Tarifa Social de Água e Esgoto pressupõe fiscalização da lei para não onerar demais consumidores
25 de dezembro de 2024, 8h00
Os serviços de fornecimento de água e esgotamento sanitário caracterizam-se pela essencialidade, eis que a sobrevivência depende da regular e adequada disponibilização. No Brasil, segundo dados registrados pelo IBGE, 59 milhões de pessoas encontram-se inseridas na linha da pobreza [1] e não conseguem arcar com a remuneração para terem acesso à água e ao saneamento básico. Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, economistas agraciados pelo prêmio Nobel de 2024, asseveram que “A desigualdade desafia tudo, desafia o contrato fundamental das sociedades” [2]. Nessa senda, a Lei Federal nº 14.898/24 disciplinou, em âmbito nacional, a tarifa destinada a propiciar condições para que a população carente não seja excluída de usufruir de tais bens. Após o transcurso do prazo de 180 dias, previsto no artigo 13, iniciou-se a sua vigência em 13 de dezembro de 2024.
A justa oferta dos serviços públicos basilares constitui um dos pilares do microssistema consumerista, consoante se pode depreender da análise dos artigo 4º, 6º, e 22 do CDC [3]. A Lei nº 14.898/24 coaduna-se com o propósito de permitir que grupos familiares de baixa renda, que atendam às diretrizes previstas, sejam beneficiados com a Tarifa Social de Água e Esgoto. Objetiva-se, na presente coluna, analisar o teor do multicitado diploma normativo, apontando os seus aspectos positivos, mas também indicando os que se denotam negativos.
A priori, serão explicitados o conceito da modalidade tarifária implementada, a forma como será realizado o seu custeio e os requisitos para a elegibilidade dos consumidores, que terão direito à categoria. Após, transpõe-se a abordagem para os direitos e deveres dos usuários, prestadores e do poder público.
Consiste a tarifa social, nos termos do artigo 6º, da mencionada lei, no percentual de desconto de 50% sobre o montante aplicável à primeira faixa de consumo, observadas as diretrizes determinadas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. Deverá seguir, preferencialmente, a norma de referência sobre estrutura tarifária editada pela ANA, mas caso a Entidade Reguladora Infranacional competente não adira, deverá editar normativo próprio e disponibilizá-lo em seu sítio eletrônico. O valor será aplicado aos primeiros 15 m³ por residência classificada e, quanto ao excedente de consumo, poderá ser cobrada a tarifa regular [4]. Dispõe o § 2º que são padrões mínimos, a serem observados pelos titulares dos serviços públicos de água e esgoto, sem implicar revogação ou invalidação de regras, critérios ou descontos tarifários já instituídos em seus territórios. Assegura-se a preservação do direito adquirido e reza que “somente será eficaz” mediante “prévia recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, observada a legislação aplicável”.
Ora, com base na Análise Econômica do Direito [5], indaga-se se realmente o poder público arcará com a sua parcela de contribuição para que o benefício seja implantado ou se deixará que as concessionárias majorem os preços, onerando os demais consumidores. A resposta ao questionamento encontra-se sediada no artigo 8º da citada lei, segundo o qual, a tarifa social será financiada, prioritariamente, por meio de subsídio cruzado, consistente no rateio de seu custo entre as demais categorias de destinatários finais, de modo proporcional ao consumo de cada um. Assim sendo, previu-se que a carga será dividida entre os outros blocos e as categorias de consumidores da área de atuação do prestador do serviço. Identifica-se que o poder público tenciona, ao que parece, repassar o ônus do abrandamento da remuneração de tais serviços, em prol dos carentes, para os demais usuários, transferindo a sua missão social.
A instituição da tarifa social deveria ser custeada pelo próprio governo e agentes econômicos, não repassando para a coletividade despesas demasiadas, pois o equilíbrio contratual é garantido pelos artigos 4º, III, 51, § 1º, II, e § 4°, do CDC [6]. A participação do poder público dar-se-á através da intitulada Conta de Universalização do Acesso à Água, que se encontra referenciada nos artigos 9º a 11 da Lei nº 14.898/24, a ser gerida pelo Poder Executivo federal. Será integrada por dotações orçamentárias da União e demais recursos advindos do setor executivo, sujeitos à disponibilidade financeira. Entrementes, serão distribuídos, priorizando-se critérios de natureza quantitativa, geográfica, econômica e de acessibilidade. Em conformidade com o artigo 11, incisos I a IV, serão apurados: 1) a quantidade total de usuários beneficiados; 2) a diversificação regional; 3) o custo absoluto e a necessidade de suplementação financeira de cada prestador do serviço; e 4) o cumprimento de metas de universalização e de adimplemento estabelecidas pelo órgão regulador competente.
