Opinião

Bens no exterior, partilha causa mortis e fim do vínculo conjugal

Autores

  • é advogado doutor e mestre em Direito Processual pela Uerj. Coordenador de Processo Civil da ESA/RJ e da ABPI.

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  • é mestre em Direito Processual Civil (PUC-SP) ex-assessor de ministro no STJ professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-DF) advogado e sócio de Rodrigo Pinheiro Advogados.

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23 de dezembro de 2024, 9h27

De acordo com o artigo 926 do Código de Processo Civil, os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Esse dever de uniformização não exige que os casos em comparação sejam necessariamente idênticos do ponto de vista dos fatos, mas, sim, que estejam assentados em uma mesma ratio capaz de justificar a adoção de solução igualitária.

Esse trabalho de identificação “de essencialidade da identidade entre os casos requer, muitas vezes, sofisticação do intérprete, para que perceba as sutilezas dos casos capazes de os tornar idênticos do ponto de vista estrutural, embora tenham, internamente, suas singularidades” [1].

Fincadas essas premissas iniciais, é interessante observar como o Superior Tribunal de Justiça possui entendimentos aparentemente antagônicos a respeito da partilha de bens no exterior a depender da causa dessa partilha, se causa mortis ou se decorrente da dissolução de vínculos conjugais/convivenciais.

Em se tratando de partilha de bens causa mortis, o STJ prestigia a regra da pluralidade de juízos sucessórios: processa-se, no Brasil, o inventário dos bens situados no país e, no exterior, o inventário dos bens situados fora do Brasil. O STJ não admite nem mesmo que, no inventário brasileiro, sejam considerados os bens situados no exterior para fins de cálculo e de definição das parcelas destinadas ao cônjuge/convivente sobrevivente e aos herdeiros necessários.

Sobre o tema, o leading case no STJ [2] examinou a possibilidade de partilha, em inventário que tramitava no Brasil, de imóvel situado na Argentina. Tal pleito foi negado sob o fundamento de que seria aplicável a regra da pluralidade de juízos sucessórios, invocando-se precedente do Supremo Tribunal Federal no mesmo sentido, em que se decidiu pela impossibilidade de partilha de bens situados no Uruguai [3].

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Ainda no âmbito do STJ, examinou-se o inventário do ex-presidente Jânio da Silva Quadros. Naquele caso, discutiu-se a possibilidade de se obter informações sobre depósitos bancários porventura existentes na Suíça [4]. Há também outros julgados acerca da temática, envolvendo a possibilidade de partilha de bens situados nos Estados Unidos da América [5], possibilidade de levantamento de valores existentes em estabelecimentos bancários situados na Suíça [6], além de situações semelhantes [7] [8].

Por sua vez, o posicionamento do STJ quanto à partilha de bens situados no exterior em virtude da dissolução de vínculos conjugais/convivenciais é substancialmente diferente. Nessa situação, o STJ admite a consideração de bens situados no exterior para fins de partilha em ação processada e julgada no Brasil, sobretudo para definir quanto do acervo pertencerá ao cônjuge/convivente meeiro.

No leading case que tratou da matéria, discutiu-se a possibilidade de partilha de bens de um dos cônjuges situados no Líbano [9], decorrente de dissolução de casamento celebrado sob o regime da comunhão universal de bens. Após analisar os precedentes então existentes envolvendo a ação de inventário, a dissolução de vínculo causa mortis e o princípio da pluralidade dos juízos sucessórios (RE 99.230/RS e REsp 37.356/SP), o v. acórdão de julgamento fez uma importante reflexão:

“Entretanto, é bem de ver-se que essa norma [10], inserida no estatuto processual, contém disposição aplicável à competência para o processamento do inventário e partilha, quando existentes bens localizados no Brasil e no estrangeiro.

A interpretação da norma em questão, de índole processual, não pode, todavia, conduzir à supressão do direito material garantido ao cônjuge pelo regime de comunhão universal de bens do casamento, especialmente porque não atingido esse regime na espécie por qualquer obstáculo da legislação sucessória aplicável.

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Não fosse assim, verbi gratia, um casal de brasileiros aqui domiciliados e casados sob o regime da comunhão de bens, poderia não sujeitar-se a esse regime em relação a bens porventura adquiridos por um dos cônjuges em outro(s) país(es) em que adotado, por exemplo, o regime da separação.

