Opinião

Violação de prerrogativas e desumanização do processo judicial: uma crítica à Resolução nº 591 do CNJ

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24 de dezembro de 2024, 9h16

A Resolução nº 591 [1] de 28/10/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regulamenta aspectos do processo judicial eletrônico e sessões de julgamento nos tribunais no país, incluiu a previsão de realização de sustentação oral por meio de gravação em áudio ou vídeo, ou seja, uma sustentação oral assíncrona a ser assistida ou ouvida pelos julgadores.

Eis o artigo em específico trazido na resolução citada:

Art. 9º Nas hipóteses de cabimento de sustentação oral, fica facultado aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 (quarenta e oito) horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual ou prazo inferior que venha a ser definido em ato da Presidência do Tribunal.

§ 1º O envio do arquivo de sustentação oral será realizado por meio do sistema de peticionamento eletrônico ou equivalente definido pelo Tribunal, gerando protocolo de recebimento e andamento processual.

§ 2º O arquivo eletrônico de sustentação oral poderá ser de áudio e/ou vídeo, devendo observar o tempo máximo de sustentação e as especificações técnicas de formato, resolução e tamanho, definidos em ato da Presidência do Tribunal, sob pena de ser desconsiderado.

§ 3º O advogado e o procurador firmarão termo de declaração de que se encontram devidamente habilitados nos autos e de responsabilidade pelo conteúdo do arquivo enviado.

§ 4º A secretaria do órgão julgador certificará nos autos o não atendimento das exigências previstas nos §§ 2º e 3º

§ 5º As sustentações orais por meio eletrônico ficarão disponíveis no sistema de votação dos membros do órgão colegiado desde o início da sessão de julgamento.

§ 6º Durante o julgamento em sessão virtual, os advogados e procuradores poderão realizar esclarecimentos exclusivamente sobre matéria de fato, os quais serão disponibilizados, em tempo real, no sistema de votação dos membros do órgão colegiado.

Reservo-me a não comentar exatamente sobre o debate de que o CNJ tem extrapolado suas funções, questão que já vem sendo objeto de ampla (e justa) crítica por juristas.

Mas especificamente sobre o tema em análise, a previsão merece uma reflexão crítica sob diversos aspectos, especialmente por seus impactos negativos no livre exercício profissional da advocacia e na dinâmica das relações humanas no processo judicial.

Limitações ao livre exercício profissional

Ao condicionar a sustentação oral à apresentação de gravação, a resolução restringe a interatividade da atuação do advogado em uma das mais importantes etapas do processo judicial: o momento de persuadir os julgadores. Essa previsão, em que o advogado fala para uma câmera em vez de interagir diretamente com os magistrados, compromete a essência do contraditório e da ampla defesa, pilares do Estado democrático de direito.

Spacca

A disposição do §§5º de que o arquivo de áudio e vídeo permanecerá disponível para acesso e consulta na plataforma não implica na conclusão de que serão efetivamente vistos e ouvidos. Essa previsão não existe. Caberá aos jurisdicionados confiar nesse compromisso?

Outro ponto primordial que se desconsidera integralmente é o conteúdo da própria sustentação oral conforme a ordem de fala no julgamento. Isso porque a advogada que faz a sustentação oral por último, ou depois da patrona da parte adversa, baseia-se muito no próprio conteúdo do que se disse anteriormente, aproveitando-se de sua posição naquele momento por alguma circunstância processual definida (exemplo: a patrona do recorrente costuma fazer a sustentação oral primeiro do que a do recorrido) para preparar e modificar no ato a sua própria sustentação.

Esse elemento restará completamente suprimido e representa flagrante limitação ao exercício amplo e irrestrito da advocacia que é, em verdade, o exercício do direito fundamental de um cidadão assistido por aquela profissional naquele momento.

Ainda, o §6º não esclarece como a advocacia poderá exercer de fato o direito legal de usar da palavra “pela ordem” (artigo 7º, X da Lei nº 8.906/94) para intervir imediata e sumariamente para esclarecer equívoco ou dúvida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influenciem na decisão. Note-se que a redação da Resolução suprime inclusive a menção a documentos e afirmações duvidosas ou equivocadas, como consta na legislação vigente.

A fragilidade das relações humanas e a sociedade líquida

Não se pode deixar de notar que a previsão também reflete o fenômeno descrito por Zygmunt Bauman em sua teoria da “modernidade líquida”, na qual as relações humanas se tornam cada vez mais efêmeras e destituídas de profundidade. O contato presencial e a interação humana são fundamentais para que as decisões judiciais sejam tomadas com base não apenas nos argumentos apresentados, mas também na comunicação não verbal, nas emoções expressas e nas reações imediatas entre advogados e julgadores.

Gravar uma sustentação em vídeo ou áudio reduz o processo judicial a uma experiência desumanizada, fria e distanciada. Essa perda de contato real empobrece o debate jurídico e compromete a possibilidade de reações autênticas dos magistrados, além de anular a possibilidade de adaptação do advogado aos questionamentos ou às reações dos julgadores durante o ato processual.

O risco da superficialidade e a cultura do influencer

Ao privilegiar gravações, cria-se um ambiente propício para a transformação do ato processual em uma produção telemática/midiática. Há o risco de fomentar uma cultura de “advogados influencers” ou “advogados youtubers”, que se preocupam mais com a estética e a edição da apresentação do que com a substância jurídica de seus argumentos. Falar para uma câmera, em um vídeo gravado, elimina a interação humana instantânea, que é inerente ao debate jurídico e ao contraditório. Diferente de um julgamento ao vivo, mesmo que realizada virtualmente, onde existe a possibilidade de interação em tempo real, a gravação isola o advogado de quaisquer reações diretas dos magistrados, prejudicando a adaptação do discurso a questionamentos ou reações sutis.

