Nova composição do Tribunal do Cade foi destaque no Direito da Concorrência
27 de dezembro de 2024, 7h17
O ano de 2024 foi marcado por mudanças na composição do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), pela publicação de novos guias com orientações para agentes econômicos e pela consolidação de entendimentos jurisprudenciais relevantes.
Em 7 de fevereiro foi realizada a primeira sessão de julgamento com a nova composição do Tribunal, após a posse dos conselheiros Diogo Thomson de Andrade, Camila Cabral Pires Alves, Carlos Jacques Vieira Gomes e José Levi Mello do Amaral Júnior. Os novos conselheiros imprimiram dinâmica própria ao tribunal — embora tenha sido mantida consistência com entendimentos anteriores, novos questionamentos foram apresentados e uma interlocução mais intensa com a Superintendência-Geral (SG) se consolidou.
Publicações institucionais dignas de nota incluem, em especial, o “Guia de Análise de Atos de Concentração Não Horizontais” (Guia V+), documento que consolida o padrão de análise do Cade em operações verticais ou conglomerais, objeto de consulta pública em 2023. Além do Guia V+, o Cade também publicou o “Manual para uso de Trustee”, que tem como finalidade uniformizar e aprimorar a fiscalização do cumprimento de decisões e acordos em casos em que há designação de terceiros independentes contratados pelo Cade (trustees). Houve, ainda, publicação da segunda edição do relatório “Brics in the digital Economy: Competition policy in practice”, resultado de grupo de trabalho formado por autoridades de países do Brics que analisa aspectos concorrenciais de mercados digitais.
Diversos casos que passaram pelo Cade ao longo do ano merecem destaque por tratarem de temas na fronteira do antitruste. Discutimos os principais a seguir.
Desafios na análise de atos de concentração
O ano foi bastante desafiador no âmbito do controle de estruturas, havendo alguns casos centrais por sua complexidade e por indicarem o posicionamento da nova composição do tribunal.
Em abril, o Cade reprovou a aquisição da Trevo pela Kauf [1], ambas do mercado de drywall. A operação, cuja reprovação havia sido recomendada pela SG, resultaria em market shares de 30-40% e reduziria o número de empresas no setor de 4 para 3, em mercado caracterizado por significativas barreiras à entrada, restrições à importação decorrentes de medidas antidumping, baixa capacidade ociosa e limitações na capacidade de expansão de rivais. O tribunal rejeitou remédios comportamentais apresentados pelas partes, entendendo que seriam custosos e implicariam alto risco de descumprimento.
Outros casos que envolveram concentração horizontal significativa demandaram remédios substanciais. Em setembro, o tribunal condicionou a aquisição de ativos da Marfrig pela Minerva a restrições unilaterais que incluem a alienação de planta de abate pela Minerva [2]. Já em outubro, o Cade condicionou operação de aquisição da Terphane pela Oben [3], ambas fabricantes de filmes de Bopet, à obrigação de que as partes renunciem a medidas antidumping que dificultam a entrada de importações no Brasil.
Operações verticais também estiveram sob detalhado escrutínio do Cade. A SG recomendou a reprovação de aquisição, por três cooperativas do Sistema Unimed, do controle externo da Fundação Ouro Branco (FOB), do Grupo Gerdau [4] — segundo a SG, a operação geraria capacidade e incentivos para que as Unimeds fechassem o mercado de hospitais-gerais para operadoras de planos de saúde concorrentes de modo que os beneficiários de operadoras de planos de saúde rivais não tivessem acesso ao hospital e ao laboratório da FOB. Uma reprovação baseada apenas em preocupações relacionadas à integração vertical nunca foi determinada pelo Cade, que tradicionalmente adota remédios comportamentais em casos desse tipo. As partes acabaram desistindo da operação, não havendo análise de mérito pelo tribunal.
