Isenção fiscal por doença grave: STF precisa reavaliar dispensa do prévio requerimento administrativo
22 de dezembro de 2024, 7h07
A Lei nº 7.713/1986, no seu artigo 6º, inciso XIV, dispõe que ficam isentos do imposto de renda “os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional” e de várias doenças ali listadas (tuberculose ativa, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, Aids, nefropatia grave etc.). [1] O direito é assegurado “mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma” [2]. O inciso XXI do referido artigo prevê a mesma isenção aos pensionistas portadores de tais doenças.
Em relação aos aposentados e beneficiários de pensões do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), a isenção tributária deve ser pleiteada numa Agência da Previdência Social ou pela ferramenta Meu INSS (artigos 291 a 293 da Portaria Dirben/INSS nº 992/2022). No caso dos aposentados/reformados/pensionistas vinculados a algum Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), o benefício fiscal deve ser postulado ao ente encarregado do pagamento dos proventos e pensões.
Muitos pedidos são analisados e deferidos na via administrativa à vista da documentação médica comprobatória do preenchimento dos requisitos previstos em lei. Note-se que o requerimento não deve ser dirigido à Receita Federal, mas à instituição responsável pelo pagamento dos proventos e pensões (artigo 35, § 4º, do Decreto nº 9.580/2018), que, comprovada a hipótese legal, deixará de realizar a retenção do IR na fonte [3]. Essa delegação da análise do pedido à fonte pagadora teve o propósito de facilitar a formulação dos pedidos de isenção do imposto e agilizar sua apreciação [4].
Esse breve introito foi feito para mostrar que o interessado pode e deve formular o prévio requerimento administrativo antes de, em caso de negativa, pretender discutir o assunto perante o Poder Judiciário. Todavia, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que em matéria tributária não se exige a prévia postulação à administração pública e que a situação em comento, por não ter natureza previdenciária, não está alcançada pela tese fixada no seu Tema nº 350 [5]:
“Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. Direito Tributário. Isenção de imposto de renda em função de doença grave. Prévio requerimento administrativo. Tema nº 350 da Repercussão Geral. Inaplicável. Agravo ao qual se nega provimento. 1. O precedente firmado no julgamento do RE nº 631.240/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, não se aplica ao caso, porquanto aqui não se trata de benefício previdenciário, mas de pedido de isenção de imposto de renda em razão de doença grave cumulada com repetição de indébito. Precedentes (…)” (ARE 1.367.504. AgR-segundo. Relator: min. Dias Toffoli, 1ª Turma. Julgamento: 13/6/2022. Publicação: 8/8/2022).
Essa compreensão foi reafirmada por aquela corte mais recentemente:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO DE IMPOSTO DE RENDA EM RAZÃO DE DOENÇA GRAVE. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. DESNECESSIDADE. INTERESSE PROCESSUAL CONFIGURADO: ACÓRDÃO RECORRIDO DIVERGENTE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO” (RE 1504556/BA. Relatora: min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 06/08/2024. Publicação: 13/08/2024).
Como se sabe, a jurisprudência dominante, especialmente do STF, mesmo não vinculante, deve, via de regra, ser seguida, sobretudo quando calcada em motivação consistente. Carlos Maximiliano [6] já recomendava que, sem fundamentos sólidos, “não deve o juiz com facilidade se afastar da autoridade da jurisprudência dos tribunais (…)”.
Na hipótese em tela, porém, a compreensão da Corte Suprema não é vinculante, necessitando ser aprimorada no que diz respeito aos casos de isenção tributária de que trata a Lei nº 7.713/1988 (inciso XIV). Se o entendimento superior não é dotado de eficácia obrigatória e se revela impreciso num determinado ponto, como se demonstrará abaixo, não deve, respeitosamente, ser replicado pelas instâncias inferiores. O STF precisa aperfeiçoar sua posição no que toca às isenções tributárias decorrentes de doenças graves.
