Diário de Classe

A mitologia no Direito e o Direito na mitologia

Autor

  • é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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28 de dezembro de 2024, 8h00

“mitologia não é uma mentira; mitologia é poesia, é algo metafórico. Já se disse, e bem, que a mitologia é a penúltima verdade. Penúltima porque a última não pode ser transposta em palavras” [1]

1) Introdução: mitologia e o imaginário coletivo

Desde os primórdios da civilização e de períodos imemoriais da nossa história, a humanidade construiu mitos para compreender o mundo, a vida e sua própria condição. O mito não é apenas uma narrativa fantástica, mas, como aponta Mircea Eliade em Mito e Realidade [2], um conjunto de narrativas que revelam as origens, organizam o pensamento e orientam a conduta humana. Essas narrativas coletivas, transmitidas por gerações, conferem significado à existência, oferecendo modelos que explicam e justificam ações e decisões em sociedade.

Autores como Luc Ferry [3] também destacam que a mitologia, longe de ser uma coleção de “contos e lendas” infantis, constitui uma tentativa profunda e complexa de responder às questões fundamentais sobre o sentido da vida e da conduta humana. A distinção entre mortais e imortais, central nas narrativas míticas, reflete uma reflexão essencial sobre a condição humana, trazendo respostas para dilemas universais. Segundo Ferry, a filosofia que floresceu na Grécia Antiga pode ser entendida como uma secularização dessas histórias, que apresentavam, de forma simbólica, explicações sobre o mundo e a moralidade. A influência da mitologia grega na cultura ocidental é evidente em expressões que utilizamos no cotidiano, como “hercúleo”, “canto das sereias” ou “in dubio pro reo”. Essas metáforas e narrativas, mais do que enriquecerem nossa linguagem, oferecem recursos interpretativos que dialogam diretamente com questões fundamentais do Direito, iluminando princípios que orientam o convívio social e a busca pela justiça.

Além disso, os grandes autores da tragédia grega como Sófocles, Ésquilo e Eurípides, incorporaram esses mitos em suas obras, refletindo sobre essas e outras questões que vieram a edificar o mundo jurídico para sempre. A objeção de consciência de Antígona ou a tragédia de Édipo Rei [4], por exemplo, transcendem o teatro, apresentando dilemas que até hoje desafiam juristas e filósofos. Como assinalam autores como Paul Harvey [5], bem como respeitáveis tradutores como Frederico Lourenço (de Odisseia e da Bíblia) e Trajano Vieira (de Ilíada e Odisseia), essas narrativas moldaram o imaginário ocidental, oferecendo bases para debates que permanecem relevantes. O mito, ao revelar arquétipos universais, permite uma conexão profunda entre Direito e cultura.

2) Mitologia no Direito: Ulisses, Orestes e as alegorias jurídicas

A mitologia, além de sua função cultural e filosófica, desempenha um papel explicativo no Direito. Narrativas clássicas como a jornada de Ulisses e o julgamento de Orestes oferecem metáforas ricas para a compreensão de princípios jurídicos fundamentais. Essas histórias, presentes nas obras de Homero e Ésquilo, transcendem o contexto mítico, oferecendo lições que ecoam na teoria e na prática dos juristas.

A jornada de Ulisses [6], narrada na Odisseia de Homero, é um exemplo notável. Ulisses, ao retornar à Ítaca, enfrenta o canto irresistível das sereias, criaturas cuja melodia seduz os marinheiros para a morte. Sabendo de sua fraqueza, Ulisses ordena que seus marinheiros o amarrem ao mastro do navio e tampem seus próprios ouvidos. Jon Elster, em Ulysses and the Sirens [7], utiliza essa narrativa para ilustrar o papel da Constituição: assim como as correntes garantem a sobrevivência de Ulisses, a Constituição protege a sociedade das tentações do arbítrio e das maiorias volúveis. Essa metáfora ilustra a importância de limitar as paixões momentâneas em favor da ordem e da segurança jurídica.