Por fim, o Cade enfrentou, em sede de consulta [5], o tema dos acordos para negociação conjunta de compra de insumos, marcado pela necessária, embora complexa, diferenciação entre acordos lícitos e “cartéis de compra”. Cassol e Todimo, empresas de comércio varejista de materiais de construção, consultaram o Cade sobre a licitude de formação de um Comitê de Compras para negociação conjunta com fornecedores, bem como para reuniões operacionais para avaliação das condições de compra, mantendo-se, contudo, autonomia para decisão final, definição de preços, celebração dos contratos e gerenciamento de estoque. O tribunal confirmou a licitude da iniciativa devido a fatores específicos ao caso como ausência de poder de compra capaz de ensejar exercício de poder de monopsônio e baixo risco de troca de informações sensíveis, destacando ainda “o fato de as Consulentes não serem concorrentes no mercado físico de varejo de materiais de construção em âmbito municipal”, ou seja, em suas atividades-fim.
Novos parâmetros em casos de gun jumping
Um número significativo de casos de gun jumping (i.e. consumação de atos de concentração antes de aprovação pelo Cade) foi concluído pela autoridade brasileira em 2024. Alguns desses casos propiciaram a consolidação de parâmetros para decisões futuras.
Em março, o tribunal decidiu reconhecer a configuração de gun jumping em aquisição da Digesto pelo Jusbrasil [6], mas afastou a aplicação de multa em razão do reconhecimento de controvérsia razoável sobre os critérios de notificação de atos de concentração. O centro da controvérsia foi o conceito de “controle” – caso se considerasse que determinados fundos de investimento tinham controle sobre as partes, a operação deveria ter sido notificada ao Cade. Naquela oportunidade, o tribunal esclareceu que mesmo acionistas minoritários podem ser considerados como detentores de “controle” sobre uma empresa caso detenham determinados direitos de veto, de quórum qualificado para aprovação de determinadas matérias e de indicação de diretores e membros do Conselho de Administração, dentre outros. No caso concreto, a aplicação desses critérios levava à conclusão de que a operação deveria ter sido notificada ao Cade. A despeito disso, não houve aplicação de multa pelo reconhecimento de que se trata de matéria complexa sobre a qual não havia entendimento consolidado.
Diversas outras investigações resultaram na aplicação de multas pelo Cade, e também houve a consolidação de entendimento relevante para esses casos. Em caso envolvendo gun jumping em transferência de concessionária de veículos [7], o tribunal limitou o valor da multa aplicável às partes a 20% do valor atualizado da operação. Para o tribunal, essa limitação seria necessária pelo critério de proporcionalidade. A multa em casos de gun jumping é calculada com base em diferentes critérios como o número de dias de atraso na notificação, o faturamento médio dos grupos e a intencionalidade da infração
Medidas preventivas entre mercados tradicionais e digitais
Ao longo do ano, o Cade continuou a aplicar a política de utilizar medidas preventivas para salvaguardar mercados em casos de condutas unilaterais. Em paralelo, mercados digitais estiveram no centro de casos relevantes.
O recurso a medidas preventivas em 2024 foi utilizado já em fevereiro, em caso que buscava apurar se a aquisição de debêntures garantidas pelo imóvel-sede do jornal Correio Braziliense por empresa do grupo rival Metrópoles seria anticompetitiva [8]. A SG determinou, no âmbito da investigação, que a eficácia de leilão do imóvel-sede fosse condicionada à análise do Cade, de forma que a agência pudesse avaliar eventuais efeitos anticompetitivos. Em novembro, a SG deferiu outra medida preventiva em caso que também envolvia a possibilidade de que um concorrente influencie as atividades de outro para prejudicá-lo — a preventiva suspendeu os direitos políticos da CA Investment, acionista minoritária, sobre a Eldorado, devido ao risco de práticas anticompetitivas no mercado de celulose [9].
