Opinião

Está valendo até mesmo analogia in malam partem para afastar a prescrição no TCU?

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23 de dezembro de 2024, 15h17

A prescrição nos processos sancionatórios, especialmente junto às Cortes de Contas, está se tornando uma barafunda. Com efeito, muitas Cortes de Contas — impossibilitadas de dizer que o ressarcimento ao erário é imprescritível — têm criado interpretações que fragilizam a segurança jurídica. Em que pese ser questionável a criação de regras restritivas por meio de instruções normativas, e outras vias infralegais, fato é que assistiu-se a uma enxurrada de atos interpretativos que visam a disciplinar a questão da prescrição no âmbito das Cortes de Contas.

Em grande medida, os entendimentos adotados têm criado a possibilidade de interrupções em série da prescrição, o que fragiliza esse instituto, que é fundamental à segurança jurídica. Não bastasse isso, a interpretação que tem sido feita é nitidamente enviesada criando-se regimes mais gravosos em desfavor dos particulares pela via da interpretação.

Resolução TCU nº 344/2022

Especificamente no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU), as regras sobre a interrupção da prescrição punitiva e ressarcitória encontra-se disciplinada nos artigos 5º e 6º da Resolução nº 344/2022.

O mencionado artigo 5º da Resolução nº 344/2022 estabelece especificamente o seguinte:

Art. 5º A prescrição se interrompe:

I – pela notificação, oitiva, citação ou audiência do responsável, inclusive por edital;

II – por qualquer ato inequívoco de apuração do fato;

III – por qualquer ato inequívoco de tentativa de solução conciliatória;

IV – pela decisão condenatória recorrível.

§ 1° A prescrição pode se interromper mais de uma vez por causas distintas ou por uma mesma causa desde que, por sua natureza, essa causa seja repetível no curso do processo.

§ 2° Interrompida a prescrição, começa a correr novo prazo a partir do ato interruptivo.

§ 3º Não interrompem a prescrição o pedido e concessão de vista dos autos, emissão de certidões, prestação de informações, juntada de procuração ou subestabelecimento e outros atos de instrução processual de mero seguimento do curso das apurações.

§ 4° A interrupção da prescrição em razão da apuração do fato ou da tentativa de solução conciliatória, tal como prevista nos incisos II e III do caput, pode se dar em decorrência da iniciativa do próprio órgão ou entidade da Administração Pública onde ocorrer a irregularidade.

§ 5º A interrupção da prescrição em razão dos atos previstos no inciso I tem efeitos somente em relação aos responsáveis destinatários das respectivas comunicações. (AC) (Resolução-TCU nº 367, de 13/03/2024, BTCU Deliberações nº 42/2024)”

Perceba-se que, nos termos do artigo 5º, § 5º da sobredita norma, a interrupção do prazo de prescrição só vale para o responsável que for notificado, ouvido ou citado (mesmo que por edital).

Em acréscimo, diga-se que da leitura dos artigos 5º e 6º da Resolução nº 344/2022 do TCU, não há outro dispositivo análogo ao artigo 5º, § 5º.

O entendimento do TCU sobre a interrupção do prazo prescricional

Pois bem, no bojo do Processo nº TC 014.145/2012-0, o plenário do TCU proferiu, em 9 de outubro de 2024, o Acórdão nº 2112/2024, no qual decidiu que a interrupção do prazo prescricional decorrente da prática de qualquer ato inequívoco de apuração do fato, vale para todos os responsáveis envolvidos.

Spacca

Na ocasião, o TCU entendeu que o artigo 5º, inciso II, da Resolução nº 344/2022 (que, como transcrito acima, estabelece que a prescrição se interrompe por qualquer ato inequívoco de apuração dos fatos), estabelece uma “hipótese de interrupção de prescrição é de natureza objetiva que alcança “todos os responsáveis pelos fatos irregulares apurados”.

Assim, o artigo 5º, § 5º traria expressamente uma hipótese subjetiva de interrupção da prescrição que afetaria apenas o responsável por ela atingido, ao passo que o artigo 5º, II, traria implicitamente, na construção feita no Acórdão nº 2112/2024, uma hipótese objetiva de interrupção da prescrição que afetaria todos os responsáveis envolvidos.

Analogia in malam partem

Diante da ausência de uma expressa previsão na redação da Resolução nº 344/2022 que autorize esse entendimento do TCU, nos parece que aquela Corte de Contas fez uso de uma analogia in malam partem[1][2].

