão indiciadas, denunciadas, processadas e, enfim, condenadas por crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Assim, apresenta-se aqui a oportunidade para um exercício de especulação teórica acerca da tipificação e dosimetria da pena dessas condutas, vez que já há volumosa jurisprudência do STF acerca da aplicação da Lei nº 14.197/2021 em virtude da insurreição na Praça dos Três Poderes.
Uma comparação hipotética entre as sentenças do 8 de janeiro e os futuros eventuais casos da operação autonominada Tempus Veritatis é interessante para compreender melhor a interpretação que o STF tem dado a este tema.
Faticamente, ainda é controverso se os novos fatos que vieram à tona, e são anteriores às eleições e à posse do presidente Lula, são necessariamente conexos àquilo que ocorreu no começo de 2023, ou seja, se há a necessidade de conectar ambos os episódios e suas consequências [1].
De um prisma, isso legitima a operação em chegar aos articuladores da destruição da praça dos três poderes; de outro, cria a ideia de que teria havido resistência ao golpe por parte de alguns militares, e não uma “cegueira deliberada” a outros crimes da mesma natureza política, talvez mais graves dada a autoridade dos agentes envolvidos.
Essa contradição, em que de um lado se amplia o espectro de agentes, e de outro se estabelece um limite a esta ampliação, pode ter criado um paradoxo: a depender de como os fatos apresentados na operação da PF forem confirmados em processo, e a alta cúpula militar e do governo Bolsonaro for responsabilizada e condenada, é possível que estes tenham penas menores que as até então aplicadas aos autores materiais das cenas de destruição em Brasília.
Penas
As penas aplicadas aos insurretos do 8 de Janeiro têm tido como centro a cumulação dos crimes de (tentativa de) “abolição violenta do estado democrático de direito” e “golpe de estado” (artigos 359 L e M do Código Penal).
O primeiro, presente no artigo 359-L do CP, diz respeito a restringir ou impedir o funcionamento de ao menos um dos poderes constitucionais.
Já o segundo, constante no artigo 359-M do código, a derrubar governo democraticamente eleito. De fato, o quebra-quebra atrapalhou a normalidade de ação dos três poderes ao danificar severamente as sedes do Legislativo (em particular, do Senado), do Executivo e, principalmente, do Judiciário.
As apurações têm demonstrado que a finalidade não era o turbamento da ordem democrática apenas, mas um meio de forçar uma operação de GLO [2], colocar os militares com poder de polícia no Distrito Federal e, assim, concretizar a tal “intervenção militar”, alijando as instituições políticas do poder — um golpe, portanto.
Alexandre
No STF, o relator ministro Alexandre de Moraes tem reunido em torno de si maioria do plenário e das turmas com a tese de somar as penas dos crimes acima descritos, para ficarmos com os tipos que tratam frontalmente os episódios.
Duas posições minoritárias são importantes de serem explicitadas: André Mendonça entende não haver golpismo, e vota por aplicar apenas o artigo 359-L, como forma de responsabilizar a algazarra e destruição patrimonial; já Luís Barroso, apesar de entender os fatos como o relator, enxergando o golpismo dos agentes, entende haver progressão criminosa, sendo para ele a duplicidade típica indevida, e vota por aplicar o apenas o artigo 359-M, conduta e pena mais gravosa.
Diante disso, passando a analisar as condutas de envolvidos na Tempus Veritatis como Bolsonaro, Braga Neto, Heleno, Cid, Garnier etc., o fato de estas personagens não estarem presentes nos atos de Brasília, mas estarem vinculados apenas a uma tentativa anterior de golpe, faz com que elas provavelmente sejam processadas (e, talvez, condenadas) apenas pelo crime de golpe de estado.
Ainda sim pode haver dificuldades, tendo em vista que o tipo penal exige que a conduta seja cometida mediante violência e grave ameaça. Talvez essa particularidade possa forçar a necessidade de as acusações vincularem as reuniões e minutas golpistas como atos necessários para a ocorrência do 8 de janeiro, e daí as denúncias e sentenças conterem a cumulação dos artigos 359-L e 359-M, conforme o entendimento da maioria no STF.