Já o julgamento de Orestes, descrito na trilogia Oresteia de Ésquilo [8], reflete a transição da vingança privada para a justiça institucionalizada. Acusado de matricídio, Orestes é julgado no Areópago, tribunal ateniense criado pela deusa Atena. Contudo, o julgamento terminou empatado, e Atena decide em favor de Orestes precisamente por isso, introduzindo aqui o princípio do in dubio pro reo: em caso de dúvida, decide-se pela absolvição. Esse momento marca o triunfo da racionalidade jurídica sobre as paixões vingativas, consagrando o Direito como instância autônoma.

3) Do mito ao logos: a dialética do Direito e a crítica à dogmática jurídica

A transição do mito para o logos [9] é um marco na evolução do pensamento humano. Na filosofia grega, esse movimento representou a busca por explicações racionais para questões que antes eram respondidas pela mitologia. No entanto, o mito não prescreveu nem com esse movimento e nem sequer com a modernidade; ele apenas se transformou, servindo agora como uma trama para clarificar conceitos e sustentar elementos reflexivos sobre a tessitura do logos. Com efeito, alcançou-se a compreensão de que os mitos não são plenipotenciários (pois dependem do logos para serem compreendidos adequadamente). No Direito, essa interação se manifesta na utilização de narrativas míticas para dar inteligibilidade a princípios mais ou menos abstratos, como a justiça, a liberdade e a igualdade.

As histórias de Ulisses e Orestes, por exemplo, oferecem imagens concretas que ajudam a compreender valores jurídicos complexos. Mais do que ilustrar conceitos, esses mitos os sustentam, conectando o Direito a um imaginário coletivo que torna suas normas e princípios mais acessíveis e compreensíveis. Assim, o mito e o logos não são opostos, mas complementares: o primeiro inspira e fundamenta; o segundo representa e simboliza.

Não obstante, como alerta Lenio Luiz Streck, importa reconhecer que a dogmática jurídica contemporânea frequentemente regride ao mito, criando categorias pouco fundamentadas no texto normativo e promovendo abstrações. Seus leitores conhecem sua crítica desde há muito: o autor critica com veemência conceitos como “verdade real” e “livre convencimento motivado”, que se apresentam como princípios jurídicos (sic), mas que, na verdade, operam como mitos modernos. Esses conceitos, desprovidos de uma base normativa clara, assumem uma dimensão quase mágica no imaginário jurídico, oferecendo explicações simplistas e pouco consistentes para as decisões judiciais. O “livre convencimento motivado”, por exemplo, frequentemente serve como justificativa para arbitrariedades interpretativas, enquanto a “verdade real” é invocada como ideal inalcançável, distorcendo o papel das provas e da própria epistemologia jurídica. Esse fenômeno, segundo Streck, representa uma inversão problemática: em vez de o Direito utilizar o logos para esclarecer e desmistificar o mito, ele se submete a esses mitos que enfraquecem sua autonomia e normatividade. Ao perpetuar essas categorias, a dogmática jurídica contemporânea não apenas obscurece a função emancipadora do Direito, mas também legitima práticas pouco úteis para com os propósitos do Constitucionalismo Contemporâneo [10] (que é delimitar o poder e resguardar Direitos Fundamentais).

Diante das fragilidades da dogmática jurídica contemporânea, torna-se indispensável um retorno ao ethos do Direito, essencial para restaurar sua função crítica e normativa. Isso significa rejeitar os “mitos dogmáticos” que reduzem o Direito a uma técnica sem fundamento e reafirmar sua conexão com o texto constitucional e com a racionalidade que sustenta o Estado de Direito. Assim, o Direito não deve ser refém de construções míticas, mas utilizá-las como narrativas que auxiliam na compreensão e na reflexão sobre o próprio Direito.

Nesse sentido, a metáfora de Ulisses e o canto das sereias não apenas ilustra o papel da Constituição, mas também destaca como a mitologia serve ao Direito como um autêntico apoio explicativo. Assim como Ulisses se previne contra sua própria fraqueza, a Constituição e seus intérpretes (deveriam) proteger a sociedade das tentações que ameaçam a ordem. A Constituição, nesse sentido, é a “corrente” que sustentaria o Estado de Direito, garantindo que princípios fundamentais sejam respeitados mesmo em tempos de crise.