Sobre o emprego da analogia in malam partem no âmbito dos Tribunais de Contas, colha-se abaixo o didático do Tribunal de Contas do Mato Grosso do Sul que, inclusive, foi exarado no âmbito de uma apreciação da incidência ou não de prescrição:

O Tribunal de Contas deve prestigiar uma posição garantista e reconhecer o uso da legalidade estrita em matéria sancionatória, de forma a não admitir, em prejuízo ao interessado, interpretação extensiva ou aplicação analógica de disposição normativa legal mais gravosa no que se refere a prazo prescricional, para não incorrer na analogia in malam partem[3].”

Curiosamente, o próprio TCU, quando prolatou o Acórdão nº 2613/2022-Plenário no Processo TC nº 034.431/2018-7, afirmou expressamente que “deve-se proceder com extrema parcimônia ao conferir interpretações ampliativas em matéria de direito administrativo sancionador, pois o princípio da legalidade estrita que o norteia, bem assim a direta incidência da parte final do art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988, obsta a analogia para fins de sua aplicação”.

Como a vedação ao emprego da analogia in malam partem fixada no Acórdão nº 2613/2022 não aparenta ter sido objeto de um overruling por parte do Acórdão nº 2112/2024, só nos resta hipotetizar que o TCU: simplesmente esqueceu da existência do Acórdão nº 2613/2022 ou não se deu conta de que o Acórdão nº 2112/2024 estava fazendo uso de uma analogia in malam partem.

Em qualquer das hipóteses, não há, com a devida vênia, sustentar como válido o entendimento adotado no Acórdão nº 2112/2024.

 


[1] Sobre o conceito de analogia in malam partem, vejam-se as lições de Rogério Greco: “Quando se inicia o estudo da analogia em Direito Penal, devemos partir da seguinte premissa: é terminantemente proibido, em virtude do princípio da legalidade, o recurso à analogia quando esta for utilizada de modo a prejudicar o agente, seja ampliando o rol de circunstâncias agravantes, seja ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, afim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador etc. Nesse sentido é a lição de Fabrício Leira, quando diz: Em matéria penal, por força do princípio de reserva, não é permitido, por semelhança, tipificar fatos que se localizam fora do raio de incidência da norma, elevando-se à categoria de delitos. No que tange às normas incriminadoras, as lacunas, porventura existentes, devem ser consideradas como expressões da vontade negativa da lei. E, por isso, incabível se torna o processo analógico. Nestas hipóteses, portanto, não se promove a integração da norma ao caso por ela não abrangido‘. (…) A analogia in malam partem, na definição de Vicente Cernicchiaro de Roberto Lyra Filho, significa a aplicação de uma norma que define o ilícito penal, sanção, ou consagre accidentalia delicti (qualificadora, causa especial de aumento de pena e agravante) a uma hipótese não contemplada, mas que se assemelha ao caso típico. Evidentemente, porque prejudica e contrasta o princípio da reserva legal, é inadmissível” (Greco, Rogério. Curso de direito penal. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013. págs. 44/45).

[2] Ainda sobre o conceito de analogia in malam partem, trazemos agora o entendimento de Luiz Regis Prado: “Em geral, por analogia, costuma-se fazer referência a um raciocínio que permite transferir a solução prevista para determinado caso a outro não regulado expressamente pelo ordenamento jurídico, mas que comparte com o primeiro certos caracteres essenciais ou a mesma ou suficiente razão, isto é, vinculam-se por uma matéria relevante simili ou a pari. (…) O seu emprego sobre restrições no que toca às normas penais incriminadoras e às normas penais não incriminadoras quando prejudiciais ao réu. Portanto, as normas penais que definem o injusto culpável e estabelecem as suas consequências jurídicas não são passíveis de aplicação analógica. A limitação vem insculpida, de forma expressa, no art. 1º do Código Penal e tem guarida constitucional (art. 5º, XXXIX, CP). A função da lei é prescrever, com exclusividade, quais as condutas que deverão ser consideradas ilícitos penais. Essa exigência foi enunciada por Beling, dando lugar ao reconhecimento da tipicidade como um dos elementos do conceito de delito. A criação da figura do tipo serviu para reforçar e complementar o contido no princípio da legalidade” (Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1 – parte geral. 10ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. pág. 193)

[3] TCE/MT, Tomada de Contas Ordinária. Relator: Conselheiro Guilherme Maluf. Acórdão n° 1.078/2023 – Plenário Virtual. Julgado em 15/12/2023. Publicado no DOC/TCE-MT em 07/02/2024. Processo n° 24.483-0/2018.

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