É comum o ajuizamento de ações perante a Justiça Federal e a Justiça Estadual [7] em que o autor pleiteia a isenção fiscal antes mencionada sem antes ter dirigido seu pedido ao órgão responsável pelo pagamento de seus proventos ou pensões.
Então cumpre indagar: tem sentido o Judiciário ser acionado sem que esse tipo de pleito tenha sido formulado — e muito menos negado — na via administrativa? Por que dispensar o prévio requerimento administrativo nesses casos, se muitos desses pedidos são deferidos pela autoridade administrativa?
Esses casos não apresentam particularidades que recomendem excepcionar o prévio requerimento administrativo. Não se está diante de situações em que o agente público privilegia um ato normativo em detrimento da lei ou da jurisprudência dos tribunais. Aqui não há uma resistência notória do poder público a legitimar a procura direta pelo Judiciário. Ainda, se houvesse significativa demora do órgão administrativo, também se poderia reputar logo presente o interesse de agir sem a negativa estatal. Porém, isso não se verifica. Não se vê motivos para, em casos dessa natureza, dispensar o prévio requerimento administrativo.
É claro que a matéria tributária não está abrangida pela tese do Tema nº 350 do STF. Ela diz respeito aos casos de Direito Previdenciário, mas isso não significa que o Judiciário deva sistematicamente substituir a administração em casos fiscais, apreciando pleitos que poderiam ser tranquilamente examinados e lá deferidos.
O Judiciário só deve ser provocado se houver real necessidade, se houver resistência notória do poder público ou demora acentuada na apreciação do pedido, o que não se verifica nas situações em questão. Como dito, houve delegação da análise à fonte pagadora exatamente para favorecer a apresentação dos pedidos e acelerar a sua apreciação.
Busca dispensável do Judiciário
Por que insistir numa compreensão desacertada de irrestrito acesso ao Judiciário em casos tributários nos quais não há pretensão resistida nem resistência notória do poder público? Em verdade, o que se vê é que o entendimento do STF, acima explicitado, acaba por respaldar ações sem lide. Se a isenção fiscal em discussão (Lei nº 7.713/1988) não foi pleiteada e muito menos negada pela Administração, por qual motivo se deve considerar presente o interesse processual?
O interesse de agir pressupõe que a parte autora tente ver seu direito reconhecido na via administrativa, sobretudo porque não há aqui um quadro de resistência notória do poder público a recomendar o afastamento do prévio requerimento administrativo. Reitero a informação de que muitos casos são deferidos pela autoridade administrativa. A ausência de tentativa de resolução administrativa demonstra a falta de pretensão resistida, elemento essencial para legitimar o ajuizamento da ação.
O Poder Judiciário não pode simplesmente substituir as outras instituições. O interesse processual é uma das condições da ação e precisa estar presente quando a demanda é proposta. Não se deve tolerar a prática de manejo precipitado de ações, sem haver análise ou indeferimento administrativo ou extrajudicial, colocando a parte requerida numa situação sem saída, tendo de suscitar a preliminar e, ao mesmo tempo, impugnar o mérito da causa. A aceitação desse tipo de estratégia acaba por esvaziar a regra do artigo 17 do CPC. Para que seja reservado o papel de cada instituição, o exercício regular de suas funções, é preciso que, em casos dessa natureza, exista a prévia provocação extrajudicial. Havendo denegação do pleito ou demora na sua análise, as portas do Judiciário estarão abertas [8].
É inaceitável a busca dispensável do Judiciário sem reconhecer que há muito ele está sobrecarregado de casos e que seu estoque é crescente, gigantesco. Seguir nesse rumo, como destaca Ivo Gico Jr. [9], “é acelerar e incentivar a sobreutilização do Judiciário, o qual já não dá conta da demanda hoje”. Não cabe ao Judiciário, sob a alegação de violação ao princípio constitucional do amplo acesso à jurisdição (artigo 5º, XXXV, da CF/1988), antepor-se às instituições. Essa linha de pensar não é razoável, econômica e nem eficiente, já que resulta o aumento desnecessário da demanda judicial.
