Opinião

Cadeia de custódia das provas virtuais nos Juizados Especiais Criminais

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29 de dezembro de 2024, 7h11

Embora um dos critérios orientadores dos Juizados Especiais Criminais (JECrim) seja a simplicidade e a celeridade, antes disto é de se lembrar serem os JECrim subsistema do Direito Processual Penal, sendo inafastável a observância dos direitos e garantias, destacando, o respeito ao exercício do contraditório e da ampla defesa.

Muito comumente, os termos circunstanciados, em especial de delitos contra a honra e de perturbação da tranquilidade, vêm instruídos com prints de mensagens de WhatsApp, vídeos e/ou áudios fornecidos por qualquer dos envolvidos, sem indicação da origem, data e local de produção ou achado e efetiva identificação dos interlocutores; eventual ligação desta prova virtual fornecida pelo noticiante/querelante se faz por dedução, a partir do relato do interessado com o material trazido para o processo.

Partindo da premissa de que para se admitir uma prova no processo penal é preciso, de partida, firmar a autenticidade e a integridade da prova (artigo 158a, CPP), neste breve apanhado, pretende-se pensar como cumprir com a cadeia de custódia da prova no JECrim e qual a consequência de sua quebra (adiantando que a doutrina, em sua maioria, seguida pela jurisprudência, tem reconhecido a necessidade de desconsiderar o elemento inserido no processo[1], como prova, sem os requisitos do artigo 158a, CPP).

Já em 8 de agosto de 2022, a 2a Turma do Supremo Tribunal Federal, julgando o ARE 1.343.875, com relatoria do ministro Ricardo Lewandoski, reconhecendo estar a cadeia de custódia comprometida, anulou condenação criminal por “impossibilidade de verificar a autenticidade dos elementos probatórios”. No voto do relator destacou-se a importância da matéria: “Não se trata, portanto, de uma questão marginal, pois o conteúdo do dispositivo eletrônico serviu, como acima anotado, de base para a condenação (…) a preservação da higidez dos elementos informativos obtidos nas diligências iniciais da persecução criminal constitui um dever inafastável do Estado-juiz, inclusive para torná-los acessíveis à defesa técnica” [2].

A propósito, recente decisão do STJ sobre a inadmissibilidade como prova de mensagens de WhatsApp apenas juntadas no processo, sem garantia da origem e da autenticidade:

“PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO ESPECIAL TEMPESTIVO. INDISPONIBILIDADE DO SISTEMA ELETRÔNICO DO TRIBUNAL DE ORIGEM COMPROVADA. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. EMBRIAGUEZ DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE PROVAS DA AUTORIA DELITIVA. TESTEMUNHAS QUE NADA PRESENCIARAM. VÍTIMA QUE NÃO SE RECORDA DO OCORRIDO. PRINTS DE CONVERSAS NO APLICATIVO WHATSAPP. AUSÊNCIA DE PERÍCIA. INADMISSIBILIDADE DA PROVA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO PARA CONHECER DO AGRAVO E DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL, A FIM DE ABSOLVER O AGRAVANTE.(…) 4. Diante da fragilidade da prova oral, fica evidente que os prints de WhatsApp, desacompanhados da correspondente cadeia de custódia, foram tidos como prova principal a conduzir o decreto condenatório. 5. A ausência de garantia mínima da integridade dos elementos contidos nas imagens acostadas aos autos torna inadmissível a sua utilização para fornecer conclusões seguras sobre as hipóteses fáticas em discussão no processo. 6. O depoimento testemunhal indireto, por si só, não possui a capacidade necessária para sustentar uma acusação consistente, sendo imprescindível a presença de outros elementos probatórios substanciais. 7. Agravo regimental provido para conhecer do agravo e dar provimento ao recurso especial, a fim de absolver o agravante com fundamento no art. 386, V, do CPP.” (AgRg nos EDcl no AREsp n. 2.521.345/RO, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 18/6/2024, DJe de 21/6/2024) [3].

No mesmo sentido, tem-se julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) (Apelação Criminal, nº 50029643120228210071, 1ª Câmara Especial Criminal, Tribunal de Justiça do RS, relator: Luciano Andre Losekann, Julgado em: 21/6/2024), dando por imprestáveis áudios juntados em inquérito policial por falta de demonstração da origem dos mesmos.

Spacca

A importância de uma documentação mínima da origem da prova

Ainda que não se domine as especificidades da prova digital, os meios de coleta e preservação, sabe-se da facilidade em manipular seu conteúdo – muito mais frágeis, em certo sentido, do que as provas materiais. Ao passo que o suporte físico da prova digital (um celular, por exemplo) fica de posse do interessado (o aparelho e o elemento de prova que ele contém), eventual faca ou revólver (como instrumentos do crime e suporte de prova da materialidade) podem ser apreendidos, lacrados e não mais manuseados até o final do processo.

Vai daí a necessidade de documentar minimamente a origem da prova (celular de quem; vídeo feito por quem / recebido de quem; integridade da mensagem / vídeo que se junta no processo; contexto no qual foi produzido o vídeo / mensagem recebida) e o estado em que foi entregue (sem supressão da sequência lógica das mensagens, ou mesmo de parte das mensagens, áudios ou vídeos trazidos ao juízo, o que pode levar a uma descontextualização do ocorrido que se pretende provar ou, até mesmo, indução em erro, ao traduzir apenas um recorte do que efetivamente se passou).

