História da Terracap: de muitas dificuldades, as mais peculiares
22 de dezembro de 2024, 13h25
Tema de muita indagação é a disciplina jurídica aplicável aos imóveis de propriedade da Terracap, empresa pública que atua como uma agência de desenvolvimento do Distrito Federal e é responsável pela regularização fundiária urbana. Esses imóveis estão sujeitos a uma disciplina própria, muitas vezes descolada do restante das normas que compõem o direito imobiliário, o que abre espaço para aplicações por vezes dificultosas. Essas estruturas sui generis se repetem Brasil afora, no Vale do São Francisco, a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), em Pecém, o Complexo Industrial e Portuário Pecém S.A. e tantas outras.
Dentre todas, talvez a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) tenha a história mais interessante e intimamente ligada com a formação do Brasil que conhecemos hoje. Foi criada no ano de 1972 por uma cisão de sua antecessora, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil. A Novacap, por sua vez, havia sido incorporada em 1956 por ocasião da alteração da capital brasileira para Brasília.
Considerando-se o perfil de baixa densidade populacional da região Centro-Oeste do território nacional à época, e antevendo o influxo de migrantes que a alteração da sede da nação e os demais incentivos poderiam provocar, a Novacap atuava na tentativa de impedir a ocupação desordenada da capital e seu entorno. Mais tarde, passada a onda inicial da mudança da capital, se manteve a gestão de terras públicas pela empresa, agora sob a designa de Terracap, repaginada para absorver questões como a garantia da função social da propriedade, mas ainda destinada a promover a regularização da ocupação e dos registros das terras.
A dita regularização dessa ocupação se refere, nada mais, à formalização de um contrato com a pessoa ocupante da terra, estabelecendo direitos e deveres à semelhança da Secretaria do Patrimônio da União em relação aos terrenos de marinha e acrescidos quando toma ciência de que parte delas encontra-se ocupada por terceiros. A Terracap entendeu por bem ser especialmente detalhista em relação às atividades admitidas em seus imóveis e ao instrumento de formalização dessas ocupações mediante um complicado tramado de leis sobrepostas, enrijecidas pelas regras inerentes às empresas públicas como a Terracap.
Destinação rural
Nesse contexto, contudo, além de formalizar a ocupação, a Lei Distrital nº 5.803/2017, alterada ao longo dos anos, também prevê qual a destinação e o uso dos imóveis. Aqui temos um primeiro ponto de dificuldade, já que o texto constante do início do artigo 4º, inciso I, se inicia com a determinação de que determinados imóveis devem “ter destinação rural“. Esse texto inicial induziria à conclusão de que o uso admitido, consistentemente com o artigo 4º da Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra), é o de atividade extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial. Porém, a comparação entre as duas legislações revelará que a distrital amplia sobremaneira o leque compreendido na tal destinação rural dizendo ser “entendida como tal a atividade de agricultura, pecuária, agroindústria, turismo rural ou ecológico, preservação ambiental, reflorestamento, geração de energia renovável, inclusive solar fotovoltaica ou eólica”, “infraestrutura de telecomunicações ou radiodifusão”, “estabelecimentos comerciais” ou “atividades religiosas”.
Há, então, dois conceitos distintos de imóveis rurais. Um específico para aqueles imóveis detidos pela Terracap e outro aplicável de forma geral a todos os demais imóveis no território brasileiro à luz do Estatuto da Terra. Portanto, a atividade rural em imóveis da Terracap admite um espectro amplo de atividades se comparada à diminuta lista positivada no Estatuto da Terra. Essa dualidade de conceitos é uma discricionaridade legislativa aparentemente sem razões técnicas específicas, apenas uma tentativa de fomentar os usos tidos por mais convenientes pela administração pública a determinado grupo de imóveis. Talvez, aliás, esse conceito da legislação distrital seja mais adequado ao incluir atividades de geração de energia. Quanto às demais atividades, talvez não, pois, o uso de estabelecimentos comerciais parece demandar um planejamento diferente, próprio da lei de zoneamento, uso e ocupação do solo urbano.
Seguindo essa linha de descolamento da legislação nacional, o Decreto Distrital nº 43.154/2022 regulamentou a aludida Lei Distrital e abriu a possibilidade de exploração das terras públicas cedidas por contrato de parceria rural que contenha os seguintes requisitos previstos no caput do artigo 32, aqui transcritos para referência, a saber:
I – ser formalizada mediante contrato escrito, firmado entre o ocupante ou concessionário, na condição de parceiro-outorgante e um terceiro, pessoa natural ou jurídica, neste último caso que inclua atividade de destinação rural em seu objeto social como atividade principal, na condição de parceiro-outorgado;
II – ter prazo de vigência determinado;
III – conter cláusula estabelecendo ao parceiro-outorgante a responsabilidade direta, perante a Administração Pública e perante outras pessoas naturais e jurídicas, pela exploração da terra rural;IV – conter cláusula explicitando a ciência do parceiro-outorgado de que as terras são públicas e que foram concedidas ao parceiro-outorgante pelo concedente, mediante contrato de CDU ou da escritura de CDRU, ou que esteja em processo de regularização rural, conforme o caso;
V – conter cláusula onde declare que a Administração Pública, por qualquer de seus órgãos e entidades, não é responsável por qualquer vício, consequência ou outro consectário do negócio jurídico firmado; e
VI – apresentar uma via do contrato de parceria rural ou sua cópia legível e autenticada à SEAGRI-DF, para fins de registro da informação.
