Opinião

A vocação antimessiânica da Defensoria Pública na tutela coletiva

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23 de dezembro de 2024, 17h12

Algo diferente aconteceu no mundo jurídico desde que as Defensorias Públicas passaram a atuar na chamada “tutela coletiva”. Isso porque a atuação das Defensorias nos faz repensar o próprio conceito de tutela coletiva e, assim, avançar na atuação em prol dos direitos coletivos da população.

Tutela no dicionário quer dizer “proteção exercida em relação a alguém ou a algo mais frágil”. No mundo jurídico, muitas vezes é um conceito usado para definir o dever de velar por um direito de alguém incapaz. Ora, chamar a população brasileira de incapaz ou frágil significa desconhecer parte importante da história do Brasil. Nosso povo é sobrevivente de quase quatro séculos de escravidão e colonização brutal. Mesmo após a independência e a abolição, a violação de direitos sempre fez parte da realidade das famílias brasileiras. Dizer que este povo precisa ser tutelado é não reconhecer sua capacidade de auto-organização, resistência e formulação de soluções comunitárias para problemas coletivos.

O povo brasileiro é um povo resiliente, criativo e inteligente. Basta olharmos as diferentes formas de coletividade criadas e desenvolvidas em nosso país. Associações, coletivos, institutos, observatórios, movimentos, federações, jornais e rádios locais, bibliotecas e pré-vestibulares comunitários, cozinhas solidárias, projetos sociais… São inúmeras as formas que os diversos setores populares desenvolveram para defender seus direitos, sua cultura e sua forma de vida nas favelas, ocupações urbanas, subúrbios, quilombos, aldeias, vilas caiçaras, ribeirinhos e assentamentos rurais. E graças a toda essa potência, hoje temos um povo brasileiro pulsante, apesar do genocídio histórico e de todas as formas de continuidade histórica da colonização escravocrata.

A violação dos direitos coletivos no Brasil não é fruto da fragilidade ou da incapacidade dos tutelados, mas sim do ataque sistemático que o modelo de colonização escravocrata gerou e que, renovado a partir do lugar de pais da periferia do capitalismo, ainda gera contra a própria população. Faz parte deste modelo desconsiderar a humanidade de pessoas não brancas, pilar da escravidão e do genocídio. Por isso, historicamente falando, o conceito de tutela perigosamente pode revelar o não reconhecimento da importância, da legitimidade e da capacidade do povo se organizar coletivamente para lidar com os problemas sociais. Quem se organiza coletivamente é sujeito da própria história, mas quem é tutelado não. Por isso, nomear tutores pode ser também uma forma de controlar o povo, pois o tutelado não fala por si, uma vez que o tutor saberá dizer o que pode ser dito.

A incompatibilidade da ideia acrítica de tutela e as formas de organização popular é tanta que a sociedade civil já demarcou que não aceita mais esse tipo de relação. A máxima “Nada de nós sem nós” tem sido repetida por todos os movimentos sociais do país. Contudo, para algumas instituições é como se não fosse dito. Ou como se os movimentos sociais não merecessem ser escutados.

Essa visão colonial decorre da invisibilização da população periférica, pessoas em situação de vulnerabilidade, em sua maioria negra, dos grupos que não se enquadram no padrão estabelecido pela sociedade branca escravocrata. A sociedade civil organizada não é invisível. É titular dos direitos coletivos violados diariamente pelo Estado e é a razão de existir do artigo 134 da Constituição Federal.

Saberes integrados

A sorte é que dentro do sistema de Justiça há as Defensorias Públicas. Instituição que nasceu no estado do Rio de Janeiro há 70 anos, com o intuito de garantir acesso à justiça aos necessitados, os chamados hipossuficientes econômicos, aqueles e aquelas sem condições financeiras de arcar com honorários advocatícios. Em 1988, o Poder Constituinte traz o artigo 134 e a instituição ganha assento constitucional. A EC 80/2014 traz uma nova visão da Defensoria Pública. A ideia de resumir a instituição a um escritório de advocacia para os “necessitados economicamente” não foi a escolha do Constituinte.

Spacca

Graças ao movimento em defesa do acesso à Justiça, temos uma instituição comprometida com a democracia. Uma parte autônoma do Estado, que se propõe a construir junto com o povo organizado e não em nome do que seria o interesse público definido por tutores. Nesse cenário, diferentemente da forma como outras instituições lidam com os direitos da coletividade, a Defensoria Pública o faz junto com a própria população através de parceria e diálogo permanente com os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil, reconhecendo a legitimidade das próprias pessoas para tratar das suas vidas e dos problemas que as afetam.