4) Conclusão: nada envelhece tão rápido quanto a novidade

A mitologia e o Direito dialogam profundamente, oferecendo ao imaginário jurídico um repertório de narrativas e símbolos que tornam mais compreensíveis os desafios e dilemas da vida em sociedade. Como aponta Luc Ferry, os mitos não são meras histórias infantis, mas reflexões profundas sobre a condição humana e o sentido da existência. Especificamente no caso do Direito, essas narrativas oferecem metáforas poderosas para princípios constitucionais e valores éticos que moldam o convívio humano.

A perenidade dos mitos, nesse sentido, revela um paradoxo: aquilo que parece antigo e distante é, na verdade, uma das construções mais contemporâneas da experiência humana. Os símbolos que eles carregam são multifacetados, permitindo inúmeras interpretações ao longo do tempo. Na história de Ulisses, por exemplo, cada geração descobre uma nova metáfora para os desafios do presente, enquanto a luta de Antígona contra leis injustas permanece como um grito atemporal pela dignidade humana. Se a novidade se consome em sua própria efemeridade, os mitos se renovam, oferecendo-se como lentes permanentes para compreender o agora.

Esse contraste entre o passageiro e o eterno talvez seja a maior apoteose da mitologia. Em um mundo que rapidamente abandona o ontem em favor do hoje e quiçá até mesmo do hoje em favor do amanhã, os mitos nos lembram que o valor das narrativas não está em sua novidade, mas em sua capacidade de ecoar os dilemas mais profundos da nossa alma. Eles nos ensinam que as questões humanas – justiça, poder, liberdade etc. – não estão sujeitas ao modismo, mas, sim, a forças mais inerentes ao espírito e a eternidade.

Enquanto este texto revisita mitos que atravessaram milênios, encerramos 2024 com uma notícia que traz a mitologia de volta ao centro do imaginário moderno: Christopher Nolan anunciou que seu próximo filme será uma adaptação da Odisseia, de Homero (aqui). Um convite perfeito para revisitar as aventuras de Ulisses e refletir sobre como essas histórias continuam a dialogar com questões universais. Se os mitos nos ensinam algo, é que sempre haverá destinos a alcançar e a romper, jornadas a empreender e desafios a enfrentar. Que tal, então, aproveitar o novo ano para explorar mais sobre a mitologia e ficar atento às telas do cinema? Afinal, algumas histórias são eternas, e sempre há algo novo a aprender com elas.

 


[1] CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena Editora, 1990. p. 180.

[2] Cf. (i) ELIADE, M. Mito e Realidade. 3. ed. São Paulo: Perspectiva: 1991. p. 11; e (ii) BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martin Claret, 2022.

[3] FERRY, Luc. Mitologia e filosofia: o sentido dos grandes mitos gregos. Petrópolis: Vozes, 2023. p. 9 e seg.

[4] SÓFOCLES. Rei Édipo e Antígona. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021.

[5] HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1987. p. 345-346.

[6] HOMERO. Odisseia. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2022. p. 359-367 (Canto XII, 36-200).

[7] Cf. (i) ELSTER, Jon. Ulysses and the Sirens: Studies in Rationality and Irrationality. New York: Cambridge University Press, 1988; e (ii) ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

[8] Aos aficionados por mitologia, recomendo a edição: ÉSQUILO. Oréstia. Dois Irmãos: Clube de Literatura Clássica, 2022.

[9] Nota explicativa: “Falar-se do logos de alguma coisa, é falar do fundamento dessa coisa, pois uma coisa é o que é pela razão íntima do seu ser, seu logos, a sua lei. Assim, reunindo todos os conceitos de logos, vemos que é lei, princípio e relação. Princípio porque para que uma coisa seja é necessário ser algo, seu princípio é, pois, o mais íntimo de seu ser, já que este ela não é. Lei, porque o que impõe que algo seja, é esse princípio, e relação porque nesse conceito está o referir-se a alguma coisa ou a si mesma ou além de si mesma, a outro ser”. In. SANTOS, M. F. dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. 3. ed. São Paulo: Matese, 1965. p. 901.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 57-60.

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição, advogado, membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) e editor da Revista da ABDConst.

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