Opinião

Abuso do direito de voto do credor em processos de recuperação judicial

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8 de fevereiro de 2024, 6h34

Recentemente houve a publicação de acordão oriundo do Tribunal de Justiça de São Paulo estabelecendo a nulidade de voto de uma instituição financeira em razão de abuso de direito. O que causou certa surpresa neste caso é que o plano de recuperação judicial prevê deságio de 75% do crédito, pagamento em 13 anos, carência de 18 meses e pagamentos trimestrais, o que indicaria, em princípio, não haver uma negativa desarrazoada do credor pela não aprovação do plano [1].

Contudo, antes de adentrar especificamente às razões do julgado, faremos uma breve digressão acerca do abuso de voto nos processos recuperacionais.

Antes da reforma da Lei 11.101/2005 (LRF) pela Lei 14.112/2020, havia um posicionamento jurisprudencial acerca do abuso de voto baseado no artigo 187 do Código Civil e lastreado no Enunciado nº 45 da 1ª  Jornada de Direito Comercial do CJF.

Com a reforma da LRF em 2020 o abuso do direito de voto foi positivado no artigo 39, § 6º da LRF que dispõe: “§ 6º O voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem”.

Exemplo de um voto abusivo
Assim, em um primeiro olhar, poderia parecer juridicamente legal a postura do banco credor que decide não aprovar o plano em razão de deságio importante, por exemplo. Todavia, as razões do voto do relator esclarecem o oposto e, citando Marcelo Barbosa Sacramone, ele explicou que

Nas ocasiões em que o voto proferido pelo credor é feito não em consideração ao seu interesse como credor, mas manifestamente à proteção de seus interesses exclusivamente particulares, o voto deve, assim, ser considerado abusivoComo o voto, ao ser proferido, não precisa ser fundamentado, o voto abusivo deverá ser apreciado à vista dos diversos elementos constantes da deliberação assemblear. Entre as situações que podem indicar que o voto extrapolou o poder conferido ao credor e que exigirão avaliação mais cuidadosa podem-se apontar: a indisponibilidade de negociar as condições de pagamento e a irracionalidade econômica. Ressalta-se que, em ambas as hipóteses, pode não haver nenhum abuso, mas apenas a avaliação pelo credor de que, ainda que incorretamente, acredita que seria mais bem satisfeito de outra forma. Diante da dificuldade da demonstração da má-fé pela parte adversa, a existência dessas situações poderá permitir a inversão do ônus da prova de modo que o votante esclareça os motivos ou seu raciocínio por ocasião do voto”.

No caso concreto, restou configurado que a instituição financeira, única credora da classe II e credora da classe III, após diversas suspensões da assembleia geral de credores para que seu representante pudesse levar as propostas à apreciação de sua diretoria [2], não demonstrava ânimo de negociar, não apresentando qualquer contraproposta ou condição que lhe seria aceitável, demonstrando ainda já haver uma posição pré-estabelecida pela reprovação do plano, razão pela qual o seu voto foi anulado pelo juiz de primeira instância instância.

Importante notar ainda nas razões trazidas no acórdão, que para a rejeição do plano, deveria o credor demonstrar racionalmente que o cenário apresentado no PRJ lhe seria mais desvantajoso que na falência, o que para o caso de uma instituição financeira não traria qualquer dificuldade adicional.

Visão da doutrina
No mesmo sentido, Fábio Ulhoa menciona que há abusividade no voto “quando a vontade declarada no voto não lhe traz nenhum benefício ou prejudica o devedor, os demais credores e a própria finalidade da recuperação judicial[3], ou seja, se o voto do credor é prejudicial a ele próprio comparado à hipótese de falência, não haveria razão lógica para se manifestar contrariamente ao plano, não impedindo, a nosso ver uma negociação para a melhoria nas condições de pagamento.

Conclusão
Não é razoável admitir que um credor possa colocar em risco a sobrevivência de uma empresa, empregos, renda e tudo o mais o que deriva do funcionamento de uma sociedade, sem demonstrar sequer coerência econômica, o que age em absoluta contrariedade ao princípio essencial da legislação recuperacional corporificado no artigo 47 da LRF.

Dessa forma, o que se abstrai desse recente julgamento é que o voto contrário à aprovação do plano de recuperação judicial deve ser justificado, não cabendo sua reprovação arbitrária, pois incompatível com o espírito da legislação.

 


 

[1] Agravo de Instrumento nº 2180329-07.2022.8.26.0000

[2] O PRJ foi aprovado na sétima assembleia em continuação, após a anulação do voto desse credor.

[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14 ed. rev. atual. e ampl. Thompson Reuters Brasil. 2021. São Paulo. Fls. 148.

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