Opinião

Violência contra mulheres: o sequestro neoconservador de uma agenda feminista

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  • é doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS professora visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFPel e integrante da Rede Latino-Americana de Acadêmicas e Acadêmicos de Direito (Red Alas).

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24 de dezembro de 2024, 11h18

O avanço do neoconservadorismo é um fenômeno que vem sendo observado em diversos países da Europa, América do Norte e América Latina. Embora a agenda neoconservadora seja distinta entre os países, há aspectos comuns tais como a centralidade atribuída à família tradicional (heterossexual), à sexualidade, à reprodução e aos valores cristãos [1]. O neoconservadorismo que se origina da aliança entre neoliberais e conservadores engendra um discurso que tem como foco a crise da família [2] e pode ser caracterizado como uma reação ao avanço das demandas feministas e LGBTQIA+. Ou seja, temas de gênero e sexualidade estão no centro da pauta neoconservadora. O neoconservadorismo é convergente ao neoliberalismo na defesa do mercado e contra a intervenção do estado para reduzir as desigualdades sociais, promove a responsabilidade individual e a privatização do estado. Assim, o neoconservadorismo tem como características a atuação articulada de atores religiosos (especialmente evangélicos) com outros setores, uma acentuada juridificação da moralidade, operar em contextos democráticos, ser transnacional e neoliberal [3].

No Brasil, o crescimento da onda neoconservadora em 2013 teve como consequências o golpe (impeachment) da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e a eleição de Jair Bolsonaro, para Presidência da República, em 2018. O uso de discursos racistas e de ódio contra mulheres e pessoas LGBTQIA+[4], de defesa da família tradicional (patriarcal) e de valores religiosos [5], de reação ao feminismo e à suposta “ideologia de gênero”, de defesa do punitivismo, do militarismo, de Israel, do neoliberalismo [6] e contra os direitos humanos estiveram presentes na campanha do então candidato e mantiveram-se no seu governo, transformando-se em políticas públicas [7].

Em 2022, a eleição de Lula para Presidência da República não freou o avanço do neoconservadorismo, e o Congresso Nacional eleito pode ser considerado o mais conservador da história republicana brasileira [8]. Em 2023, neoconservadores se aliaram à extrema-direita e ao militarismo para pregar a ruptura democrática, que culminou com a tentativa de golpe de estado na Esplanada dos Ministérios. Nas eleições municipais de 2024, a força dos partidos neoconservadores elegeu um número significativo de prefeitos no país.

Sequestro de uma agenda feminista

Mas, além da aliança neoconservadora em temas relacionados à família e aos direitos sexuais e reprodutivos, argumento que o neoconservadorismo não se fixou apenas na pauta moral, ele avançou e sequestrou a agenda de violência contra as mulheres, para impor, sorrateiramente, o punitivismo como política penal de gênero. A importância da violência de gênero para o neoconservadorismo pode ser comprovada pelo aumento dos projetos de lei sobre o tema que tramitam no Congresso Nacional. Uma rápida pesquisa no Portal da Câmara Federal demonstra que de 2013 a 2018 foram apresentados 311 projetos de lei, cujo tema foi a violência contra mulheres. Entre 2019 e 2023, houve um crescimento expressivo dessa pauta, totalizando 783 projetos de lei. Ou seja, a partir de 2019 observa-se um acentuado crescimento de projetos de lei envolvendo o tema da violência contra mulheres. Entre 2018 e 2024, dos 53 projetos de lei em que o termo “violência de gênero” foi o descritor para a busca, 35% deles criam crimes ou aumentam penas, e todos eles foram propostos por partidos conservadores e neoconservadores [9].

Spacca

O aumento do número de projetos de lei punitivistas no âmbito da violência de gênero está diretamente relacionado ao crescimento da bancada neoconservadora e de extrema-direita no Congresso Nacional. Embora nem todos as proposições legislativas possam ser consideradas punitivistas, o fato é que a grande maioria dos projetos repressivos apresentados é de autoria de parlamentares neoconservadores.

O punitivismo é um elemento chave do neoconservadorismo. Por meio da retórica da “proteção” e centrada na responsabilidade pessoal, o discurso repressivo propõe “condenações mais severas, encarceramento massivo, leis que estabelecem condenações obrigatórias mínimas e perpetuidade automática no terceiro crime (‘three strikes and you’re out’), estigmatização penal, restrições à liberdade condicional, (…) políticas de ‘tolerância zero'”, [10] etc.

A mesma lógica punitiva neoconservadora que criminaliza os direitos reprodutivos, com especial ênfase ao aborto, ou ataca o gênero, está presente na criminalização da violência contra mulheres, mas agora o gênero é utilizado como argumento de defesa das mulheres. Esse foi o caso do PL 4.266/2023, de autoria da senadora Margareth Buzetti, do PSD/MT – denominado de “Pacote Antifeminicídio” – que foi transformado na Lei 14.994/2024.

