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Natal, Martin Luther King Jr. e sobre quem recaem os ajustes fiscais

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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24 de dezembro de 2024, 8h00

Véspera de Natal é, em tese, tempo de resgate coerente da esperança de um mundo melhor. Todavia, na seara das finanças públicas, tal anseio tende a ignorar o conflito distributivo que se acirra na realidade brasileira, tal como o indicam a escalada dos juros futuros e a desvalorização do real em face do dólar.

As contradições se acirram em meio à disputa do que é alvo de ajuste fiscal para fins de contenção/restrição de custeio, bem como de quem paga, ou não, a conta da vida em sociedade.

Nesse contexto, a Emenda Constitucional 135, de 20 de dezembro de 2024, (disponível aqui) corresponde a mais uma reforma para fazer a Constituição “caber” no orçamento, subordinando-a à Lei Complementar 200/2023 e, potencialmente por isso, rebaixando sua normatividade. Em última instância, o que esteve em pauta não era – única e tão somente – a alegada sobrevivência do “Novo Arcabouço Fiscal”, mas, sobretudo, a definição do que é prioridade alocativa do Estado.

Não deixa de ser, no mínimo, contraditório ver, por exemplo, o retrocesso na dimensão equitativa do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que impôs perda estimada de R$2 bilhões/ano aos Estados mais pobres da federação. Tal retrocesso se dá apenas 4 anos após haver sido aprovada a Emenda do “Fundeb Permanente” (Emenda 108/2020), a partir de uma pauta de ajuste fiscal conduzida pelo ex-ministro da Educação que implementou a transição do Fundef para o Fundeb.

Não deixa de ser irônico também que tenha havido, primeiro, a restrição ao acesso do benefício de prestação continuada (BPC) e a limitação ao aumento real do salário mínimo (PL 4.614/2024), antes de qualquer revisão estrutural sobre o “Sistema de Proteção Social” dos Militares, bem como sobre as renúncias fiscais.

Noutro giro, ainda é bastante tímido, aliás, o esforço empreendido pelo PLP 210/2024 (já aprovado pelo Congresso) de, nas hipóteses de apuração de déficit primário do Governo Central ou de verificação de que as despesas discricionárias totais tenham redução nominal, na comparação do realizado no exercício anterior com o imediatamente anterior, a partir do exercício de 2025, vedar, no exercício subsequente ao da apuração, e até a constatação de superávit primário anual:

I – a promulgação de lei que conceda, amplie ou prorrogue incentivo ou benefício de natureza tributária; e

II – até 2030, no projeto de lei orçamentária anual e na lei orçamentária anual, a programação de crescimento anual real do montante da despesa de pessoal e de encargos com pessoal de cada um dos Poderes ou órgãos autônomos acima do índice inferior de que trata o § 1º do art. 5º desta Lei Complementar, excluídos os montantes concedidos por força de sentença judicial.

Desde que foi anunciado o mais recente pacote fiscal, toda a pressão que o mercado financeiro tem feito no câmbio e nos juros futuros decorre da promessa de um ajuste fiscal rápido e forte, o que, quando do envio do PLDO-2024 e do projeto de lei complementar que deu origem ao Novo Arcabouço Fiscal, no início de 2023, não era algo imprescindível ou inevitável.

O governo federal perdeu a oportunidade de rever a meta de inflação via Conselho Monetário Nacional (CMN), o que foi alertado por diversos economistas em carta aberta disponível aqui. Assim como perdeu a oportunidade de rever o Decreto 3088/1999 para aprimorar o sistema de metas de inflação e estabelecer, mais claramente, um devido processo da política monetária, como já suscitamos nesta coluna Contas à Vista. Em ambos os casos, eram atos privativos do Executivo, sem necessidade de negociação com o Congresso. Havia legitimidade política e espaço decisório em relação ao mercado no início do governo.

Spacca

Mas por querer ser mais realista que o rei, o governo propôs meta de resultado primário de déficit zero em 2024 e superavit em 2025, além de haver mantido a meta irrealista de inflação em 3%, a um custo socioeconômico considerável. Quando o governo alterou a meta de resultado primário para o próximo ano no PLDO-2025, em abril de 2024, o mercado financeiro e, em especial, o presidente do Banco Central começaram a precificar, em reuniões fechadas (algo proibido por ato infralegal do BC apenas a partir de agosto de 2024), um precipício fiscal e inflacionário.

De maio deste ano em diante (logo após o envio do PLDO-2025), o BC inverteu o seu forward guindance e começou a aumentar os juros. Desde então, a exigência dos analistas do mercado financeiro, subsidiada pelo BC, era a necessidade de concluir a agenda alcunhada de “DDD fiscal”, proposta pelo governo anterior no âmbito da PEC 188/2019, de desvinculação/ desobrigação/ desindexação das proteções constitucionais que amparam o custeio dos direitos fundamentais.

Como o governo, imerso em contradições, não entregou, no ajuste anunciado em 27/11/2024, a conclusão dessa tríade DDD, contratada desde o arranjo do NAF, o mercado financeiro e o BC partiram para uma postura ainda mais conflituosa, donde se depreende a pressão cambial e, em especial, a escalada da taxa básica de juros com um aperto monetário de 3% na Selic até março de 2025.

