Populismo jurídico

Fim de saída temporária prejudica a função penal e não reduz criminalidade

Autor

14 de fevereiro de 2024, 17h55

Tramita em regime de urgência no Senado um projeto de lei que pretende acabar ou restringir com as saídas temporária de presos, relatado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) na Comissão de Segurança Pública da Casa. A discussão vem de 2011, quando a Câmara dos Deputados começou a tratar do tema.

Lei que tramita com urgência no Senado tenta acabar com as saídas temporárias de presos

Em 2022, os parlamentares aprovaram substitutivo do então deputado federal e relator do PL na Câmara Guilherme Derrite (PL-SP), hoje secretário de segurança pública do governo de São Paulo, para revogar artigos da Lei de Execução Penal. Além do fim da saída temporária, o projeto estipula que a progressão de regime passa a depender de exame criminológico e amplia a possibilidade de uso de tornozeleira eletrônica para mais situações.

No texto, foi acatada emenda do senador Sergio Moro (União Brasil-PR), em que fica definido que a saída temporária seria permitida apenas para quem frequenta “cursos profissionalizantes ou de ensino médio ou superior, vedada a concessão nos casos de crime hediondo ou praticado mediante violência ou grave ameaça contra a pessoa”. O teor do texto que pode ser aprovado, no entanto, ainda depende de deliberação no plenário.

Na justificativa apresentada por Moro, o senador afirma que a emenda visa manter a restrição da saída temporária, mas preservando “a possibilidade de estudo externo, desde que cumpridas as exigências já previstas na lei”. Em suma, a proposta de Moro limita o direito às saídas só para quem estuda, e proíbe a saída para estudos ou trabalho a quem foi condenado por crime hediondo ou por crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa.

Pela regra atual, presos em regime semiaberto têm direito a quatro saídas de 7 dias cada em datas específicas, normalmente coincidentes com feriados ou situações comemorativas, como Dia das Mães e Natal. O direito é aplicado a quem cumpriu pelo menos um sexto da pena, no caso de réus primários, e um quarto da pena, nos casos de reincidentes. Também é necessário o bom comportamento do preso, que é estipulado pelo diretor da penitenciária.

Para especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, o projeto subverte o conceito de pena no Direito Criminal, tendo em vista que sua função é reinserir o réu na sociedade após cometer determinado delito. Não só. Também não há constatação por nenhum estudo ou pesquisa de que esse tipo de redução de direitos influencia na diminuição da criminalidade.

A desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, que atuou em câmara criminal no Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma que as saídas são “no fundo, um mecanismo de garantia da segurança pública”. “Com essa possibilidade, a pessoa é avaliada para saber se pode seguir, ou não, no regime menos gravoso.”

“O nosso sistema de execução criminal é o da progressão, ou seja, a forma de cumprimento da pena vai graduando até o momento em que ficar comprovado que o indivíduo pode retornar para o convívio social, sem qualquer amarra. Nesta lógica, no chamado regime intermediário, temos esta previsão legal, que tem se mostrado eficaz para o retorno gradual.”

Levantamentos feitos por UOL, Folha de São Paulo e Agora nos últimos anos mostram que o percentual de não retorno após a saída temporária é baixo, variando entre 3% e 5%. Ou seja, para cada 100 presos que têm esse direito e deixam as prisões, apenas 5 não retornam.

“Extinguir a saída temporária não significa, em nenhum momento, a diminuição da criminalidade. Há muitos estudos que apontam que o índice de não-retorno é ínfimo. Na última saída temporária, apenas 4,3% não retornaram, e isso tem vários motivos. Alguns, de fato, não voltam de propósito, mas outros ficaram doentes ou não puderam voltar por circunstâncias que nós desconhecemos e que não são, necessariamente, a intenção de cometer crimes”, diz a advogada Jacqueline Valles, professora de Direito Penal.

Populismo penal
O desembargador Marcelo Semer ingressou em 2005 como juiz da 15ª Vara Criminal Central de Sâo Paulo e, hoje, faz parte da 3ª Câmara Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Ele classifica a proposta que tramita no Senado como “mais um episódio do triste e danoso populismo penal”.

