Direito Civil Atual

Quando contratos principais se tornam contratos acessórios

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23 de dezembro de 2024, 12h14

Comenta-se, hoje, julgado da 3ª Turma do STJ, proferido em recurso especial, cuja controvérsia diz respeito à responsabilidade ou não do consumidor sobre equipamentos necessários à fruição de serviços de internet e TV por assinatura, como modens e afins.

O Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública sustentando abusividade das cláusulas de contrato de adesão nas quais a prestadora de serviços de internet e TV por assinatura impõe aos consumidores a responsabilidade integral, independentemente da situação fática, pelos equipamentos que lhes são entregues em locação ou comodato para fruição desses mesmos serviços. Alegou o MP que tais cláusulas responsabilizam o consumidor pelo perdimento de decodificadores de sinal, modens, cable modens, smart cards etc., ainda que venha a ocorrer furto, roubo, extravio, caso fortuito ou força maior.

A sentença deu parcial provimento ao pedido do MP. O colegiado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), contudo, deu provimento à apelação da operadora, por entender que: não haveria abusividade nas cláusulas contratuais nem violação do CDC; a adesão dos contratantes do serviço era voluntária; e a previsão contratual de responsabilidade do assinante pelos prejuízos, mesmo que resultantes de caso fortuito ou força maior, estaria  de acordo com os dispositivos do CC/2002 para locação e comodato. Irresignado com o acórdão estadual, o MP interpôs recurso especial.

Objetivo do consumidor

A 3ª Turma do STJ, por maioria, deu provimento ao recurso especial do MP, nos termos do voto do relator, ministro Humberto Martins. O fundamento, no caso concreto, é o de que os contratos de locação e comodato — que, usualmente, são contratos principais nas relações civis — não seriam principais na perspectiva do consumidor, cujo interesse estaria na contratação de serviço de internet e TV por assinatura, e não em locar ou receber equipamentos em comodato:

“Aqui, é preciso levar em consideração que não se trata de comodato ou locação comuns, porque o objetivo do consumidor é, na verdade, contratar a prestação de serviços de TV por assinatura e internet (contrato principal), e não receber equipamentos em comodato ou locação. Mesmo que se adote o posicionamento segundo o qual o consumidor tem liberdade para escolher a operadora que melhor lhe aprouver, ele não tem liberdade para escolher a fornecedora do modem, do decodificador e afins, os quais são instalados (em comodato/locação) pela prestadora como uma decorrência automática da prestação do serviço descrito no contrato principal” [1].

Nesse negócio jurídico complexo, contratos principais, como locação e comodato, desempenham função de meros contratos acessórios para a legislação consumerista, pois sua celebração decorre automaticamente da contratação dos serviços de internet e TV por assinatura (contrato principal buscado pelo consumidor).

Embora possa escolher a operadora de internet e TV por assinatura, o consumidor não tem liberdade de escolher o fornecedor dos equipamentos entregues a ele em locação ou comodato, equipamentos que serviriam apenas aos interesses da operadora, como instrumentos de viabilização dos serviços contratados pelo assinante:

“[S]e o consumidor não pode escolher de quem comprar, locar ou solicitar emprestado os aparelhos para fruição do serviço, devendo sujeitar-se ao comodato ou à locação impostos pela operadora “conforme a política comercial vigente”, é abusiva a regra contratual que impõe ao hipossuficiente a assunção do risco, “em qualquer dos casos”, pela guarda e integridade do equipamento. Seria diferente se o consumidor, sopesando os riscos, benefícios e custos envolvidos na operação, pudesse optar, com liberdade, entre a aquisição do aparelho e o comodato/locação. Nessa hipótese, desde que informado adequadamente, seria possível que o consumidor assumisse, de forma consciente, os riscos decorrentes de sua escolha, em especial a assunção da responsabilidade pelo perecimento do aparelho em quaisquer circunstâncias” [2].

Logo, cláusulas contratuais regulares para o Direito Civil (disciplina da liberdade de contratar e da liberdade contratual) podem ser abusivas se impostas ao consumidor, considerado polo vulnerável no contrato, ainda mais em se tratando de contrato de adesão.

ConJur

Ao contratar com o consumidor, a fornecedora assume o risco da atividade, incluindo eventual perdimento de equipamentos necessários à realização da atividade contratada (res perit domino):

“A manutenção da cláusula de assunção do risco, na forma como posta nos contratos discutidos nos autos, representa desequilíbrio contratual e coloca o consumidor em desvantagem exagerada. Já a exclusão dessa cláusula não causará desequilíbrio em prejuízo dos interesses da fornecedora, pois, se o consumidor invocar a exceção substancial do caso fortuito ou da força maior (roubo, por exemplo), caberá a ele, em tese, demonstrar a sua ocorrência.[…] É desproporcional que o consumidor suporte a integral responsabilidade pela imposição de contrato acessório de comodato/locação de coisa que serve diretamente ao interesse da prestadora, enquanto essa, por meio de cláusulas abusivas, pretende se desonerar de todos e quaisquer riscos do contrato e da propriedade” [3].

Além disso, as cláusulas impostas aos consumidores em questão seriam mais severas até do que a própria determinação do artigo 583 do CC/2002, segundo a qual o comodatário terá responsabilidade, em situações de caso fortuito ou força maior, apenas se privilegiar a salvação de suas coisas em detrimento daquelas contratadas.

Sob esses fundamentos, foi dado provimento ao recurso especial do MP pela 3ª Turma do STJ, com efeitos erga omnes (por tratar-se de ação civil pública), para, em síntese, (1) declarar a nulidade das cláusulas que responsabilizam o consumidor por dano, perda, furto, roubo e/ou extravio de quaisquer equipamentos entregues a ele em comodato e/ou locação pela fornecedora; (2) condenar a fornecedora a indenizar os consumidores indevidamente cobrados pelo valor dos equipamentos perdidos, cabendo a cada um, no foro de seus domicílios, pleitear reparação; e (3) condenar a fornecedora à obrigação de fazer correspondente a informar e publicar em, pelo menos, três sites de notícias/conteúdo de grande alcance o teor principal desse julgado.

Esclareça-se, por fim, que ainda estão pendentes de julgamento os embargos de declaração opostos pela fornecedora.

 

– Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

 


[1] REsp nº 1.852.362/SP, relator ministro Humberto Martins, 3ª Turma, DJe de 21/8/2024.

[2] Idem.

[3] Idem.

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