Parceria rural
A parceria rural mencionada pela Lei Distrital nº 5.803/2017 é um tipo contratual que de igual forma induziria ao Estatuto da Terra, o que, a priori, parece atrair a aplicação subsidiária do Estatuto da Terra e de todas as normas aplicáveis à parceria agrícola. No entanto, dificuldades práticas afastam rapidamente essa açodada conclusão. A parceria agrícola tipificada na legislação agrária pressupõe uma quase-sociedade entre o parceiro proprietário e o agricultor, uma empreitada comum em que as duas partes no ajuste compartilhariam riscos e lucros do projeto em percentuais legais definidos legalmente.
Se assim não for, não importa o contrato se intitular “parceria”, pois será apenas uma tentativa de travesti-lo como tal para esconder outros desdobramentos. Estando a parceria agrícola prevista no Estatuto da Terra, é um contrato agrário apto a regular essa joint venture rural tal como estabelecida no âmbito dessa legislação e não é difícil perceber que funcionaria bem para disciplinar os esforços comuns para o plantio de soja, por exemplo. Como compatibilizar esse instituto com a atividade religiosa? Qual seria a alocação de riscos, como apropriar receitas ou distribuir lucros de uma atividade que, por natureza, prescinde de fins lucrativos?
Além dessa incompatibilidade com algumas atividades, o Estatuto da Terra estabelece a forma de remuneração do parceiro-outorgante (ou detentor da terra) calcada em critérios claramente típicos das atividades extrativa vegetal, pecuária ou agroindustrial. A definição de um limite de remuneração ou ocupante, portanto, não avançaria os critérios de proporcionalidade do Estatuto Rural.
Esses dois pontos revelam uma confusão criada pelo fato de a legislação da Terracap ter importado conceitos da legislação nacional, sem a necessária adaptação, gera uma situação sui generis em que os conceitos têm idêntica denominação, mas conteúdo bastante diferente.
Sobre esses dois pontos, aliás, paira a questão hierárquica da legislação que se impõe verificar e da qual é possível afirmar, sem grandes elocubrações, que uma lei distrital, ou estadual para não deixar de fora qualquer um dos entes federativos, não pode alterar o conceito tipificado de atividade. Mas pode, sim, estabelecer um tipo contratual próprio para uma situação específica, ainda que pegando emprestada uma nomenclatura utilizada para designar um instituto distinto e, assim o fazendo, permitir uma interpretação equivocada ou outra intenção, de induzir em erro ou para acobertar situação diversa, o que deve sempre ser evitável.
Legislação distrital prevalece
O que suporta essa situação passível de ser questionada é o fato de a legislação distrital ser lei especial e que, assim, prevaleceria nesse caso sobre a legislação federal para manter o uso dos imóveis coerente com o interesse público local [1]. Busca-se uma semelhança difícil de aceitar com as leis de uso e de ocupação do solo urbano, cuja competência é, sem dúvida, do governo do Distrito Federal, ou dos municípios. O Distrito Federal tem autonomia [2] administrativa, política e organizacional de seu território, o que abrange os aspectos urbanísticos, de seu uso e ocupação, sendo responsável por Brasília e as outras 30 regiões administrativas, que dependem do governo do Distrito Federal como se fossem bairros.
Essa análise induz à conclusão de que tanto na caracterização do imóvel da Terracap, quanto na adoção dos instrumentos competentes, deve-se adotar o conceito rural abrangente de uma ampla rede de atividades, e o contrato de parceria rural — esse apto a regular relações que não se enquadram exatamente no conceito de parceria rural do Estatuto da Terra. Todo cuidado é pouco, no entanto.
As peculiaridades de cada caso específico devem ser consideradas. Além disso, a depender da destinação pretendida, mecanismos especiais que encontramos na legislação distrital, como a outorga onerosa do direito de construir (Odir) e a outorga onerosa de alteração de uso (Onalt), instrumentos de gestão urbana e controle da política urbana no Distrito Federal, me faz ponderar que não poucas vezes a caraterização de um imóvel como rural nesse conceito amplo pode não ser interessante.
Pensando nesse contexto, não é apenas a história da Terracap que é mais interessante, mas as suas peculiaridades e os seus desafios são ainda maiores, pois os caminhos nesse complexo tramado legislativo são especialmente desafiadores.
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[1] Esse interesse público local é revelado pela competência da legislação distrital em regular o uso e a ocupação dos imóveis na região administrativa da Capital Federal. Soma-se à tal competência, em reforço à tesa que se defende, a dotação orçamentária própria do Governo do Distrito Federal e a sua autonomia administrativa em sentido amplo e, assim, abrangendo as regras de uso e ocupação, bem como a forma jurídica para esse fim.
[2] Nesse sentido, vide artigos 1º e 18 da Constituição Federal, bem como, Lei Federal 4.545/64, dentre outras.
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