A falta de interatividade compromete a espontaneidade e a profundidade do diálogo jurídico, transformando o processo em uma experiência unidirecional e, frequentemente, artificial. Além disso, o ambiente gravado pode induzir a um distanciamento emocional e intelectual dos próprios julgadores, que passam a assistir a sustentações como espectadores passivos, em vez de participantes ativos no processo judicial. Essa tendência é perigosa, pois desloca o foco do debate jurídico para a superficialidade das apresentações midiáticas, desvirtuando a prática advocatícia e prejudicando os jurisdicionados.

Os prejuízos dos critérios quantitativos nas avaliações dos tribunais

Um dos fatores que merece destaque é a influência de selos de avaliação dos tribunais, baseados majoritariamente em critérios quantitativos, como produtividade e velocidade de tramitação processual. Embora tais métricas possam parecer desejáveis em um sistema que busca celeridade, a priorização excessiva de números ignora aspectos qualitativos cruciais, como a profundidade e a justiça das decisões.

A medida de permitir gravações para sustentação oral pode contribuir para melhorar estatísticas relacionadas ao tempo de julgamento, mas esse ganho é ilusório. A verdadeira qualidade de um julgamento justo não se mede pelo tempo economizado ou pela quantidade de processos resolvidos, mas pela preservação dos direitos e garantias fundamentais das partes envolvidas. A sustentação oral ao vivo, mesmo em ambiente virtual, permite que advogados dialoguem com magistrados de forma autêntica e direta, contribuindo para um julgamento mais humanizado e atento aos detalhes específicos de cada caso.

Por outro lado, a substituição por gravações contribui para a desumanização do processo, transformando o ato de sustentar teses jurídicas em uma mera formalidade, sem impacto imediato sobre os julgadores. Essa abordagem também pode incentivar uma cultura de superficialidade, onde as decisões são tomadas com base em critérios objetivos que desconsideram a complexidade das relações e argumentos apresentados.

Um sistema de justiça que prioriza apenas resultados estatísticos compromete a sua própria razão de ser: garantir soluções justas e equânimes para os conflitos apresentados. A valorização de métricas qualitativas é essencial para resgatar o propósito fundamental do Judiciário, mesmo que isso implique, por exemplo, maior investimento de tempo nas sustentações realizadas ao vivo, onde o contraditório e a ampla defesa possam ser exercidos de maneira plena.

É preciso estar atento e forte”

Ainda no início deste mês de dezembro, a pretexto de elogiar o poder de concisão de advogados na tribuna, um ministro do STJ acenou para a possibilidade de revisão do tempo de 15 minutos destinado às sustentações orais, avaliando que talvez 10 minutos seja suficiente[2].

No âmbito do estado de Mato Grosso, em 2024 a Turma Recursal Única reduziu o tempo de fala nas sustentações orais de dez para cinco minutos, e basta assistir às sessões de julgamento para observar que em grande parte dos casos as(os) advogadas(os) são interrompidos para serem informados que o tempo já acabou ou está acabando.

Circunstâncias como essas evidenciam uma pressa disfarçada de agilidade processual que pode acarretar no julgamento açodado e de menor qualidade. É importante salientar que a eficiência do processo em termos de rapidez na tramitação certamente não tem grande impacto em decorrência das sustentações orais, pois os processos permanecem na maior parte do tempo aguardando providências da própria serventia, o que pode evidenciar a necessidade de ampliar a força de trabalho envolvida no sistema de justiça e não a supressão do direito de fala da advocacia na tribuna.

A supressão de direitos e a corrosão de direitos fundamentais na Era moderna se dá de maneira muito sutil, muito sofisticada.

Precisamente sobre a temática em questão, assiste-se a uma retirada gradual e quase imperceptível de prerrogativas profissionais, o que exige que estejamos “atentos e fortes” como alertava Gal em outros tempos como forma de resistência.

Conclusão

A Resolução nº 591 do CNJ precisa ser revista e alterada no ponto em debate, especialmente na previsão sobre a sustentação oral por gravação. O processo judicial não é apenas uma atividade técnica, mas também um exercício de comunicação interpessoal que exige a presença humana para ser pleno e justo. Substituir o contato humano por gravações desumaniza o processo e fragiliza o pleno exercício da advocacia, além de comprometer a qualidade das decisões judiciais.

Ainda que o processo judicial atual seja eletrônico, todos os atores do sistema de justiça permanecem humanos e merecem que os aspectos da vida real posta em julgamento sejam apreciados na presença de seus defensores, viabilizando o amplo e irrestrito direito constitucional a um processo democrático e que reflita na preservação do direito fundamental da defesa de seu direito e de seus interesses.

A advocacia deve resistir a tais retrocessos, preservando a dignidade da profissão e a essência do processo judicial como instrumento de justiça real e que, ainda que por meio eletrônico, permaneça humanizada.

 


[1] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5820 acesso em 18 dez. 2024.

[2] “Ministro do STJ elogia sustentações orais objetivas e propõe rever prazo de 15 minutos”. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2024-dez-04/ministro-do-stj-elogia-sustentacoes-orais-objetivas-e-propoe-rever-prazo-de-15-minutos/>, acesso em 18 dez. 2024.

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