Destarte, a interpretação teleológica do dispositivo legal em apreço impõe a conclusão de que a partilha seja realizada sobre os bens do casal existentes no Brasil, sem desprezar, no entanto, o valor dos bens localizados no Líbano, de maneira a operar a equalização das cotas patrimoniais, em obediência à legislação que rege a espécie, que não exclui da comunhão os bens localizados no Líbano e herdados pela recorrente, segundo as regras brasileiras de sucessão hereditária.”

Esse julgado paradigmático está assentado nas seguintes premissas: (1) existem substanciais diferenças existentes entre o instituto de direito processual (jurisdição) e o de direito material (partilha), não sendo possível que aquele prejudique esse; (2) é cabível a utilização da técnica de compensação para promover uma partilha justa, igualitária e equilibrada; e (3) não se pode admitir, por meio de eventuais operações simuladas, fraudulentas ou lesivas, a alteração do regime de bens do casamento pelo simples aporte do acervo em país estrangeiro.

Preocupação legítima

Tal entendimento vem sendo sistematicamente aplicado na hipótese de partilha de bens situados no exterior decorrentes de dissolução de vínculos conjugais/convivenciais. Por exemplo, o STJ já reconheceu ser necessário considerar, para fins de partilha e equilíbrio das meações, as participações acionárias em empresas, fazendas e depósitos em espécie existentes no Uruguai [11]. De igual modo, considerou-se, para fins de partilha e equilíbrio das meações, valores depositados nos Estados Unidos [12] e, mais recentemente, deferiu-se a expedição de ofícios às instituições financeiras situadas no exterior para que se dimensionasse o patrimônio não situado em território nacional [13].

Não é difícil extrair dos fundamentos determinantes desses julgados uma legítima preocupação quanto à possibilidade de um dos cônjuges/conviventes alocar vultoso patrimônio fora do país em prejuízo do outro cônjuge/convivente, o que representaria fraude e violação à partilha igualitária.

Essa mesma preocupação, porém, não tem se mostrado relevante na partilha causa mortis. Ora, por qual motivo, no âmbito da sucessão, a partilha justa, igualitária e equilibrada – ainda que pela técnica da compensação de valores – não deve seguir a mesma ratio do modelo adotado no âmbito do direito de família? Seria a malícia contra o cônjuge/convivente mais grave do que a malícia contra o filho?

Ainda que as causas da dissolução sejam distintas (morte vs. dissolução de vínculos conjugais/convivenciais) e as respectivas demandas tenham particularidades próprias (ação de inventário vs. ação de divórcio ou ação de dissolução de união estável), não faz sentido, com a devida vênia, proteger mais os cônjuges/conviventes do que os herdeiros necessários. Não há razões ontológicas para esse tratamento diferenciado.

Nesse contexto, é fundamental que a matéria seja afetada à 2ª Seção do STJ, a fim de que os entendimentos sejam harmonizados, dando-se concretude ao ideal de estabilidade, integridade e coerência.

 


[1] ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário. 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023. p. 195.

[2] REsp 37.356/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Barros Monteiro, DJ 10/11/1997.

[3] RE 99.230/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ 29/06/1984.

[4] REsp 397.769/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 19/12/2002.

[5] REsp 1.447.246/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe 02/05/2023.

[6] REsp 510.084/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 05/09/2005.

[7] REsp 1.362.400/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 05/06/2015.

[8] AgInt no AREsp 1.297.819/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 19/10/2018.

[9] REsp 275.985/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 13/10/2003.

[10] O acórdão faz referência ao art. 89, II, do CPC/73, que corresponde ao art. 23, II, do CPC/15.

[11] REsp 1.410.958/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 27/05/2014.

[12] REsp 1.552.913/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe 02/02/2017.

[13] REsp 1.912.255/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 30/05/2022.

Autores

  • é pós-doutor, doutor e mestre em Direito Processual Civil (Uerj), professor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), coordenador de Processo Civil da ABPI, advogado e sócio de Dannemann Siemsen Advogados.

  • é mestre em Direito Processual Civil (PUC-SP), ex-assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-DF), advogado e sócio de Rodrigo Pinheiro Advogados.

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