Mauro Cid: questões relativas à rescisão e revisão do acordo de colaboração
23 de dezembro de 2024, 7h02
É inegável que se feito de maneira adequada, com o conteúdo e os limites premiais respeitados (aqueles previstos no artigo 4º da Lei 12.850/2013), o instituto da colaboração premiada é uma importante ferramenta à disposição da cada vez mais recente tendência de se buscar uma justiça consensual negociada, disponível no Sistema de Justiça Criminal brasileiro, servindo, a colaboração premiada, como meio de obtenção de prova por meio da celebração de um negócio jurídico processual que deve ser interpretado como uma verdadeira condição de possibilidade, seja para o êxito da investigação preambular, da própria ação penal e como estratégia e exteriorização de vontade das partes negociantes [1] (vide artigo 3-A da Lei 12.850/2013).
Na colaboração premiada, o investigado ou acusado que participa do acordo renuncia a direitos processuais, como os direitos ao silêncio e de não dizer a verdade (artigo 4º, § 13 da Lei 12.850/2013), assume os riscos pessoais e fica obrigado a fornecer informações úteis aos órgãos de persecução penal. Como contrapartida, recebe a promessa de um benefício por parte do Estado, representado no acordo pela autoridade policial ou pelo órgão da acusação oficial. O acordo é submetido ao Poder Judiciário para homologação pelo juízo competente [2].
Feitas essas considerações introdutórias, entre polêmicas, questões e soluções, no Brasil, o exemplo recente mais evidente, após os acordos celebrados na denominada operação “lava jato”, é a provável colaboração premiada firmada entre Mauro Cesar Barbosa Cid, tenente-coronel do Exército Brasileiro e ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro e a Polícia Federal na Pet 11.767/DF em 2023, cuja homologação do referido acordo se deu em 9/9/2023 [3]. Todavia, o suposto acordo de colaboração ainda está sob sigilo, em razão de existência de termo de confidencialidade, que somente perderá essa condição com a decisão de recebimento da denúncia (se houver) [4].
Foi noticiado aqui nesta ConJur [5] que em novembro passado o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em nova convocação do colaborador, confirmou a validade do acordo de colaboração premiada celebrado, tendo o colaborador supostamente esclarecido omissões e contradições apontadas pela Polícia Federal em relatório encaminhado à corte informando o descumprimento de cláusulas do referido acordo ao omitir deliberadamente informações relevantes às investigações em curso, apagou mensagens de seu celular (posteriormente recuperadas pela PF) relacionados a um suposto atendado contra a vida de autoridades da República, dentre elas a do próprio ministro Alexandre de Moraes [6].e que poderiam, segundo noticiado na imprensa nacional, levar à rescisão do acordo entabulado com o tenente-coronel.
O propósito deste trabalho será, ainda que brevemente, analisar questões relacionadas a uma possível rescisão e revisão do acordo de colaboração premiada e seus efeitos (deixando o tema anulação do acordo, em razão da inobservância da Lei e dos requisitos formais da esfera civil para outra oportunidade), tema substancialmente importante, dado o fato de que a Lei 12.850/2013 não previu procedimento para a celebração do acordo (passo a passo) para se alcançar, ao final, os prêmios, muito menos estabeleceu procedimento objetivando a rescisão do acordo. A referida lei não definiu, tampouco, as hipóteses em que a rescisão seria a consequência natural de eventual descumprimento (total ou parcial) por uma ou ambas as partes (causas). Portanto, as hipóteses de rescisão e revisão são resolvidas caso a caso, sem critérios objetivos e gerais legais.
O problema dessa lacuna legislativa é levar a violações relacionadas ao devido processo legal (due processo flaw), ficando à margem, portanto, da ordem constitucional. Assim, a Lei 12.850/2013 é concisa demais para tema tão complexo como a colaboração premiada.
Dito isso, pode-se perguntar, então, como funcionam as possibilidades de rescisão ou revisão do acordo e como restariam os elementos de investigação colhidos após as informações prestadas pelo colaborador?
Sobre o primeiro ponto, não há consenso doutrinário ou jurisprudencial sobre o tema, entretanto, André Callegari e Raul Linhares ressaltam que para situações em que o colaborador omite determinado ponto da sua colaboração durante a fase de produção probatória não deve levar à automática rescisão do acordo, mesmo que a omissão seja dolosa e em desrespeito a boa-fé processual (comportamento incompatível do agente colaborador) [7].
Essa não é uma questão fácil do ponto de vista da consciência da omissão (trânsito tênue entre legalidade e ilegalidade), até porque o instituto da colaboração premiada não funciona como uma espécie de confessionário, em que o colaborador se vê obrigado a narrar todo e qualquer fato, mesmo que sem ligação com aquilo que é investigado (nesse sentido, STF, Pet 7074 QO/DF), como é o próprio caso da colaboração celebrada por Mauro Cid com a PF, cujo descumprimento me parece apenas parcial e não completo, não acarretando uma rescisão total da colaboração, sob pena de enriquecimento ilícito por parte do Estado (exemplo muito bem colocado por Nefi Cordeiro do pintor que pinta todo o apartamento mas deixa de pintar somente a cozinha, deve receber proporcionalmente por isso) [8].
