Natureza e objeto das convenções processuais
2 de fevereiro de 2024, 8h00
O processo judicial reclama, em homenagem a um elementar postulado de segurança jurídica, respeito a uma série de garantias das partes (due process of law em senso processual), cuja observância se faz incompatível com a precipitação.
Para tanto, afirma-se correntemente que os direitos subjetivos dos cidadãos devem ser providos da máxima garantia social, com o mínimo sacrifício da liberdade individual, e, ainda, com o menor dispêndio de tempo e energia.
Respeito amplo ao contraditório
Ressalta, nessa ordem de ideias, Teresa Sapiro Anselmo Vaz, que a grande equação que se impõe nos dias atuais ao processualista reside, essencialmente, em conciliar esses valores e todas as consequências que deles advêm, com a obtenção de decisão que represente uma composição do litígio consonante com a verdade, e em que se respeite amplamente o regramento do contraditório e todas as garantias de defesa, pois só assim se logrará uma decisão acertada nos lindes de um processo justo (Novas Tendências do Processo Civil no Âmbito do Processo Declarativo Comum (alguns aspectos), Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 55, 1995 :925).
Desse modo, o esforço para harmonizar as garantias processuais com boa técnica de tutela substancial tem desafiado as leis dos mais diferentes sistemas jurídicos.
Tradicionalmente, a legislação processual desenha um determinado procedimento, cujas regras, em princípio, sempre foram concebidas como cogentes, não podendo ser alteradas pelos protagonistas do processo, vale dizer, nem pelo juiz e muito menos pelos litigantes.
Possibilidade de autocomposição
Esta premissa, contudo, jamais impediu que, no plano do direito material, as partes pudessem (como podem) por fim à controvérsia, mesmo depois de judicializada a pendência entre elas existente, por meio de inúmeros expedientes, entre eles, e. g., a transação judicial ou, mesmo, extrajudicial.
Nesse sentido, procurando infundir a cultura da pacificação entre os protagonistas do processo, o vigente Código de Processo Civil, em inúmeros preceitos, sugere a autocomposição. Dispõe, com efeito, o parágrafo 2º do artigo 3º que: “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”. Dada a evidente relevância social da administração da justiça, os Poderes constituídos devem mesmo empenhar-se na organização de instituições capacitadas a mediar conflitos entre os cidadãos. No Brasil, o Ministério da Justiça preocupa-se em fornecer os meios necessários a várias organizações não-governamentais, que têm como missão precípua a instalação e gestão de sistemas alternativos de administração de controvérsias.
Aduza-se que o próprio diploma processual em vigor, comprometido com o sistema “multiportas” de solução dos litígios, de forma muito original, fomenta, no artigo 174, a criação, pela União, estados, Distrito Federal e pelos municípios, de câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo.
Além destas importantes iniciativas, que seguem tendência mundial, o parágrafo 3º do artigo 3º recomenda de modo expresso a solução amigável (autocomposição), que deverá ser implementada, na medida do possível e inclusive no curso do processo, “por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público”.
Assim, uma vez passível de composição suasória o direito questionado, as partes, transigindo, podem celebrar acordos acerca do objeto litigioso, circunstância implicativa da extinção do processo, pela sua inarredável inutilidade superveniente.
Efeito processual e homologação
Encerrada a desavença no plano do direito substancial em decorrência do negócio jurídico consubstanciado na transação (efeito material), aflora, de forma inexorável, o seu efeito processual, que é, consequentemente, o de determinar a prolação de sentença homologatória, como se o próprio mérito tivesse sido examinado pelo órgão jurisdicional.
Bem é de ver que, judicial ou extrajudicial a transação, a sua eficácia se subordina à homologação judicial. É, pois, pela homologação que “o negócio jurídico se processualiza”.
Deve ter-se presente, nesse particular, que as convenções sobre os atos procedimentais têm natureza estritamente processual, não se confundindo com os negócios propriamente ditos, que ocorrem incidentalmente no âmbito do processo e que têm por objeto o próprio direito litigioso.
As duas espécies de negócio jurídico processual
Essa faculdade de as partes celebrarem tais convenções, em particular, durante a tramitação do processo, tem sido destacada na atual literatura processual europeia, sobretudo, em dois livros que foram recentemente publicados: Guillermo Schumann Barragán, Derecho a la Tutela Judicial Efectiva y Autonomia de la Voluntad: los Contratos Procesales (Madrid, Marcial Pons, 2022); e a coletânea coordenada por Anna Nylund e Antonio Cabral, Contractualisation of Civil Litigation (Cambridge, Intersentia, 2023).