A escolha pelo acirramento do conflito distributivo no orçamento público é cada vez mais evidente… É preciso reiterar que nenhuma medida foi enviada ao Congresso para, de fato, rever o “Sistema de Proteção Social” dos militares, a despeito do seu anúncio. Segue intocada a regressiva tributação sobre patrimônio e renda, tanto quanto pouco se avançou nas iniquidades remuneratórias internas ao serviço público.

Distorções se acumulam, em igual medida, na dinâmica dos duodécimos dos poderes e órgãos autônomos, ao ponto de, por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça precisar conter auxílio natalino a servidores do TJ-MT, que equivale a mais de um ano do benefício alimentar no âmbito do programa Bolsa Família. A esse respeito, José Roberto Afonso e eu debatemos o quanto o sistema de freios e contrapesos desbalanceado agrava o desequilíbrio das contas públicas no nosso país.

Infelizmente, mais uma vez, o ajuste fiscal tende a recair, primordial e rapidamente, sobre os mais vulneráveis. As escolhas sobre a intensidade e a velocidade do ajuste fiscal, bem como sobre a fixação da taxa básica de juros não são neutras em termos político-distributivos. Afinal, a desigualdade é uma escolha orçamentária, na medida em que o Estado é, direta ou indiretamente, o grande árbitro de perdedores e ganhadores na vida em sociedade e nas relações com o mercado.

O que é alvo de ajuste traz consigo uma ordenação de prioridades, que encerra uma espécie de acomodação histórica da desigualdade, já que tem sido recorrentemente adiada a implementação planejada e progressiva da força civilizatória da nossa Constituição Cidadã…

Em 16 de abril de 1963, Martin Luther King Junior escreveu sua famosa Carta de um prisioneiro de Birmingham (disponível aqui), na qual ele contundentemente sintetizava a sua indignação com o apartheid racial americano que, guardadas as devidas proporções, muito me lembra a iniquidade estrutural das contas públicas brasileiras:

“A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares. Estamos presos em uma rede inescapável de mutualidade, amarrados em uma única vestimenta do destino. O que quer que afete um diretamente, afeta todos indiretamente.

[…] Vocês deploram as manifestações que estão ocorrendo em Birmingham. Mas sua declaração, lamento dizer, não expressa uma preocupação semelhante com as condições que causaram as manifestações. Tenho certeza de que nenhum de vocês gostaria de se contentar com o tipo superficial de análise social que lida meramente com efeitos e não lida com causas subjacentes. É lamentável que as manifestações estejam ocorrendo em Birmingham, mas é ainda mais lamentável que a estrutura de poder branco da cidade tenha deixado a comunidade negra sem alternativa.

Em qualquer campanha não violenta, há quatro etapas básicas: coleta de fatos para determinar se existem injustiças; negociação; autopurificação; e ação direta. Passamos por todas essas etapas em Birmingham. Não há como negar o fato de que a injustiça racial envolve esta comunidade. Birmingham é provavelmente a cidade mais completamente segregada dos Estados Unidos. Seu histórico feio de brutalidade é amplamente conhecido. Negros têm sofrido tratamento grosseiramente injusto nos tribunais. Houve mais atentados não resolvidos de casas e igrejas de negros em Birmingham do que em qualquer outra cidade do país. Esses são os fatos duros e brutais do caso. Com base nessas condições, os líderes negros buscaram negociar com os pais da cidade. Mas estes últimos se recusaram consistentemente a se envolver em negociações de boa-fé.

[…] Sabemos por experiência dolorosa que a liberdade nunca é voluntariamente dada pelo opressor; ela deve ser exigida pelo oprimido. Francamente, ainda não me envolvi em uma campanha de ação direta que fosse “oportuna” na visão daqueles que não sofreram indevidamente com a doença da segregação. Há anos ouço a palavra “Espere!” Ela soa no ouvido de todo negro com familiaridade penetrante. Esse “Espere” quase sempre significou “Nunca”. Devemos chegar a ver, com um de nossos ilustres juristas, que “justiça muito adiada é justiça negada”.