Demais consumidores provavelmente serão onerados
A contribuição do poder público não será efetivada, de modo igualitário, para todos os prestadores de serviços, visto que o § 1º do artigo 11 estabelece que o órgão federal competente indicará as informações necessárias para a alocação dos recursos, que serão coletadas pelas ERIs e consolidadas pela ANA. Outrossim, o § 3º é bastante claro no sentido de que somente farão jus os agentes econômicos que se adequem aos termos da Tarifa Social de Água e Esgoto. Nos casos em que esta não exista, o contrato de prestação de serviços deverá ser atualizado, para que seja incluída, no prazo de até 24 meses, contado da data do início da vigência da lei, e na forma de ato normativo publicado pela ERI competente. Havendo disponibilidade de recursos da Conta de Universalização, considerando-se o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, o § 3º do artigo 8º autoriza o Poder Executivo a subsidiá-la, ou seja, não há garantia de auxílio público.
A despeito do legítimo e salutar intento do governo de universalização do acesso à água e ao esgotamento sanitário, desvela-se que, em contrapartida, os demais consumidores, provavelmente, também serão onerados, não sendo cabível o desequilíbrio coibido pelo CDC [7]. Vedou-se, inclusive, o limite de incidência para a Tarifa Social de Água e Esgoto, de forma que “qualquer alteração na participação relativa da tarifa deverá ser reequilibrada para o prestador do serviço, no que couber”. A participação do poder público será por intermédio da Conta de Universalização do Acesso à Água, cujos objetivos constam no artigo 9º da Lei nº 14.898/24, mas não testificam a contribuição do governo. Podem ser agregados em três conjuntos, que envolvem os seguintes aspectos: 1) dignidade da pessoa humana; 2) proteção ambiental; e 3) investimento econômico.
A novel legislação assegura a tarifa social para os hipossuficientes que atendam aos requisitos estabelecidos com base em três fatores: a condição econômica, a faixa etária e a deficiência. Dispõe o artigo 2º, caput, da Lei nº 14.898/24, que serão beneficiados os usuários com renda per capita de até 1/2 salário-mínimo, desde que se enquadrem em um dos seguintes critérios: 1) pertencer a família de baixa renda inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais ou no sistema cadastral que venha a sucedê-lo; ou 2) integrar grupo familiar que tenha, entre seus membros, pessoa com deficiência ou pessoa idosa, com 65 anos de idade ou mais, em vulnerável estado econômico. Nessa última hipótese, exige-se a apresentação de documentos essenciais, quais sejam: 1) a comprovação da condição ou do estado destes sujeitos hipervulneráveis; 2) a demonstração de que não dispõem de meios para prover a própria manutenção, nem tampouco os seus entes de propiciá-la; e 3) o recebimento do Benefício de Prestação Continuada ou equivalente que o substitua.
Nota-se que há uma dissonância do quanto estatuído pelo conjunto normativo, em epígrafe, com a Lei nº 10.741/2003, que considera idosa a pessoa com 60 anos ou mais, mas, ao que parece, almejou o legislador restringir o acesso ao benefício. Sem embargo, com o objetivo de abranger o maior número de brasileiros, os valores recebidos do BPC, do Programa Bolsa Família e de qualquer outro benefício que venha a sucedê-los não serão computados para o cálculo da renda per capita do grupo familiar. Para se evitar a interrupção abrupta da tarifa social, em caso de perda das condições de elegibilidade, a unidade usuária terá o direito de permanecer como beneficiária por, no mínimo 3 meses. Nas faturas referentes a esse período, deverá constar aviso da perda iminente do benefício; o que se coaduna com o direito à informação dos consumidores e o princípio da transparência[8].
A Lei nº 14.898/2024 ordena conduta ativa por parte das concessionárias que lidam com o fornecimento de água e o esgotamento sanitário, visto que, como preceitua o seu artigo 4º, a classificação das unidades usuárias na categoria tarifária social deverá ser feita automaticamente pelo prestador do serviço. Isso significa que, com base em informações obtidas no CadÚnico e nos bancos de dados já utilizados, as empresas devem implementar a tarifa social, não se mantendo inertes. Sucede que, no plano fático, vislumbra-se a elevada judicialização envolvendo práticas nos serviços públicos em decorrência do descumprimento do quanto preconizado pelo artigo 22 do CDC. Os prestadores do setor, não obstante fiscalizados pelo poder público, com bastante frequência, agem ao alvedrio do ordenamento jurídico, tornando-se “litigantes habituais”, como aponta Marc Galanter [9].