Afirmou Gustavo Badaró que “para garantir a autenticidade, evitando a contaminação da prova digital, o ideal seria que o legislador estabelecesse uma técnica específica a ser empregada para a individualização e apreensão da prova digital, sob pena de inutilizabilidade da prova. Todavia, considerando, de um lado, que a informática é uma ciência relativamente jovem e ainda não há meios e técnicas uniformemente aceitos e, de outro, que tem havido rapidíssima mutação e evolução das técnicas computacionais, tal solução se mostra inviável” [4].

Sem um protocolo firmado para a coleta, autenticação e inserção da prova digital no processo penal de rito sumaríssimo dos JECrim, partindo das premissas de que (1) o Ministério Público, para além de autor da ação penal pública incondicionada, é fiscal da lei (artigo 257, II, CPP), (2) o processo penal nos JECrim submete-se ao regramento geral do processo penal, no que pertine à garantia dos direitos dos envolvidos e (3) a prova inserida no processo é comum [5], carece estabelecer um mínimo de segurança que a prova digital integrante do processo seja autêntica, íntegra e fidedigna. Com olhos nos critérios orientadores dos JECrim (artigo 62, Lei 9.099/95), para primeira fase da persecução penal (artigos 72 a 76, Lei 9.099/95), pode-se admitir a prova digital, desde que:

(a) seja certificado a origem (identificação do aparelho e de quem apresentou o aparelho) da prova;
(b) seja certificada a forma de extração da prova (mensagem, vídeo etc.), por quem e a advertência ao possuidor do aparelho da necessidade de manter íntegra (não remover) o conteúdo apresentado como prova;
(c) seja certificada a existência de elementos de prova decorrentes da prova indicada, no mesmo aparelho. Por exemplo: o contexto em que seu deu a mensagem/fala/vídeo extraída para servir de prova no processo, determinando a preservação de todo o conjunto ligado à prova.

Há um conjunto de normativas para extração e tratamento da prova digital, sendo o espelhamento e lógica de cálculo da função HASH as mais citadas por doutrinadores, para além das normas da ABNT relativas à matéria. Todavia, exigi-las para início do procedimento sumaríssimo, em nosso sentir, seria inviabilizar o procedimento nos JECrim nas fases dos arts 72 a 76 da Lei 9.099/95.  Mas, não se pode deixar a descoberto a prova, sem um mínimo cuidado documental da origem e autenticidade nos termos do artigo 158a e ss do CPP, a ser feito de forma simplificada já pela autoridade policial [6], sob pena de imprestabilidade do material.

Se superadas as fases de composição e transação sem sucesso, para recebimento de eventual queixa-crime ou denúncia, imprescindível que se tenha lastreada a inicial em outras provas para além da digital autenticada de forma simplificada, ou sendo a prova digital a única a sustentar a acusação, sejam observados os requisitos técnicos-jurídicos para sua inserção no processo, sob pena de rejeição da peça inicial por falta de justa causa para ação penal.


[1]    A propósito, PRADO, Geraldo. Breves notas sobre o fundamento constitucional da cadeira de custódia da prova digital. Disponível em https://geraldoprado.com.br/artigos/breves-notas-sobre-o-fundamento-constitucional-da-cadeia-de-custodia-da-prova-digital/, acesso em 10  set 2024.

[2]    Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=763043675, acesso em 01 dez 2024.

[3]    Disponível em www.stj.jus.br, acesso em 24 jul 2024 – sem grifo no original.

[4]BADARÓ, Gustavo.  A cadeia de custódia da prova digital. Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/8351444/mod_resource/content/0/BADARO%CC%81%20-%20A%20cadeia%20de%20custo%CC%81dia%20da%20prova%20digital%20PUCRS.pdf, acesso em 10 set 2024.

[5]    A propósito, LIMA, Renato B. Manual de Processo Penal, v. único, 11a ed., São Paulo : Editora JusPodVium, 2022, p. 617; AVENA, Norberto, Processo Penal. 9a ed, Rio de Janeiro: Ed Forense, 2017, citado em AgRg no HC n. 658.197/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 20/4/2021, DJe de 26/4/2021: “Não há qualquer ilegalidade na juntada da prova requerida pela defesa pelo próprio órgão acusatório, haja vista o princípio da comunhão das provas, segundo o qual, “uma vez trazidas aos autos, as provas não mais pertencem à parte que as acostou, mas sim ao processo, podendo, desse modo, ser utilizadas por quaisquer dos intervenientes, seja o juiz, sejam as demais partes”. Disponível em www.stj.jus.br, acesso em 10 set 2024.

[6]    A propósito, ARCOS, Eduardo, BELCHIOR, Daniel Fl., Delegado enquanto agente de controle epistêmico dos elementos de prova. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-mai-12/belchiore-arcos-inquerito-instrumento-respeito-cadeia-custodia/, acesso em 23 dez 2024.

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