Diante de tais premissas, sob o aspecto dogmático, o gênero negócio jurídico processual pode ser classificado nas seguintes espécies: a) negócio jurídico processual (stricto sensu), aquele que tem por objeto o direito substancial; e b) convenção processual, que concerne a acordos entre as partes sobre matéria estritamente processual.
As convenções almejam, pois, alterar a sequência programada dos atos processuais prevista pela lei, mas desde que não interfiram em seus efeitos. Enquanto há disponibilidade no modo de aperfeiçoamento dos atos do procedimento, a sua eficácia descortina-se indisponível, ainda que o objeto do litígio admita autocomposição.
Trilhando esse mesmo raciocínio, frisa Cândido Dinamarco que a escolha voluntária para regrar o procedimento não vai além de se direcionar em um ou outro sentido, sem liberdade, contudo, para construir o conteúdo específico de cada um dos atos. Os seus respectivos efeitos são sempre os que resultam da lei e não da vontade das partes (Instituições de direito processual civil, vol. 2, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, pág. 471).
Daí porque é vetado às partes, por exemplo, estabelecerem que não se aplica a presunção de veracidade se algum fato não for contestado pelo réu, ou, ainda, atribuir peso/valor a determinada prova em relação a outro meio probatório.
O artigo 190 do CPC
Pois bem, dentre as novidades inseridas no vigente Código de Processo Civil brasileiro destaca-se aquela contemplada no caput do artigo 190, que tem a seguinte redação: “Versando o processo sobre direitos que admitem autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”.
Ademais, o subsequente artigo 191, dispõe sobre a possibilidade de o juiz em conjunto com as partes fixarem, de comum acordo, calendário para a prática dos atos do procedimento.
É certo que as convenções de natureza processual já existiam em nosso sistema processual (dispensa de audiência, suspensão do processo, distribuição do ônus da prova, critério para a entrega de memoriais, adiamento de julgamento em segundo grau), embora sem a amplitude que vem prevista no Código de 2015.
Não é preciso registrar que, à luz desse novo horizonte que se descortina sob a égide do vigente diploma processual, a efetivação de convenções processuais, no plano do procedimento, ganha inegável relevo.
CPC/15 concedeu mais poderes às partes
Com efeito, como restou assentado no julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 1.738.656/RJ, da relatoria da ministra Nancy Andrighi:
“Embora existissem negócios jurídicos processuais típicos no CPC/73, é correto afirmar que inova o CPC/15 ao prever uma cláusula geral de negociação por meio da qual se concedem às partes mais poderes para convencionar sobre matéria processual, modificando substancialmente a disciplina legal sobre o tema, especialmente porque se passa a admitir a celebração de negócios processuais não especificados na legislação, isto é, atípicos”.
Convenções processuais x Mérito da controvérsia
Vale salientar que esta prerrogativa concedida às partes não pode ser identificada com os modos de solução consensual da controvérsia, que decorrem, como acima frisado, de verdadeiros negócios jurídicos, atinentes ao mérito da controvérsia.
As convenções processuais propiciadas pela regra do artigo 190 encerram a possibilidade de as partes acordarem sobre a realização de atos procedimentais e, ainda, acerca de ônus, faculdades e deveres processuais, que vinculam o juiz e que não estão sujeitos à homologação (artigo 200 do CPC), mas apenas ao controle de sua respectiva higidez, sobretudo no que se refere às garantias processuais, que não admitem preterição em hipótese alguma.
Antes e depois
Tais pactos, à exemplo do que se verifica no terreno da arbitragem, podem ser projetados antes mesmo da eclosão da lide ou celebrados incidentalmente já no curso do processo judicial. Não se afasta, pois, a possibilidade da ocorrência de mais de uma convenção processual entre as partes num mesmo processo (v., a propósito, Robson Godinho, Negócios processuais sobre o ônus da prova no novo Código de Processo Civil, São Paulo. Ed. RT, 2015).
Importa acrescentar, em conclusão, a evitar qualquer dúvida, que as convenções processuais, amplamente admitidas pelo artigo 190 do Código de Processo Civil, que ostentam natureza e conteúdo estritamente processual, não têm qualquer identidade dogmática com os negócios jurídicos processuais, de cunho substancial e que têm por objeto o direito controvertido.
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