Ao final de novembro, a SG adotou a medida preventiva no âmbito de procedimento instaurado após representação do Mercado Livre. A SG determinou que a Apple [10] deixasse de aplicar determinados dispositivos constantes de suas políticas para desenvolvedores de aplicativos. O objetivo da medida preventiva seria permitir que os desenvolvedores (1) informem seus usuários sobre outras formas de adquirirem os produtos por eles comercializados nos aplicativos, incluindo por meio de botões e links externos nos próprios aplicativos, (2) contratem e utilizem outros sistemas de compras in-app que não o sistema de processamento de transações da própria Apple, (3) distribuam seus aplicativos nativos para o sistema iOS por meio de outras ferramentas e mecanismos que não exclusivamente a Apple App Store, e (4) contratem os serviços de distribuição da Apple App Store sem contratarem simultaneamente o sistema de processamento de transações da própria Apple. A decisão revela o posicionamento inicial da SG sobre práticas que têm sido objeto de análise por diferentes autoridades ao redor do mundo. Contudo, a preventiva acabou suspensa pelo Poder Judiciário [11].
Outros casos envolvendo mercados digitais, que não foram objeto de preventivas, também marcaram o ano. Foram arquivados pela SG a investigação do acordo conhecido como “Jedi Blue” [12], a investigação contra a Meta por práticas envolvendo inteligência artificial generativa em plataformas de seu ecossistema [13], a investigação de práticas no contexto do debate nacional sobre o “PL das Fake News” [14], e a investigação sobre “self-preferencing” no mercado de busca contra sites de notícias [15], todas devido à insubsistência de indícios de práticas anticompetitivas.
De outro lado, na esteira da medida preventiva contra a Apple, a SG iniciou investigação sobre a Play Store, do sistema Android [16]. Ainda, fora do contexto de investigações de conduta, o Tribunal do Cade avocou operação que envolve a aquisição de participação na Shopper, plataforma online de entregas de supermercado, pelo iFood [17], indicando a necessidade de avaliar com maior detalhamento as estimativas de participação de mercado apresentadas pelas partes, assim como a própria definição de mercado relevante adotada. Essas iniciativas dão continuidade ao crescente escrutínio de plataformas digitais já identificado em anos anteriores.
Colusão, troca de informações e mercados de trabalho: limites do antitruste
O Cade julgou e instaurou investigações ao longo do ano sobre uma série de casos tradicionais envolvendo cartéis em licitações, incluindo casos decorrentes da operação “lava jato”. A principal tendência que marca o ano, contudo, é a instauração de investigações não relacionadas a cartéis, em que empresas fazem acordos para fixar preços e outras condições comerciais, mas sim à troca de informações consideradas concorrencialmente sensíveis.
Nesses casos, que passaram a entrar no radar da autoridade apenas há alguns anos, notas técnicas publicadas ao longo de 2024 indicam que a SG considera ser adequada a análise sob “regra per se” ou de “ilícito por objeto”. Essa abordagem, historicamente restrita a casos de cartel (i.e. em que há evidência de acordo), implica que a conduta, caso comprovada, será considerada anticompetitiva a despeito de seus efeitos (ou da ausência de efeitos). A aplicação da regra “per se” a casos de troca de informações tende a ser objeto de controvérsia nos próximos anos, especialmente tendo em vista que ainda não há precedentes do tribunal sobre o tema — os casos que envolviam trocas de informações sensíveis e chegaram ao tribunal nos últimos anos foram arquivados por razões como prescrição ou ausência de provas, não se chegando a uma análise da substância do caso.
Investigações de troca de informações sensíveis não são um dos principais destaques do ano apenas devido à controvérsia sobre a rega de análise mais adequada. Enquanto alguns desses casos iniciados em 2024 envolvem mercados tradicionais como o automotivo [18], ao menos três investigações tratam de supostas trocas de informações que teriam afetado não mercados de bens ou serviços, e sim o mercado de trabalho, por envolverem o compartilhamento de dados relacionados a recursos humanos (RH) [19]. Historicamente, o Cade restringia seu enforcement das normas de defesa da concorrência a mercados de bens e serviços, mantendo a interpretação de que práticas relacionadas ao trabalho estariam fora de sua competência. O primeiro caso a sinalizar uma mudança nessa abordagem histórica foi instaurado em 2021, envolvendo supostas trocas de informações sobre RH no “Grupo MedTech” [20].
