Opinião

Defesa global do vulnerável: a dicotomia notarial entre civil law e common law

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  • é presidente da Academia Notarial Brasileira (ANB) diretor do Colégio Notarial do Brasil (CNB/CF) e conselheiro de direção da União Internacional do Notariado (UINL).

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26 de dezembro de 2024, 11h12

Um caso singelo, mas representativo da desigualdade do poderio econômico vigente no Brasil e no mundo nos dias de hoje chamou a atenção dias atrás. No coração de São Paulo, a maior metrópole da América Latina, o bairro da Vila Mariana tornou-se o cenário de um embate jurídico e social emblemático.

Em reportagem publicada pelo portal G1, moradores de uma área visada por incorporadoras imobiliárias foram submetidos a pressões agressivas, como assédio moral, ligações incessantes e até ameaças veladas, forçando-os a vender suas propriedades em condições claramente desvantajosas. Ao mesmo tempo, aqueles que concordavam em comercializar seus imóveis deveriam se submeter a cláusulas arbitrárias, que condicionavam a realização do negócio à concordância com a venda de patrimônio de terceiros, criando uma verdadeira celeuma entre vizinhos de porta, que passaram a indispor-se em razão da interferência do poder econômico de grandes construtoras.

O tema ganha ainda mais holofote ao vir sequenciado por uma recente decisão monocrática do Supremo Tribunal Federal que permitiu às incorporadoras realizarem a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel por meio de contrato particular com efeito de escritura pública, isto é, sem a presença de um notário para fins de transferência de propriedade no Cartório de Registro de Imóveis. A decisão derrubou uma determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que havia restringido esta possibilidade às entidades autorizadas a operar no Sistema de Financiamento Imobiliário e no Sistema Financeiro de Habitação, bem como a cooperativas de crédito, companhias securitizadoras, agentes fiduciários sujeitos à regulamentação da CVM ou do Bacen.

Prevista na Lei Federal 9.514/97, a alienação fiduciária é um tipo de garantia utilizada em operações de crédito e de financiamento na qual o devedor transfere para o credor a propriedade de um determinado bem, como um imóvel, até o pagamento da dívida, ficando o devedor, no entanto, com a sua posse direta. Quando a dívida é quitada, a propriedade é transferida de volta para o então devedor, que passa — novamente — a ter a propriedade plena do bem.

A força do poder econômico

A celeuma existente na Vila Mariana expõe então os efeitos práticos da decisão monocrática tomada na Suprema Corte brasileira, na qual vem à tona a força do poder econômico em detrimento da atuação imparcial de um profissional do Direito — o tabelião de notas —, selecionado por rigoroso concurso público pelo próprio Poder Judiciário, visando a equilibrar as forças claramente desproporcionais entre construtoras, incorporadoras e entidades financeiras frente ao cidadão comum, muitas vezes desprovido de recursos para a contratação de advogados e, agora, impedidos do aconselhamento e da orientação jurídica notarial.

Spacca

Esse episódio reforça, de forma contundente, a necessária atuação notarial no sistema jurídico da “civil law”, onde o tabelião (ou notário) atua como agente de justiça preventiva, protegendo os interesses dos hipossuficientes e evitando que os contratos se tornem instrumentos de abuso econômico. A ausência deste profissional imparcial que equilibra as forças nas negociações, possibilita que a vulnerabilidade econômica e informacional de moradores como os da Vila Mariana seja explorada de maneira desproporcional.

Predominante na Europa Continental e na América Latina, no sistema civil law, o notário é mais do que um simples formalizador de documentos; ele é um jurista imparcial investido de autoridade pública, responsável por assegurar que os negócios jurídicos respeitem o equilíbrio entre as partes, as leis existentes e a função social do contrato. Esse modelo se opõe radicalmente ao sistema jurídico da “common law”, adotado nos Estados Unidos e em outros países de língua inglesa, no qual as transações são majoritariamente privadas, sem a intervenção de uma figura imparcial e neutra, porém, sempre lastreadas em seguros contratados com entidades financeiras, cujo custo é bastante superior ao das escrituras públicas.