Importante destacar que, nos termos § 4º do artigo 4º, compete ao prestador do serviço incluir a unidade, que satisfizer aos critérios de elegibilidade, sem necessidade de prévia comunicação; ou seja, mais um a vez, reforça-se o seu dever de diligência e de não se esquivar do cumprimento da legislação. Em caso de o usuário detectar a ausência da sua inserção, deverá dirigir-se aos centros de atendimento das concessionárias. Para fins de que a Entidade Reguladora Infranacional e as demais autoridades competentes possam acompanhar a aludida obrigação, restou previsto que, no mínimo, anualmente, deverão enviar relatório atualizado sobre os consumidores contemplados com o benefício. A inércia ou negativa ilícita por parte da empresa “motivará o entendimento de cobrança indevida”, devendo ser aplicado o artigo 42 do microssistema consumerista. Os órgãos e as entidades integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor deverão atentar para o estrito cumprimento das regras previstas, assegurando que os mais fragilizados economicamente tenha acesso facilitado aos serviços.
A perda do benefício poderá ser decretada diante da identificação de atos irregulares cometidos pelos usuários, porém, o artigo 3º, caput, dispõe que devem ser detectados mediante atendimento técnico qualificado e que enseje a devida comprovação. Nos incisos I a V, o legislador elencou as condutas ilícitas que podem acarretar a eliminação da tarifa social e coligam-se com os seguintes fatores: informacional; material; e comportamental. A verificação de incoerências ou informações inverídicas no cadastro, ou em qualquer momento do processo de prestação do benefício, poderá ensejar a exclusão do consumidor. Do mesmo modo, atos que afetem os recursos materiais necessários à prestação do serviço, como a intervenção nas instalações dos sistemas, de forma que possa atingir a eficiência da atividade. Ainda nesta mesma ótica, enquadram-se a danificação proposital, inversão ou supressão dos equipamentos destinados à tarefa.
O destinatário final deve apresentar conduta ilibada lastreada na boa-fé [10], não se utilizando de ligação clandestina, compartilhamento ou interligação de suas instalações com outros imóveis não informados no cadastro. A intenção da atual estrutura normativa é proporcionar o acesso da população carente à água e ao esgotamento sanitário, razão pela qual, mesmo após a detecção das referidas irregularidades, não se admite o imediato bloqueio. Na fatura expedida, o prestador deverá notificar a unidade usuária beneficiada, por pelo menos três meses. Neste documento, exigem-se a descrição da irregularidade e a solicitação de que seja eliminada antes de retirá-la do banco de beneficiários; procidência que se harmoniza com o artigo 51, IX, XI e XIII, do CDC, pois veda a modificação potestativa e unilateral do contrato.
Conclui-se no sentido de que a Lei nº 14.898/24 avança na proteção das famílias de baixa renda no que concerne ao abastecimento de água e saneamento básico, estipulando deveres e obrigações para as ERIs e a ANA. Amolda-se ao que Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson denominam de incentivo às instituições “inclusivas” e não “extrativas”, já que as primeiras são importantes, sob a ótica econômica e social, enquanto as segundas “perpetuam a pobreza” [11]. Malgrado a relevância da legislação em favor dos hipossuficientes, o poder público deverá assumir o seu papel para custear a tarifa social, proporcionando o reequilíbrio econômico para as concessionárias, evitando-se a sobrecarga para os demais consumidores. A sociedade, com um todo, deve contribuir com os mais carentes, mas os destinatários finais dos serviços públicos não podem ser onerados de modo a gerar o desequilíbrio na estrutura contratual.
[1] Cf.: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/42043-em-2023-pobreza-no-pais-cai-ao-menor-nivel-desde-2012.
[2] ACEMOGLU, D.; JOHNSON, S. e ROBINSON, J. Institutions as the Fundamental Cause of Long-Run Growth. Handbook of Economic Growth, 2004, p. 388 A 396.
[3] MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao art. 6º do CDC. In: MARQUES, Claudia Lima et al. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2021, p. 288-346.
[5] Cf.: COASE, Ronald H. The Problem of Social Cost. The Journal of Law & Economics, The University of Chigaco, vol. III, october, 1-44, 1960. CALEBRESI, Guido. El Coste de los Acidentes. Análisis Económico y jurídico de la Responsabilidad Civil. Barcelona: Ariel, 1984, p. 282-301.
[6] Sobre o tema : PONS, E. G. Prácticas agresivas y tutela del consumidor. Madrid: Agencia Estatal del Estado, 2019, p. 33-68.
[7]Cf.: BARENGHI, Andrea. Diritto dei Consumatori. Milano: Wolters Kluwer, 2018, p. 135-164. LE GAC-PECH, S. Droit de la consommation. Paris: Dalloz, 2017, p. 101-111.
[8] Cf.: MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 283-318.
[9] Cf.: GALANTER, Marc. Why the “haves” come out ahead: speculations on the limits of legal change. Volume 9:1 Law and Society Review, 1974.
[10] Cf: ESSER Joseph. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial de derecho privado. Trad. Eduardo Valintí Fiol. Barcelona, Bosch, 1961., p. 285-287.
[11] Cf.: ACEMOGLU, Daron; e ROBINSON, J. Por qué as Nações Fracassam: As Origens do Poder, da Propriedade e da Pobreza. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2012, p. 55-78.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!