Volto a dizer: como regra, a jurisprudência das cortes superiores deve ser prestigiada, isto é, seus julgados numa certa direção, mesmo não vinculantes, comumente devem ser seguidos, por serem fortemente persuasivos, mas aqui, a meu ver, faltam densidade jurídica e logicidade na compreensão que dispensa o prévio requerimento administrativo nesses casos de isenção fiscal calcados na Lei nº 7.713/1988.
Enfim, é necessário que seja ajustada a compreensão do STF acerca do assunto exposto. A inexistência de resistência notória por parte do poder público (que defere muitos pleitos desse jaez) precisa ser tomada em consideração pela Corte Suprema. Como dizia Maximiliano [10] a partir de lição de Dumoulin, “pequena diferença no fato induz grande diferença de direito”.
[1] De acordo com a tese do Tema n. 250 do STJ, “(…) o rol contido no referido dispositivo legal é taxativo (numerus clausus), vale dizer, restringe a concessão de isenção às situações nele enumeradas”.
[2] “Não se aplica a isenção do imposto de renda prevista no inciso XIV do artigo 6º da Lei n. 7.713/1988 (…) aos rendimentos de portador de moléstia grave que se encontre no exercício de atividade laboral” (Tese do Tema n. 1037 do STJ).
[3] Como pertence aos Estados e aos Municípios o produto da arrecadação do IR, incidente na fonte, sobre a renda e proventos pagos por eles, suas autarquias e pelas fundações (arts. 157, I, e 158, I, da CF/1988), os pleitos devem ser dirigidos a seus respectivos órgãos gestores dos pagamentos dos proventos e pensões (ver tese do Tema n. 1130 do STF).
[4] Aliás, o número de agências da RFB no País tem apresentado uma redução nos últimos anos (Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/08/30/receita-federal-suspende-atividades-em-12-agencias-do-pr-e-sc-por-falta-de-servidores-veja-cidades.ghtml. Acesso em: 17/12/2024), enquanto o de agências da Previdência Social já supera 1.500 (Disponível em: www.gov.br/inss/pt-br/canais_atendimento/rede-de-atendimento. Acesso em: 17/12/2024).
[5] “I – A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise. É bem de ver, no entanto, que a exigência de prévio requerimento não se confunde com o exaurimento das vias administrativas; II – A exigência de prévio requerimento administrativo não deve prevalecer quando o entendimento da Administração for notória e reiteradamente contrário à postulação do segurado; III – Na hipótese de pretensão de revisão, restabelecimento ou manutenção de benefício anteriormente concedido, considerando que o INSS tem o dever legal de conceder a prestação mais vantajosa possível, o pedido poderá ser formulado diretamente em juízo – salvo se depender da análise de matéria de fato ainda não levada ao conhecimento da Administração –, uma vez que, nesses casos, a conduta do INSS já configura o não acolhimento ao menos tácito da pretensão; IV – (…)” (RE 631.240. Relator: Min. Luís Roberto Barroso).
[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 150-151
[7] Nesse sentido: Súmula n. 447 do STJ, tese do Tema n. 193 daquela corte, assim como teses dos Temas n. 572 e 1130 do STF.
[8] Tornando-se necessário o ajuizamento da ação declaratória e de repetição de indébito, deverá ser proposta contra a União (já que detém a competência tributária), caso o INSS ou outro ente federal for a fonte pagadora dos proventos ou pensão. Se a fonte pagadora for estadual ou municipal, a demanda deverá ser ajuizada em face do Estado-membro ou do Município, conforme o caso, pois são os destinatários da arrecadação do IR nessa situação. Consulte as notas 3 e 7.
[9] GICO JR., Ivo Teixeira. A Tragédia do Judiciário. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 267, set/dez 2014, p. 178.
[10] MAXIMILIANO, op. cit., p. 149.
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