Em recente evento realizado pela União Internacional do Notariado (UINL) na cidade de San Juan, em Porto Rico, intitulado “Diálogos entre os sistemas jurídicos da civil law e common law”, o professor da Universidade de Direito de Harvard, nos Estados Unidos, Peter L. Murray, pontuou que a ausência de um controle notarial preventivo nos sistemas common law frequentemente resulta em contratos desequilibrados, que só são corrigidos após longos e custosos litígios jurisdicionais. Segundo ele, o notário desempenha um papel ativo na redução de riscos jurídicos, especialmente em relações assimétricas. “O modelo notarial antecipa conflitos, evitando a judicialização ex post, algo essencial para proteger cidadãos economicamente mais frágeis“, destacou em sua fala.

A afirmação do professor norte-americano se deu em um cenário propício ao debate entre os dois sistemas jurídicos existentes no mundo. Porto Rico representa um local privilegiado para o diálogo entre estes dois formatos, uma vez que conjuga elementos dos dois principais sistemas jurídicos do mundo: o civil law, herdado da colonização espanhola, e o common law, introduzido durante o período de administração norte-americana. Essa dualidade cria um cenário único em que as práticas notariais preventivas do civil law coexistem com a visão contratual mais liberal do common law. Um ambiente híbrido, que ofereceu uma oportunidade singular para avaliar as vantagens do modelo notarial, especialmente na função de proteger os mais vulneráveis, harmonizando eficiência econômica, segurança jurídica, justiça social e prevenção de litígios.

Prevenção de litígios

A prevenção de litígios, aliás, foi considerada um dos principais benefícios do modelo notarial no sistema da civil law. Estudos comparativos apresentados por notários italianos neste mesmo evento demonstraram que menos de 1% dos negócios jurídicos formalizados perante notários na Itália acabam sendo judicializados. Dado este que reflete a eficácia da atuação notarial na resolução de conflitos antes que eles ocorram, ao assegurar que todas as pessoas envolvidas compreendem suas obrigações, riscos e direitos de forma transparente. A intervenção notarial, ao antecipar problemas e corrigir abusos, elimina as lacunas que poderiam levar ao litígio, promovendo um ambiente jurídico mais seguro e harmonioso.

Desta forma, o notário também desempenha um papel essencial na pacificação social. A resolução de conflitos antes que eles se cristalizem em disputas judiciais reduz significativamente a sobrecarga do Judiciário. Na Itália, a baixa taxa de judicialização das transações notariais comprova como a atuação preventiva do notário contribui para a eficiência do sistema jurídico. No mesmo evento — em Porto Rico —, o professor alemão Rolf Sturner, renomado jurista da Universidade de Freiburg, destacou que “o notário atua como mediador neutro, criando um ambiente seguro para decisões jurídicas racionais e justas”.

Já no sistema common law, a lacuna deixada pela ausência de uma figura imparcial como o notário é preenchida, parcialmente, pelo seguro de títulos, um mecanismo que garante aos credores a proteção financeira contra falhas no título de propriedade. No entanto, essas empresas atuam com um interesse meramente comercial — já que dependem das comissões sobre a venda do seguro de título.

Esse seguro, obrigatório em quase todas as transações imobiliárias que envolvem hipotecas, representa um custo significativo para os compradores. Até 70-80% dos prêmios do seguro de título são repassados às empresas de títulos como comissões, criando um incentivo financeiro para priorizar a transação em si, em detrimento da proteção substantiva das partes, ignorando totalmente as necessidades do comprador ou da parte mais fraca na relação jurídica, não abordando o desequilíbrio intrínseco nas relações contratuais, nem protegendo a parte menos abastada contra cláusulas injustas.

Prioridade à eficiência econômica

O seguro de título, predominante nos Estados Unidos, visa a compensar o risco da falta de um registro robusto e de uma supervisão notarial eficaz, mas não protege efetivamente o comprador contra cláusulas abusivas ou injustas. Esse modelo mercantilizado, ao priorizar a eficiência econômica, onera desproporcionalmente o adquirente, sobretudo em transações menores. Já o modelo civil law, ao prever a atuação imparcial e preventiva do notário, reduz litígios e os custos adicionais associados a disputas futuras, oferecendo maior segurança jurídica e acessibilidade econômica para os vulneráveis.