Por isso, a recente atuação das Defensorias na defesa dos direitos coletivos da população tem se mostrado tão diferente da atuação de outras instituições.

A Defensoria estará sempre atuando em atendimento a um grupo da sociedade, em defesa de seus direitos e sua dignidade. E quando esse grupo está organizado coletivamente, essa atuação ganha a potência da integração entre o saber técnico-jurídico, que conhece o processo, e o saber popular, que conhece os problemas da realidade e esboça soluções. As Defensorias Públicas têm demonstrado sabedoria e humildade ao reconhecerem os movimentos sociais e a sociedade civil organizada como as nascentes de um futuro melhor para a democracia brasileira, pois são forças sociais que não sucumbiram ao poder esmagador do projeto colonizador.

A exitosa experiência no Estado do Rio de Janeiro demonstra a importância dos litígios estratégicos populares. A normativa interna que cria um sistema integrado e coordenado por uma Coordenadoria de Tutela Coletiva é única no país e, junto com a Ouvidoria Externa e os parceiros da sociedade civil, foi possível a interiorização e capilarização desta atuação. Atualmente, todo o Estado é coberto por órgão de tutela coletiva. Não há mais espaço para atuação restrita aos gabinetes. A ida aos territórios, a escuta qualificada e a parceria com a sociedade civil organizada são o fiel cumprimento da EC 80.

Vocação antimessiânica

Reconhecida como uma política de ação afirmativa, com assento constitucional, não há espaço para o assistencialismo e caridade. Hoje, há uma identidade própria da atuação coletiva da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, com foco em garantir a promover direitos humanos. Tal identidade foi construída, sobretudo nos últimos dez anos.

O reconhecimento não só da sociedade civil mas também dos gestores proporcionou à instituição participar da construção das diversas políticas públicas (saúde, educação, segurança alimentar e nutricional, segurança pública, entre outras). Todo esse debate só é possível pelas visitas, relatórios e pesquisas subsidiadas pela Ouvidoria Externa e seus parceiros.

Reduzir o modelo público de acesso à justiça aos atendimentos individuais de gabinete significa subestimar e descumprir a vontade do Constituinte, sobretudo o princípio da vedação ao retrocesso. O atual formato garante autonomia e independência na promoção de direitos humanos violados pelo Estado.

Na prática, estamos falando da aliança entre a sociedade civil com atuação periférica e o serviço público. Dessa aliança, inúmeras vitórias se tornaram possíveis. Poderíamos falar das cerca de 1 milhão de crianças que, graças à atuação da Defensoria do RJ junto com os movimentos de mães de estudantes, tiveram alimentação escolar no auge da pandemia, por exemplo. Enquanto algumas prefeituras diziam que estavam garantindo alimentação escolar para todos os alunos, os coletivos de mães de alunos produziram provas capazes de desmentir prefeitos perante o Poder Judiciário. Tais provas jamais teriam sido produzidas se não fosse a atuação horizontal e respeitosa da Defensoria Pública, que em momento nenhum prometeu tutelar essas famílias, mas sim atuar junto com elas para assegurar os direitos desses estudantes.

Enfim, poderíamos dar outros milhares de exemplos. Saneamento, direitos dos povos originários, comunidades tradicionais, pessoas com deficiência, mulheres, negras e negros, e assim vai. Quando falamos da atuação da Defensoria Pública em prol dos direitos da coletividade, melhor do que conceituar como “tutela coletiva”, talvez possamos chamar de “litigância estratégica popular”, ou simplesmente “atuação estratégica popular”.

Nas Defensorias ainda se usa o termo “tutela coletiva”, em função do vocabulário judicial de praxe, mas essa parceria vitoriosa com os movimentos sociais tem mostrado que a defesa dos direitos da coletividade feita pelas Defensorias é muito diferente do que a construção de um falso messias institucional que promete em vão salvar um povo supostamente frágil ou incapaz. A atuação coletiva das Defensorias Públicas do Brasil é o exercício da vocação de estar junto ao povo brasileiro, lado a lado, na alegria ou na tristeza, nas celebrações ou nas duras lutas por dignidade. É nesse casamento que o melhor dos futuros do nosso país tem sido gestado.

Vida longa à atuação estratégica popular!

Vida longa às Defensorias Públicas do Brasil e sua aliança com o povo organizado!

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