Melhor caminho diante da omissão do colaborador
Na prática, verificada ocorrência de causa suficiente para justificar a rescisão do acordo de colaboração premiada, além da postura das partes quanto a continuar (ou romper completamente com o negócio jurídico penal), será necessária a intervenção do Poder Judiciário para dirimir tal ponto, assegurando o contraditório e a ampla defesa ao agente colaborador, uma vez que a colaboração, mesmo com alegadas omissões (dolosas ou não), pode alcançar o interesse público (fatos revelados vs. fatos omitidos) e isso será medido pela qualidade da colaboração (em juízo rescisório), sob pena de se permitir condutas abusivas do Estado ao beneficiara-se de elementos de obtenção de prova e depois, por qualquer razão, incorrer na proibição do venire contra factum proprium em prejuízo aos prémios pactuados com o colaborador.
Assim, diante de casos de omissão do colaborador, o melhor caminho é a adoção de práticas mais ponderadas como, por exemplo, um recall do colaborador para sanar omissões e eventuais contradições ou para uma reformulação do pacto, modulando-se os efeitos do descumprimento em relação ao que já foi cumprido na atividade do colaborador (análise global), preservando a segurança jurídica negocial, lealdade e o princípio da confiança, tendo como perspectiva que o colaborador sempre se encontra em posição de hipossuficiência perante o Estado (colaborador está sempre diante de uma concreta ameaça de sanção criminal)[9].
Dessa forma, o fundamento da concessão dos benefícios ao colaborador reside na relevância da sua contribuição convergente com os resultados estabelecidos na Lei 12.850/2013 (artigo 4º e incisos). Em relação aos prêmios do colaborador, em caso de descumprimento total do acordo (sem cumprimento das obrigações e que as informações prestadas sejam sem qualquer utilidade) e rescisão de sua parte, a consequência é a perda dos benefícios pactuados (perda da aplicação da sanção premial) ao final do processo e a manutenção da validade e da utilização de eventuais provas produzidas e trazidas no acordo utilizadas conforme previsão expressa na Lei 12.850/2013.
Caso o descumprimento atribuível ao agente colaborador seja parcial, o adequado é que se mantenha os prêmios pactuados em relação àquilo que foi entregue pelo colaborador no tocante ao deliberadamente omitido por ele, sendo feita a retirada dessas partes de narrativas fáticas ou anexos, preservando parcialmente a colaboração e seus prêmios (com o exame judicial a respeito dos resultados delimitados no artigo 4º da Lei 12.850/2013, no momento da sentença), sofrendo, o colaborador, risco de eventual condenação na ação penal oferecida na parte em que não colaborou (cujos anexos e narrativas foram retirados do acordo).
Por fim, grosso modo, se a cooperação for cessada (rescisão) por responsabilidade do membro de poder, deve ser defendida a manutenção dos prémios pactuados (já concedidos) ao colaborador e as provas já produzidas por conta da colaboração, sejam retiradas do poder do Estado, sem que possam ser utilizadas de qualquer forma.
Quanto ao provável acordo de colaboração premiada celebrado entre o tenente-coronel Mauro Cid e a Polícia Federal, resta, apenas, aguardar se de fato haverá oferecimento de denúncia contra aqueles que são investigados nas pets no Supremo Tribunal Federal para que ao acordo seja dada a publicidade devida.
[1] De um lado, o investigado/acusado; de outro, o delegado de polícia e o órgão da acusação oficial, Ministério Público. Sobre o tema ver o artigo publicado https://www.conjur.com.br/2024-fev-12/o-instituto-da-colaboracao-premiada-e-o-habeas-corpus/.
[2] DE-LORENZI, Felipe. Pode o Estado exigir resultados na colaboração premiada? Intersecções entre justiça penal negociada, princípio da culpabilidade e teoria do delito in: Revista de Estudos Criminais ANO XX – 2021 – Nº 82, julho/setembro 2021, p. 100-101.
[3] O tenente-coronel é investigado no STF nas Pets 10.405/DF, 11.767/DF e 12.100/DF, pelas práticas, em tese, de vários crimes, dentre os quais: organização criminosa (art. 1º, § 1º, da Lei 12.850/13); lavagem de dinheiro (art. 1º, da Lei 9.613/98); abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do Código Penal); golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal); associação criminosa (art. 288 do Código Penal); falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e inserção de dados falsos em sistema de informações (art. 313-A do Código Penal).
[4] No Brasil, em que pese a priorização constitucional à publicidade dos atos processuais, a própria Constituição Federal de 1988 ressalva a possibilidade de decretação de sigilo para casos excepcionais (artigo 5º, LX da CF). No caso da colaboração premiada durante a investigação policial, a aplicação do sigilo tem dupla finalidade: a garantia da efetividade do acordo e proteção do colaborador e de pessoas próximas a ele.
[5] https://www.conjur.com.br/2024-nov-21/supremo-mantem-validade-da-colaboracao-premiada-de-mauro-cid/.
[6] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/11/19/pf-pede-ao-stf-rescisao-de-delacao-de-mauro-cid.ghtml.
[7] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Colaboração Premiada: lições práticas e teóricas de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020, p. 164-167.
[8] Banalização da delação premiada permitiu acordos com cláusulas ilegais. Revista Consultor Jurídico, 20 out. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-out-20/entrevista-nefi-cordeiro-ministro-stj/>. Acesso em: 13 de dez. 2024.
[9] DE-LORENZI, Felipe. Pode o Estado exigir resultados na colaboração premiada?, ob. cit. p. 102.
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