A Lei 14.999/2024, que promoveu alterações no Código Penal, na Lei de Execução Penal, de Contravenções Penais, na Lei Maria da Penha, na Lei de Crimes Hediondos e no Código de Processo Penal, aumentou a pena de vários delitos e agravou as condições de cumprimento da sanção, é um perfeito exemplo da retórica punitivista em defesa dos direitos das mulheres.  No projeto de lei PL 4.266/2023, a senadora justificou essas mudanças afirmando seria “fundamental para transmitir uma mensagem clara de repúdio a esse delito e garantir maior proteção às mulheres” e que a punição adequada seria “essencial para desencorajar os agressores e promover a justiça, proporcionando um ambiente seguro e igualitário para todas as pessoas, independentemente do seu gênero”.

A retórica de mais punição para maior proteção é mobilizada juntamente com a ideia de justiça e segurança, estabelecendo um discurso com fácil apelo social. Afinal, quem não quer mais proteção, justiça e segurança para as mulheres? O problema é que esse discurso pretende substituir o investimento em políticas sociais, demonstrando a aliança entre neoconservadorismo e neoliberalismo. A diminuição das políticas sociais insere-se na racionalidade neoliberal de redução do estado voltado ao bem-estar, de privatização, de ampliação do punitivismo e do encarceramento em massa da população mais pobre e mais vulnerabilizada socialmente, como resposta à redução de políticas sociais.

O agravamento da pena dos “precursores do crime de feminicídio (lesão corporal, injúria, difamação, calúnia, ameaça e vias de fato) praticados contra a mulher ancora-se na teoria das janelas quebradas, política criminal criada nos anos oitenta que afirma que “se uma janela de um prédio for quebrada e não for consertada, todas as outras janelas logo serão quebradas” [11]. Assim, reprimir duramente condutas não letais de violência doméstica seria uma forma de prevenir o feminicídio. No entanto, os estudos e a realidade têm demonstrado que o endurecimento das penas não previne a morte de mulheres, porque a violência contra mulheres não é apenas uma ação de responsabilidade individual. Ela é produto de uma sociedade violenta, que gera violência por meio da exclusão social e da atuação institucional. Ao propor única e exclusivamente a responsabilidade individual, exonera-se a responsabilidade das instituições do estado na produção da violência, tais como o poder executivo, legislativo e judiciário. O poder legislativo produz violência de gênero quando elabora e aprova leis que apostam no punitivismo e não na prevenção e assistência. O executivo produz violência quando não investe em políticas de prevenção e assistência. O judiciário produz violência quando encarecera massivamente.

A Lei 14. 994/2024 também estabeleceu a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, bem como a “vedação de nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena. Essa mudança poderá ter efeitos perversos sobre a vida das mulheres, especialmente se houver filhos(as), pois a perda do cargo, função pública, mandato ou a impossibilidade de nomeação, designação ou diplomação, poderá acarretar a restrição alimentar e a perda da condição econômica da família. Ou seja, uma alteração com o intuito de punir o agressor terá como efeito a punição econômica das mulheres e de seus filhos(as).

As alterações legais que impactam diretamente a Lei Maria da Penha, tais como o aumento da pena do crime de lesão corporal praticado com violência doméstica para reclusão de 2 a 5 anos e do crime de ameaça, sem possibilidade de representação, são nocivas às mulheres. A impossibilidade da retratação no crime de ameaça retira das mulheres a capacidade de decidir se desejam ou não prosseguir com a ação penal, reduz sua autonomia, e sobretudo, reforça a ideia de que apenas o Estado está autorizado a falar sobre corpos femininos, fortalecendo práticas e poderes autoritários. Além disso, poderá diminuir o registro de casos, pois as mulheres podem deixar de realizar o registro ou abandonar o processo porque não mais poderão decidir quando querem manter a denúncia, inviabilizando o artigo 16 da LMP.

A ausência de debate sobre a lei revela seu caráter autoritário porque desconstruiu o processo democrático que envolveu a elaboração da lei Maria da Penha e excluiu o diálogo com os movimentos feministas e de mulheres. As alterações legais representam a derrota da proposta jurídico-feminista da LMP, cuja centralidade está na prevenção e assistência e não na punição.