Semer cita a lei que tipificou os crimes hediondos para argumentar que o endurecimento penal com traços políticos e partidários, posto que a pauta é sensível do ponto de eleitoral apenas fomenta o encarceramento, sem que haja benefício para a sociedade.

Para especialistas, revogar saída temporária é subverter o próprio conceito da pena no Direito

“Basta ver que em 1990, quando veio a LCH (Lei de Crimes Hediondos), tínhamos por volta de 90 mil presos. Pouco mais de trinta anos depois, o número de presos quase multiplicou por dez, sem trazer nenhum benefício à segurança. Ao contrário, desde lá foram criadas e fortalecidas as facções criminosas, que são as que mais lucram com o endurecimento penal e a profusão de jovens à disposição de seus exércitos. Isso é o que eu chamo de apagar fogo com querosene”, diz o desembargador.

O criminalista Fábio Chaim endossa o magistrado: “Extinguir a saída temporária é uma decisão de cunho político, que visa atender aos anseios de considerável parcela punitivista do eleitorado, que atribui o fenômeno criminal exclusivamente ao criminoso, deixando de considerar fatores estruturais e culturais que estimulam comportamentos desviantes na sociedade brasileira. As consequências deste punitivismo será, sem dúvida, a colheita de benefícios eleitorais para os autores e apoiadores do PL 2253/2022.”

Segundo Chaim, há ainda questões de cunho administrativo e orçamentário que não estão sendo devidamente discutidas. “Presos em regime semiaberto passam o dia fora do sistema carcerário, sem necessariamente voltar a cometer crime, período em que acabam por se manter por outros meios, deixando de onerar o Estado. Dinâmica similar ocorre durante a saída temporária, em que os presos que recebem o benefício e ficam fora por sete dias deixam de dar gasto ao poder público com saúde, alimentação, água e energia”, diz.

A Constituição e a restrição de direitos
À reportagem, Semer, Chaim e Valles alegam que o projeto é inconstitucional por violar uma série de princípios da Carta, em especial se a lei restringir totalmente as saídas dos presos. “Extinguir a saída temporária para todos, indistintamente, prejudica a própria função da pena e, novamente, afeta o princípio constitucional da individualização da pena”, diz a advogada.

Chaim cita que a própria LCH registrou um dispositivo inconstitucional por atentar contra a progressão de pena. “Cumpre destacar, também, o teor da Súmula Vinculante 26 do STF que reconhece a inconstitucionalidade de dispositivo anteriormente presente na Lei de Crimes Hediondos que determinava que delitos desta natureza deveriam ter a pena cumprida em regime integralmente fechado, ou seja, reconhecendo a importância da progressão de regime para o processo de ressocialização típico do sistema penal brasileiro.”

O constitucionalista Lenio Streck também afirma que a norma não é compatível com a Constituição brasileira. “Por duas razões: primeiro, é inconstitucional por ausência de prognose. Não há qualquer elemento objetivo que demonstre que o sistema ou a sociedade tirará proveito dessa alteração. Lei sem prognose é lei nula. Segundo, fere o principio da proibição de retrocesso social. Aquilo que já foi conquistado em termos de direitos e garantias em um estado democratico não pode ser retirado”, argumenta.

Marcelo Carita Correra, procurador-federal e mestre em Direito Penal pela PUC-SP, diz que a discussão é válida e que o projeto não viola prerrogativas constitucionais. Correra diz que a norma “pode servir como forma de proteção à sociedade”, embora ressalte que não há estudos mostrando que tal medida poderia reduzir o número de crimes. “Anote-se que essa alteração, ainda que válida e com efeitos positivos, está muito longe de ser uma medida eficaz de combate à criminalidade.”

“Em nosso entender, a melhor forma de limitação seria aquela realizada de forma detalhada diante de cada condenado. Mas, apesar de não ser a ideal, não há impedimento para que esse juízo de oportunidade seja feito pelo Legislativo, dentro do contexto do regime de cumprimento da pena.”

Clique aqui para ler o relatório de Flávio Bolsonaro sobre o PL 2.253

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!