Opinião

Mitigando o Estado de coisas inconstitucional: a prisão domiciliar humanitária

Autores

9 de fevereiro de 2024, 16h20

Nos primórdios do direito penal romano, o condenado por certos crimes era considerado um homo sacer, isto é, um “homem sagrado”. Ao contrário do que o termo possa sugerir a ouvidos contemporâneos, sacer era aquilo “colocado à parte” e a realidade de quem carregasse essa condição era absolutamente horripilante.

O condenado era visto como alguém impuro, indigno de ser sacrificado em homenagem aos deuses e que poderia ser morto por qualquer pessoa, sem que ela fosse considerada uma homicida. Ou seja, o condenado se tornava uma espécie de “não-pessoa”, tanto no plano espiritual como no terreno — sua vida não valia mais nada.

Desde a introjeção dos direitos humanos nos ordenamentos positivos do ocidente após a 2ª Guerra Mundial, seria um absurdo descrever um condenado nos mesmos termos desumanizantes da Roma antiga.

No ordenamento jurídico brasileiro não é diferente, e já se tornou um lugar comum nos manuais de execução penal afirmações do tipo: “o condenado perde apenas a liberdade, mas mantém todos os outros direitos”. Isso, é claro, encontra respaldo na Lei de Execução Penal, que estabelece no seu artigo 3º que:

“Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.”

Como decorrência lógica dessa premissa — que, diga-se, está em plena consonância com o princípio constitucional da dignidade humana —, o artigo 11 da Lei de Execuções Penais define as diferentes assistências que serão prestadas ao preso e ao egresso do sistema prisional. Dentre elas, destaca-se a assistência à saúde.

No artigo 14, essa assistência é detalhada, estabelecendo-se que:

“A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico.”

Em complemento, o §2º normatiza o que acontece nos casos em que o presídio carecer de meios de oferecer essa assistência:

“Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento.”

Não obstante a previsão legal, de acordo com estudo recentemente divulgado pelo CNJ, 62% das mortes que acontecem no sistema prisional são causadas por doenças como insuficiência cardíaca, pneumonia e tuberculose. Esse dado calamitoso aponta para o abismo existente entre a norma positiva e a realidade.

É um triste indicador de que o STF acertou ao classificar as condições desumanas do sistema carcerário brasileiro como Estado de coisas inconstitucional (ECI) no julgamento da ADPF 347/DF. Trata-se de um instituto criado pela Corte Constitucional colombiana quando confrontada com uma situação de violação generalizada de direitos fundamentais que afeta um número indeterminado de pessoas.

No âmbito desse cenário caótico, a prisão domiciliar humanitária se revela como um instituto capaz de mitigar as incessantes violações aos direitos humanos, garantindo, no que tange ao direito à saúde, que detentos, provisórios e definitivos, que sofram com um quadro de saúde grave, tenham acesso à uma assistência médica digna, com a possibilidade real de se recuperarem de forma plena e eficaz no interior de suas casas — algo que seria muito mais dificultoso dentro de uma cela superlotada em condições medievais, como são as das cadeias brasileiras.

Possibilidade de prisão domiciliar
A previsão de substituição da prisão preventiva pela domiciliar está consagrada no artigo 318 do Código de Processo Penal. E a possibilidade de isso se dar por motivos de saúde está no inciso III, quando o agente estiver “extremamente debilitado por motivo de doença grave”. Na LEP, previsão semelhante se encontra no artigo 117, II.

Pois bem, para ter acesso a este direito, é crucial que o detento comprove duas coisas, a saber:

  • A debilidade da sua condição médica (isto é, precisa apresentar um problema de saúde grave);
  • A constatação de que o tratamento adequado ao seu restabelecimento se encontra comprometido no presídio (ou seja, precisa comprovar que o estabelecimento prisional não apresenta condições materiais de prestar a assistência médica devida no seu caso).

Foi a 6ª Turma do STJ, em 2021, no julgamento do AgRg no HC 636.408/SP, de relatoria da ministra Laurita Vaz, que esclareceu serem esses os requisitos para que o detento possa pleitear o direito. Pela natureza dos requisitos, resta claro que a concessão da substituição independe da gravidade do crime praticado ou em apuração (caso se trate de um preso provisório).

Um importante exemplo prático neste sentido pode ser visto em recente decisão do judiciário paulista no processo 1504160-35.2023.8.26.0536. No caso em questão, um preso provisório denunciado por três tentativas de homicídio qualificado, além de um porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e uma receptação qualificada, obteve a substituição da sua prisão preventiva pela domiciliar em decorrência do risco de infecção advindo de uma paraplegia recém-adquirida.

Exemplos desse tipo alçam o instituto da prisão domiciliar humanitária à condição de um poderoso instrumento capaz de mitigar o Estado de coisas inconstitucional em que se encontra o sistema carcerário nacional, de evitar que os internos do sistema prisional virem as “não-pessoas” da Roma antiga e de concretizar o direito fundamental dos presos à integridade física e moral (artigo 5º, inc. XLIX):

“É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.”

Em suma, é um importante instituto que combate a desumanização do apenado, transformando em realidade concreta o direito à saúde na execução penal e legitimando a ação estatal no que tange ao encarceramento, pois, segundo Ferrajoli (Direito e Razão -Teoria do Garantismo Penal. São Paulo RT, 2002, p. 112):

Um Estado que mata, tortura, humilha um cidadão não só perde a legitimidade, como também exerce o contrário do que sintetiza a função da pena, e contradiz a sua razão de ser, colocando-se no nível dos mesmos delinquentes.

Dessa forma, é dever do Estado conciliar a obrigação de prover a assistência médica adequada aos apenados com as condições reais existentes nos estabelecimentos prisionais — cabendo ao judiciário, conceder a prisão domiciliar nos casos em que essa isso não for possível —, a fim de que se evite transformar o cárcere em uma “tortura” ou, até mesmo, em uma espécie de “pena de morte legalizada”.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!