De minha parte, assim que vi os atos ocorrerem, entendi tratar-se apenas da incidência da tentativa de abolição do estado democrático, tendo em vista a perturbação do livre exercício dos poderes constitucionais [3].
Posteriormente, com a publicação dos resultados das investigações, pareceu-me mais adequado o entendimento do ministro Barroso [4]. Diga-se, sobre isso, ser bastante controverso o quantum de pena que a suprema corte tem atribuído a personagens menores em nome de uma punição “exemplar” [5], assim como a proposição do governo em criar novas condutas ou agravar as penas daquelas já existentes contra o Estado democrático [6].
No caso das autoridades envolvidas na atual operação, se suas ações forem desvinculadas do 8 de janeiro, mesmo com eventuais agravantes as penas provavelmente não chegariam aos 17 anos como muitos dos autodeclarados “patriotas” que destruíram as sedes dos três poderes.
Importante lembrar que Bolsonaro vetou, e o Congresso ainda não analisou, trecho da lei de defesa do Estado democrático que previa majoração de pena para funcionários públicos civis e militares [7].
Isso tudo mostra que levar a sério tanto o enquadramento fático quanto a tipificação de quais crimes incidem sobre estes mesmo fatos faz diferença, concretamente, sobre quem recebe a pena em uma condenação.
Mas, também de forma simbólica, a correta aplicação da lei penal serve a demonstrar publicamente a proporção entre a gravidade das ações e a severidade das penas — no caso, punição mais severa a quem tem mais poderes e responsabilidades na defesa da democracia.
Nesse sentido, apenas por meio de um estudo acurado dos tipos será possível compreender a justiça ou o excesso na punição de atos que certamente merecem a devida atenção do legislador e do julgador [8].
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[1] Davi Tangerino & Rafael Mafei. Live sobre o 8 de janeiro. YouTube Davi Tangerino Direito Penal: https://www.youtube.com/watch?v=Mt8MubHSIBk.
[2] Diego Nunes. ”Garantia da Lei e da Ordem”, “comoção intestina” e outras vaguezas constitucionais na história dos regimes jurídicos da exceção. in: Leonardo Schmitt de Bem (Org.). Estudos de direito público: aspectos penais e processuais. Belo Horizonte: DPlacido, v. 1, 2018, p. 633-638: https://www.academia.edu/43228152/_Garantia_da_Lei_e_da_Ordem_comoção_intestina_e_outras_vaguezas_constitucionais_na_história_dos_regimes_jurídicos_da_exceção.
[3] Diego Nunes. Um evidente caso de insurreição em Brasília. Conjur, 09/01/2023: https://www.conjur.com.br/2023-jan-09/diego-nunes-evidente-insurreicao-brasilia/.
[4] Minha opinião em: Renata Galf. Decisão do STF contra réus do 8/1 é criticada por dupla punição e deve ser alvo de recursos. Folha de S. Paulo, 23/09/2023: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/decisao-do-stf-contra-reus-do-81-e-criticada-por-dupla-punicao-e-deve-ser-alvo-de-recursos.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa.
[5] Cf. o entendimento do prof. Davi Tangerino: Pauta Criminal, edição especial 8/1: https://open.spotify.com/episode/3ziKNNQTKFvwLNmsu52Rgu?.
[6] Diego Nunes. O Brasil deve endurecer as penas para crimes contra a democracia? NÃO: aperfeiçoar a legislação criminal não significa prever punições mais graves. Folha de S. Paulo, 29/07/2023: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/07/o-brasil-deve-endurecer-as-penas-para-crimes-contra-a-democracia-sim.shtml.
[7] Fernanda Marinela & Diego Nunes. As modificações na lei de segurança nacional. YouTube Em Pauta – Conselho Nacional do Ministério Público: https://www.youtube.com/watch?v=VFLqaEnfGJ8&list=PLDDzegVcMyr4bvgwW6qd2x2LUT143iqxL&index=7&t=84s.
[8] Diego Nunes (Org.). Crimes contra o Estado Democrático de Direito: comentários à Lei nº 14.197/2021. Belo Horizonte: DPlacido, 2023: https://editoradplacido.com.br/crimes-contra-o-estado-democratico-de-direito-comentarios-a-lei-n-14-1972021.
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