O ano de 2024 sinaliza um aprofundamento no interesse do Cade em colocar mercados de trabalho sob escrutínio antitruste não apenas no âmbito de investigações de conduta, mas também no controle de estruturas: houve pedido de avocação de aquisição de plataformas de software da SAG pela IBM devido a cláusulas de não-competição (non compete) e não-aliciamento (no-poach) celebradas pelas partes [21]; o caso não chegou a ter a avocação concluída porque as partes voluntariamente modificaram as cláusulas questionadas. Vale destacar que, em paralelo a essas iniciativas, o Cade está recorrendo contra decisão do TRT-15 que determinou que o Cade fundamente suas decisões em análises de atos de concentração considerando as possíveis repercussões das operações analisadas sobre relações de trabalho [22].
Perspectivas para 2025
Temas como a aplicação de medidas preventivas, o parâmetro de análise de trocas de informação e o escrutínio concorrencial de mercados de trabalho certamente continuarão na pauta da defesa da concorrência no Brasil em 2025. Outros temas atualmente debatidos em todo o mundo, como os riscos concorrenciais de algoritmos de precificação, também entraram no radar do Cade, e poderão ver desenvolvimentos ao longo do ano [23]. Importante seguir acompanhando como eventuais mudanças no antitruste em outros países, em especial nos Estados Unidos, serão recebidas pelo direito concorrencial brasileiro.
Institucionalmente, o Cade passará por uma mudança relevante com o encerramento do mandato do presidente Alexandre Cordeiro Macedo em julho de 2025. Além disso, 2025 poderá ver desdobramentos da proposta de regulação de plataformas digitais impulsionada pelo relatório “Aspectos Econômicos e Concorrenciais de Plataformas Digitais: Considerações sobre o cenário no Brasil e recomendações para aprimoramentos regulatórios e de políticas públicas”, da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, que atribuiria competência ao Cade para designar plataformas digitais sistemicamente relevantes e definir obrigações para o caso específico de cada plataforma designada. Pode-se esperar, portanto, a manutenção do crescente escrutínio sobre mercados digitais.
[1] Ato de Concentração nº 08700.003198/2023-01.
[2] Ato de Concentração nº 08700.006814/2023-77.
[3] Ato de Concentração nº 08700.007543/2023-77.
[4] Ato de Concentração nº 08700.007656/2023-72.
[5] Consulta nº 08700.001177/2024-23.
[6] Processo Administrativo para Apuração de Ato de Concentração nº 08700.000641/2023-83.
[7] Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração nº 08700.005463/2019-09.
[8] Inquérito Administrativo nº 08700.006085/2022-78.
[9] Inquérito Administrativo nº 08700.007664/2024-08.
[10] Processo Administrativo nº 08700.009531/2022-04.
[11] Mandado de Segurança nº 1097967-08.2024.4.01.3400.
[12] Inquérito Administrativo nº 08700.006751/2022-78.
[13] Procedimento Preparatório nº 08700.004482/2024-77.
[14] Procedimento Preparatório nº 08700.003089/2023-85.
[15] Inquérito Administrativo nº 08700.003498/2019-03.
[16] Inquérito Administrativo nº 08700.009916/2024-25.
[17] Ato de Concentração nº 08700.008386/2024-06.
[18] Processo Administrativo n° 08700.000478/2024-30.
[19] Processo Administrativo n° 08700.000992/2024-75, Processo Administrativo n° 08700.001198/2024-49 e Processo Administrativo n° 08700.007061/2024-06. O Processo Administrativo n° 08700.007061/2024-06 também envolve investigação em mercados de bens e serviços.
[20] Processo Administrativo n° 08700.004548/2019-61.
[21] Ato de Concentração nº 08700.000987/2024-62.
[22] Recurso Ordinário Trabalhista nº 0012149-49.2014.5.15.0081.
[23] A SG instaurou, em novembro de 2024, o Processo Administrativo n° 08700.006280/2024-60, para investigar a suposta influência à adoção de conduta comercial uniforme pelo Minaspetro e a Intelprice Soluções de Precificação Ltda por meio da adoção de algoritmo de precificação.
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