A lei ainda tornou o feminicídio um delito autônomo (artigo 121-A, CP) e aumentou as penas de 12 a 30 para 20 a 40 anos de reclusão, mantendo a definição como a morte de mulher por “razões da condição do sexo feminino”. Ao manter a conceituação biologizante e binária que excluiu o gênero da definição do feminicídio que está na base da conceituação feminista, revela o uso utilitário do conceito de gênero. Ao aumentar desproporcionalmente a pena do feminicídio, dos crimes de violência doméstica e de descumprimento de medidas protetivas e agravar as condições de cumprimento das penas em crimes praticados com violência doméstica e familiar, reforça o sistema de justiça criminal e com isso, todo o aparato repressivo e militarizado brasileiro. Ao final, mais recursos deverão ser destinados à polícia, ao ministério público e ao judiciário e, consequentemente, menor parcela do orçamento será destinada às políticas sociais estruturais.

A ausência de evidências que justifiquem o aumento das penas e a restrição de direitos, demonstra que a racionalidade da proposta legislativa é o punitivismo. Estudos baseados em evidências demonstram que o que funciona para prevenir a violência doméstica e, portanto, o feminicídio, são programas destinados a mudar as normas sociais e crenças de aceitação da violência contra mulheres, onde seja, a socialização de gênero, o que deve incluir meninas e meninos, homens e mulheres; programas de parentalidade para evitar comportamentos violentos de crianças no futuro; educação para evitar a punição corporal de crianças; tratamento para alcoolismo, quando a violência está relacionado a esse fator, pois o abuso de álcool aumenta a exposição ao risco de violência e programas destinados a aumentar a renda das mulheres.

A lei é um desserviço ao enfrentamento da violência contra as mulheres e por isso não há razão para comemorar. Ao contrário, temos elementos de sobra para rejeitá-la.

O sequestro neoconservador da agenda de violência contra as mulheres e sua captura pelo feminismo institucional é um alerta sobre a gravidade dos rumos que o debate sobre a violência de gênero tomou no país e sobre o futuro dessa agenda, agora nas mãos de neoconservadoras(es).

 


[1] LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro. Porto Alegre: Zouk, 2019, p. 29.

[2] BIROLI, Flávia. MACHADO, Maria das Dores Campos. VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020.

[3] Idem.

[4] O que Bolsonaro já disse de fato sobre mulheres, negros e gays. Online: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/06/politica/1538859277_033603.html Acesso em 03 de nov. de 2024.

[5] O slogan da campanha de Bolsonaro era “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

[6] LACERDA, Marina Basso. Obra citada, 2019.

[7] Bolsonaro exclui LGBT de diretrizes de Direitos Humanos. Online: https://andes.org.br/conteudos/noticia/bolsonaro-exclui-lGBT-de-diretrizes-de-direitos-humanos1. Acesso em 03 de nov. de 2024. Ver também CAMPOS, Carmen Hein de. MUHLEN, Eduardo Von. A política normativa antigênero no Brasil (2019-2022). In CAMPOS, Carmen Hein de. CARDOSO, Fernando da Silva. BERNARDES, Márcia Nina. Neoconservadorismo e ideologias antigênero na América Latina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024, p.125-155.

[8] Conforme estudo do Cfemea, o Congresso eleito em 2022 é o mais conservador em termos de direitos sexuais e reprodutivos, violência contra mulheres, posição de família, posicionamento sobre cuidado, religião, e ideologia de gênero. Perfil Parlamentar (2023-2026) Sob a Ótica da Agenda Feminista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria. Online: file:///Users/carmen/Downloads/Perfil_Parlamentares_Cfemea_2023%20(2).pdf

[9] Os projetos foram propostos indivuidal ou coletivamente pelos partidos União Brasil, Republicanos, PSL, Avante, PSD, PSDB, PTB, Cidadania, Podemos, PP e MDB.

[10] ARGÜELLO, Katie: Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem.  In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 17, números 19/20, 1º e 2º semestre de 2012. Rio de Janeiro: Revan, p. 207-230.

[11] O nome Broken Windows Theory foi derivado de um experimento conduzido por Philip Zimbardo (1969), no qual um automóvel abandonado foi colocado em um bairro de alta criminalidade, onde permaneceu intocado por uma semana até que parte dele foi danificado por um pesquisador. Poucas horas após o dano inicial, o carro foi destruído. A teoria postula que, em certos bairros, se uma janela quebrada permanecer sem conserto, isso alerta os outros de que essa é a “norma”, e quebrar mais janelas se torna mais aceitável; em outras palavras, a falha em aplicar pequenas infrações públicas contribui para uma espiral descendente na qual os moradores se tornam menos envolvidos e afastados da comunidade, permitindo assim que o crime e o vandalismo proliferem; e, além disso, essa desordem estaria indiretamente ligada a crimes graves. Essa teoria foi utilizada por James Q. Wilson and George L. Kelling, em 1982, a partir da experiência de patrulhamento a pé em Newark.

Autores

  • é doutora em Ciências Criminais (PUC-RS), professora visitante no mestrado em Direito da UFPEL e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Direito do UniBrasil.

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