Opinião

Direito, literatura e a tese do Brasil como narcoestado: quem ocupa o 'lugar vazio do poder'?

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24 de dezembro de 2024, 7h17

Recentemente, neste mesmo espaço da ConJur, ensaiamos algumas premissas para sugerir a proximidade do Brasil a uma espécie de narcoestado. Com Chantal Mouffe e Claude Lefort, partimos da perspectiva de que, mesmo nas democracias, o poder – que não tem rosto e ocupa um lugar vazio – não pode ser erradicado (aqui). Daí que, nos espaços impenetrados pela institucionalidade, novas formas de exercício desse mesmo poder, à margem do Estado, aparecem.

A Literatura, em boa medida, antecipa essa discussão. Talvez o melhor exemplo para dar conta do preenchimento desses espaços de poder – sempre em paralelo ao das instituições públicas – venha de Mario Puzo e sua icônica obra, The Godfather.

Quem leu o livro (ou viu apenas o filme; o episódio está presente nos dois formatos) reconhece o contexto: durante o casamento da filha, Vito Corleone recebe inúmeras pessoas em seu gabinete. É da tradição siciliana não recusar favores neste dia. E por essa razão o agente funerário Amerigo Bonasera procura o Don. O que ele quer? Justiça para sua filha. Pai de uma moça violentada por dois rapazes que – “devido à sua juventude, à sua ficha limpa e às boas famílias a que pertencem” – e ao fato de que “a lei em sua majestade não procura vingança” – saem do tribunal com a pena de três anos de reclusão suspensa pelo juiz. Então Bonasera recorre ao Don. Quer substituir o Estado – pela máfia – naquilo que considera fazer justiça.

Nas entrelinhas da obra, o perfil do siciliano radicado desde muito jovem nos Estados Unidos é reflexivo do contexto histórico de sua terra natal. Ilha esquecida pelo Império Romano bem ao Sul do que hoje é a Itália, o lugar pereceu sob constantes ataques e invasões, sobretudo, oriundos do Norte da África. Ou seja, no vácuo da arquitetura estatal do mundo antigo, a sua Sicília sedimentou as velhas máximas sobre o traço inerradicável do poder – e que alicerça nosso argumento: alguém ou algum grupo sempre ocupa seu espaço. E quando isso ocorre, o poder é privatizado.

Em boa medida, muitos episódios dos grandes conglomerados urbanos brasileiros podem ser espelhados no emblemático exemplo da Literatura. Referimo-nos à presença de narcomilícias, geralmente nas zonas de abandono do Estado. Reivindicando o monopólio do controle local, esses grupos assumem uma série serviços, impondo-os aos moradores.

Spacca

Assim, da segurança ao fornecimento ilegal de televisão por assinatura, tais grupos controlam – entre outras atividades – cooperativas de transporte, fornecimento de gás e até mesmo exigem corretagem por compra e venda de imóveis.

E o Direito?

Aiala Couto aponta para a construção de territorialidades para o exercício do poder, criando “ordem e normas” à margem do Estado. Como essas relações de submissão paraestatal são reproduzidas cotidianamente, não é desarrazoado supor que essas mesmas localidades assumidas pelas narcomilícias – abandonadas na origem – percebem um desgaste cada vez maior não apenas das forças de segurança pública, mas de boa parte dos serviços associados às políticas de diluição dos riscos sociais, ou seja, do Estado de Bem-estar. O saldo, intuímos, é o enraizamento cada vez mais latente do exercício do poder à margem do Direito e das instituições voltadas à concretização da Constituição Cidadã.

Essa descrição breve pode, entretanto, corresponder a realidade do Brasil?

Generalizar o argumento, sem dúvidas, soa falacioso. Assim como na trama de Puzo, Vito e os demais chefes das Cinco Famílias não dominaram todos os espaços. Mas controlaram porções estratégicas de território, como parece ocorrer, hoje, no Brasil, sobretudo nas periferias das regiões metropolitanas.

De toda forma, o ponto é: por um lado, se o poder não se erradica – e está nas mãos das narcomilícias –, seu exercício é privado. Suas relações são, portanto, verticais; por outro, a democratização desses mesmos espaços, bem marcadas pela linguagem pública do Direito e sua autonomia, acaba por depender de uma espécie de reconquista territorial – tarefa sem dúvida mais complexa que apenas implementar políticas públicas sociais.

O narcoestado e a predação da política…

Por fim, não é demais lembrar que, como vai perceber Hannah Arendt na Condição Humana, a política tinha seu lugar de possibilidade somente na ágora. Era lá, afinal, que havia a igualdade (política) necessária para que tanto os desejos – individuais ou de grupo – quanto os desacordos fossem negociados e debatidos. Nos lares, o poder era exercido pelo senhor da casa, que intuía tudo, de esposa a filhos, como propriedade. Não havia, portanto, espaço para a horizontalidade política.

Ora, no limite, as narcomilícias não estão privatizando a ágora? Mais: é possível falar em democracia nos seus territórios de domínio?

 


Para aprofundar a discussão, ver:

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

LEFORT, Claude. Pensando o político. Ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Paz e Terra, 1991.

MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de sociologia e política, p. 11-23, 2005.

OLIVEIRA COUTO, Aiala Colares. Do narcotráfico às narcomilícias: configurações territoriais sobrepostas na periferia de Belém. Territorium, n. 27 (II), p. 103-113, 2020.

PUZO, Mario. O poderoso chefão. Tradução de Carlos Nayfeld. 33ª ed. Rio de Janeiro/São Pasulo: Editora Record, 2015, p. 09.

Autores

  • é professor, mestre e doutor em Direito, em estágio pós-doutoral junto ao GP Teoria Crítica do Constitucionalismo (FDV-CNPq), com financiamento Fapes, e integrante da Rede Estado e Constituição (CNPq).

  • é professor da graduação e do PPGD da FDV, mestre e doutor em Direito, líder do GP Teoria Crítica do Constitucionalismo (FDV-CNPq) e integrante da Rede Estado e Constituição (CNPq).

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