Segundo apontou o professor Murray, a dependência excessiva do Judiciário para corrigir falhas contratuais torna o sistema anglo-saxão oneroso, tardio e ineficaz na proteção das partes vulneráveis. Além disso, o modelo adversarial típico do common law pressupõe que ambas as partes tenham acesso a representação jurídica de igual qualidade, o que raramente ocorre em relações assimétricas, como no caso de pequenos proprietários contra grandes incorporadoras (a semelhança com o caso da Vila Mariana é mera coincidência…). O professor de Harvard destacou ainda que a ausência de um profissional imparcial no common law permite que acordos desiguais prosperem, o que, no civil law, seria evitado pela atuação do notário como um mediador neutro, imparcial e, sobretudo, responsável pela higidez da fé pública decorrente de sua atuação.

Também neste mesmo evento internacional, o professor da Universidade de Harvard apresentou uma comparação dos custos de aquisição de propriedade entre os sistemas civil law e common law, revelando vantagens significativas nos países que adotam o notariado do tipo latino, que tendem a ser mais baixos para transações menores, favorecendo o acesso à propriedade de forma justa e equilibrada, especialmente para as partes mais vulneráveis.

No modelo notarial civil, como o praticado no Brasil, os custos são fixados e regulamentados por lei, baseados no valor da transação, garantindo um preço transparente e proporcional para todas as partes. Na Alemanha, por exemplo, o custo total de uma transação de 250 mil euros gira em torno de 1.100 euros, cobrindo todos os serviços notariais e de registro. Em contraste, no sistema common law, como nos Estados Unidos, os custos podem variar significativamente devido às taxas de advogados, taxas de empresas de títulos e o seguro de título, exigido para garantir a transação.

Em Nova York, essa mesma operação pode custar cerca de 1.600 euros ou mais, em grande parte devido à complexidade das negociações privadas e à ausência de um controle centralizado. Já no Maine, um estado de menor porte nos Estados Unidos, a mesma transação custaria aproximadamente 1.250 euros, englobando taxas de empresas de títulos e o seguro de título, que se tornou obrigatório em transações envolvendo hipotecas.

No Brasil, notário é mais relevante

No contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades econômicas e sociais, a figura do notário é ainda mais relevante. O caso da Vila Mariana serve como um alerta sobre os riscos da ausência de um controle preventivo e imparcial nas transações imobiliárias. Conforme destaca Pontes de Miranda,”a igualdade jurídica exige que os efeitos dos atos jurídicos correspondam à paridade de condições entre as partes” e, neste contexto, a atuação notarial, ao assegurar o equilíbrio entre as partes e prevenir abusos, representa uma garantia de justiça e segurança jurídica para os mais vulneráveis.

No Brasil, o ordenamento jurídico consagra princípios essenciais como a boa-fé objetiva (artigo 422 do Código Civil) e a função social do contrato (artigo 421). A atuação notarial é, então, fundamental para garantir o cumprimento desses princípios e a formalidade da escritura pública é crucial para assegurar que as partes tenham pleno conhecimento das obrigações assumidas, evitando fraudes e cláusulas abusivas. Como observa Silvio Rodrigues, “os negócios jurídicos devem se pautar pelo equilíbrio, de modo que nenhum dos contratantes seja sacrificado em benefício do outro”.

No exemplo do caso da Vila Mariana, a presença de um notário na intermediação destes contratos teria funcionado como um ponto de equilíbrio, assegurando que os moradores, independentemente de sua condição econômica, tivessem plena compreensão das transações propostas e que seus direitos fossem protegidos contra abusos. Em um contexto no qual as partes mais vulneráveis carecem de informações jurídicas adequadas, a presença do notário poderia ter evitado a imposição de termos desproporcionais e protegido os moradores de decisões precipitadas.

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  • é presidente da Academia Notarial Brasileira (ANB), diretor do Colégio Notarial do Brasil (CNB/CF) e conselheiro de direção da União Internacional do Notariado (UINL).

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