STF, inconstitucionalidade da improbidade culposa e segurança jurídica
26 de dezembro de 2024, 15h16
Em decisão prolatada no final de outubro de 2024, no julgamento do Tema 309 de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o “dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da Constituição Federal), de modo que é inconstitucional a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa prevista nos arts. 5º e 10 da Lei nº 8.429/92, em sua redação originária”.
A tese fixada no julgamento do Tema 309 de repercussão geral destoa da jurisprudência tradicional da própria corte, que considerava constitucional a modalidade culposa da improbidade na redação originária da Lei 8.429/1992 (LIA).
Em diversas oportunidades, o STF reafirmou, expressa ou implicitamente, a constitucionalidade da modalidade culposa da improbidade que, na redação originária da LIA, ficava restrita ao ato de improbidade por lesão ao erário. Mencione-se, por exemplo, a decisão proferida pela Suprema Corte no Tema 897 de repercussão geral, que afirmou a imprescritibilidade das “ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”, restringindo a prescrição da pretensão de ressarcimento ao erário aos atos culposos de improbidade tipificados no artigo 10 da LIA.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça [1] e grande parte da doutrina [2] sustentavam a constitucionalidade da improbidade culposa prevista na redação inicial do artigo 10 da LIA.
É verdade que a reforma promovida pela Lei 14.230/2021 na LIA extinguiu a modalidade culposa, até então restrita ao artigo 10 da LIA, para exigir o dolo específico para caracterização da improbidade administrativa. Nesse sentido, a atual redação do artigo 1º, § 1º, da LIA dispõe que apenas as “condutas dolosas” tipificadas nos artigos 9º, 10 e 11 constituem improbidade administrativa.
Aliás, mesmo após a reforma da LIA, promovida pela Lei 14.230/2021, o STF, no Tema 1.199 de repercussão geral, decidiu pela retroatividade limitada da norma mais benéfica, que extinguiu a improbidade culposa, aos casos que não tivessem transitado em julgado [3]. Vale dizer: as condenações por improbidade culposa, anteriores à reforma da Lei 14.230/2021, já transitadas em julgado permaneceriam válidas e não seriam afetadas pela atual redação da LIA.
A discussão a respeito da constitucionalidade da modalidade culposa de improbidade parecia sepultada, seja pela jurisprudência dos tribunais superiores que admitia a validade da redação originária do artigo 10 da LIA, seja pela revogação da improbidade culposa pela reforma introduzida pela Lei 14.230/2021, inclusive com a posição do Plenário da Suprema Corte a respeito da retroatividade mitigada da norma mais benéfica ao investigado/réu no âmbito do julgamento do Tema 1.199 de repercussão geral.
No direito pátrio, todavia, as poucas certezas na interpretação das normas jurídicas são transformadas, não raras as vezes, em incertezas, a partir de modificações legislativas ou alterações jurisprudenciais, o que acarreta ambiente de insegurança jurídica. Em pouco tempo, tudo pode mudar! E mudou…
Recurso Extraordinário 656.558/SP
Conforme destacado no início do presente artigo, no julgamento do Tema 309 de repercussão geral, realizado no dia 28/10/2024, em data posterior à reforma introduzida pela Lei 14.1230/2021 e ao julgamento do Tema 1.199, ocorrido em 2022, ao tratar da constitucionalidade da modalidade culposa da improbidade na redação originária do artigo 10 da LIA, o STF declarou a inconstitucionalidade da modalidade culposa de ato de improbidade administrativa prevista nos artigos 5º e 10 da Lei nº 8.429/92, em sua redação originária.
Após a decisão do Tema 309, no âmbito do RE 656.558/SP, o Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs embargos de declaração, pendentes de julgamento, para solicitar a reforma da decisão, em razão dos seguintes argumentos: a) a inconstitucionalidade do tipo culposo dos arts. 5º e 10 da LIA não era objeto do citado recurso extraordinário (julgamento extra petita); b) a decisão colide com a tese fixada no Tema 1.199 de repercussão geral; e c) modulação de efeitos da decisão.
De nossa parte, sustentamos que a previsão da improbidade culposa seria uma opção legislativa válida e não violaria o texto constitucional [4].
Ainda que o STF tenha afirmado a inconstitucionalidade da modalidade culposa, deveria, ao menos, ter efetuado a modulação de efeitos para impor efeitos prospectivos à decisão e evitar o desfazimento de condenações por improbidade culposa ocorridas desde 1992, ano da promulgação da LIA, bem como garantir a integral efetividade do Tema 1.199 da própria corte.
De fato, a declaração de inconstitucionalidade da improbidade culposa, sem modulação de efeitos, acarreta intensa insegurança jurídica, uma vez que abre a possibilidade para propositura de ações rescisórias com o objetivo de desfazer condenações por improbidade nas últimas décadas, desde a promulgação da LIA.
É preciso aguardar o julgamento dos embargos de declaração interpostos no RE 656.558/SP, com a expectativa de que o STF, caso mantenha a decisão pela inconstitucionalidade da improbidade culposa, realize a modulação de efeitos para evitar uma impactante insegurança jurídica no microssistema da improbidade administrativa, garantindo, inclusive, a integridade e coerência das decisões da própria Suprema Corte a respeito do tema. É preciso superar o diagnóstico difundido pelo ex-ministro Pedro Malan por meio da célebre frase: “No Brasil, até o passado é incerto”.
[1] STJ, AIA 30/AM, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 28/09/2011.
[2] Nesse sentido, por exemplo: MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 248; PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 64; GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 306; SOBRANE, Sérgio Turra. Improbidade administrativa: aspectos materiais, dimensão difusa e coisa julgada. São Paulo: Atlas, 2010. p. 53; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 996; FERREIRA, Sérgio de Andréa. Improbidade administrativa. Boletim de Direito Administrativo, p. 1.098, out. 2005.
[3] Tema 1.199 de repercussão geral do STF: “1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.”.
[4] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Improbidade administrativa, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 110-113.
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