Esperamos por mais de 340 anos por nossos direitos constitucionais e dados por Deus. As nações da Ásia e da África estão se movendo com velocidade de jato em direção à independência política, mas ainda rastejamos a passo de cavalo e charrete em direção a uma xícara de café em um balcão de almoço. Talvez seja fácil para aqueles que nunca sentiram os dardos pungentes da segregação dizer: “Espere”. Mas quando você viu multidões cruéis linchando suas mães e pais à vontade e afogando suas irmãs e irmãos por capricho; quando você viu policiais cheios de ódio xingando, chutando e até matando seus irmãos e irmãs negros; quando você vê a vasta maioria de seus vinte milhões de irmãos negros sufocando em uma gaiola hermética de pobreza no meio de uma sociedade afluente; […] Chega um momento em que o cálice da resistência transborda, e os homens não estão mais dispostos a serem mergulhados no abismo do desespero. Espero, senhores, que vocês possam entender nossa impaciência legítima e inevitável. Vocês expressam muita ansiedade sobre nossa disposição de quebrar leis. Esta é certamente uma preocupação legítima. Já que tão diligentemente pedimos às pessoas que obedeçam à decisão da Suprema Corte de 1954 que proibiu a segregação nas escolas públicas, à primeira vista pode parecer um tanto paradoxal para nós conscientemente quebrarmos leis. Alguém pode muito bem perguntar: “Como você pode defender a quebra de algumas leis e obedecer a outras?” A resposta está no fato de que existem dois tipos de leis: justas e injustas. Eu seria o primeiro a defender a obediência a leis justas. Não se tem apenas uma responsabilidade legal, mas moral, de obedecer a leis justas. Por outro lado, tem-se uma responsabilidade moral de desobedecer a leis injustas. Eu concordaria com Santo Agostinho que “uma lei injusta não é lei nenhuma”.

[…] Se eu disse algo nesta carta que exagera a verdade e indica uma impaciência irracional, peço que me perdoe. Se eu disse algo que subestima a verdade e indica que tenho uma paciência que me permite me contentar com qualquer coisa menos que fraternidade, peço a Deus que me perdoe.

Espero que esta carta os encontre fortes na fé. Espero também que as circunstâncias em breve me permitam conhecer cada um de vocês, não como um integracionista ou um líder dos direitos civis, mas como um colega clérigo e um irmão cristão. Vamos todos esperar que as nuvens escuras do preconceito racial logo passem e que a névoa profunda do mal-entendido seja levantada de nossas comunidades encharcadas de medo, e em algum amanhã não muito distante as estrelas radiantes do amor e da fraternidade brilhem sobre nossa grande nação com toda sua beleza cintilante.

Seu pela causa da Paz e da Fraternidade, Martin Luther King, Jr.”

Dez ideias

Em busca de uma reflexão natalina efetivamente coerente com o espírito de esperança que o momento suscita e para que haja justiça nas regras de ajuste fiscal, inspiro-me na contundente provocação de Martin Luther King Jr. e trago a seguir algumas sugestões de agendas alternativas de revisão do ordenamento das finanças públicas brasileiras, para torná-las, tanto quanto possível, mais equitativas e aderentes ao pacto constitucional civilizatório de 1988:

1) Revisão da meta de inflação pelo Conselho Monetário Nacional, mitigando os desarrazoados impactos na dívida pública e os custos socioeconômicos da pretensão de trazê-la para patamar significativamente abaixo da média histórica;

2) Revisão da meta de resultado primário no Anexo de Metas Fiscais no âmbito dos Projetos de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2025 e 2026, suavizando a necessidade de contenção da ação governamental em meio a demandas sociais que ainda ensejam, por exemplo, fila de espera de cerca de 700 mil pessoas no acesso ao Bolsa Família em pleno 2024;

3) Alteração da metodologia de elaboração do Anexo de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias da União, para que ali também haja análise do impacto das despesas financeiras decorrentes das políticas monetária, cambial e creditícia na dívida pública, como Victor Carvalho Pinto, Leandro Maciel do Nascimento e eu propusemos aqui;

4) Revisão do Decreto 3088/1999, para internalizar a noção de devido processo da política monetária e para que seja resguardado o efetivo cumprimento de todos os objetivos legais inscritos na LC 179/2021;

5) Impugnação das renúncias fiscais, tanto das que foram criadas/ ampliadas desde a EC 95/2016, ao arrepio do artigo 113 do ADCT, quanto das que foram concedidas por prazo indeterminado após o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, por serem ilícitos à luz do artigo 14 da LC 101/2000;

6) Revisão da iníqua isenção de imposto de renda sobre a distribuição de dividendos;

7) Revisão do “Sistema de Proteção Social dos Militares” para reduzir o seu elevado déficit per capita, quando comparado aos congêneres RGPS e RPPS;

8) Revisão da regressiva tributação sobre o patrimônio, que não tributa adequadamente latifúndios, jatinhos, iates, helicópteros, lanchas, jet-skis etc;

9) Revisão da regressiva tributação sobre a herança, cujas alíquotas máximas são sensivelmente inferiores às praticadas pelos países desenvolvidos;

10) Quantificação do tamanho necessário do Estado brasileiro, sem filas de espera e sem passivos judicializados, a partir do elenco de despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento da LDO e dos programas de duração continuada do PPA; para fins de controle de conformidade da expansão das despesas discricionárias e de novas estratégias de inibição da arrecadação tributária.

O rol acima não é lista de desejos ingênuos de Natal, tampouco é quimera inconsequente de quem deseja iniciar 2025 de modo minimamente coerente com a promessa emancipatória que ousamos pactuar como nosso contrato constitucional. É apenas uma tentativa de pautar alternativas de ajuste fiscal íntegras e mais consentâneas com o ordenamento brasileiro. Afinal, como bem alertara dr. Ulysses Guimarães, quando da promulgação da nossa Constituição Cidadã: “o inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria”.

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