Castração química de pedófilos é inconstitucional, populista e ineficaz
22 de dezembro de 2024, 8h49
A castração química de pedófilos é uma pena cruel e degradante. Viola a Constituição Federal e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Além disso, é uma medida populista e ineficaz, que não reduzirá a violência sexual contra crianças e adolescentes. É o que afirmam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
A Câmara dos Deputados aprovou em 12 de dezembro a castração química de pedófilos. A proposta foi inserida durante a votação de um que projeto que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para estabelecer o cadastro nacional de pedófilos. O projeto segue agora para o Senado.
O texto aprovado é o substitutivo da relatora, deputada Delegada Katarina (PSD-SE), para o Projeto de Lei 3.976/2020, do deputado Aluisio Mendes (Republicanos-MA), e para a versão elaborada em junho último pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família.
Pelo projeto, a castração química será aplicada cumulativamente às penas já previstas para os crimes de violência e exploração sexual previstos tanto no ECA quanto no Código Penal.
Segundo o destaque, a medida será feita mediante o uso de medicamentos inibidores da libido, nos termos regulamentados pelo Ministério da Saúde, observando-se as contraindicações médicas.
Medida inconstitucional
O artigo 5º, XLVII, “e”, da Constituição Federal, estabelece que não haverá penas cruéis. Já o inciso XLIX do mesmo dispositivo assegura aos presos o respeito à integridade física e moral. Portanto, a castração química é inconstitucional, apontam especialistas.
A aprovação dessa penalidade seria um retrocesso, avalia a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Adriana Ramos de Mello, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia, do Observatório de Pesquisas Bryan Garth da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
“Trata-se de uma pena cruel e degradante, que viola não apenas a Constituição Federal, mas também tratados internacionais, sobretudo a Convenção Americana de Direitos Humanos”, aponta a magistrada.
Além disso, avalia, a castração química não acabará com a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.
“Temos que avançar em políticas públicas de proteção e segurança para crianças e adolescentes, e estruturar o sistema de denúncias. Também é necessário melhorar a estrutura policial, investindo em equipamentos e tecnologias para que os crimes sejam devidamente investigados, e os culpados, punidos, de acordo com a legislação penal que já existe”, analisa Adriana.
A advogada Maíra Fernandes, professora da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, igualmente considera a castração química inconstitucional.
“Mais uma vez, a Câmara dos Deputados aprova uma medida populista, que não é embasada em nenhum estudo sério sobre o tema, totalmente demagógica e que não resolve o problema da pedofilia no país. Mais uma vez, foca-se na punição, e não na prevenção de um crime grave. Uma punição cruel, em um país que comete erros judiciais gravíssimos e que, não raro, prende e condena inocentes, como evidencia o trabalho do Innocence Project e de diversas defensorias públicas”, diz a criminalista.
Ela ainda ressalta que a castração química, conforme a experiência de países que a impuseram, não evita a prática de novos atos de violência sexual, até porque só é aplicada a homens já condenados.
“Melhor seria se nosso Legislativo estivesse empenhado em aprovar medidas de prevenção ao crime, de fortalecimento de redes de apoio às vítimas e, sobretudo, se pensasse em ações com o objetivo de esclarecer e reeducar a sociedade. A prática de crimes sexuais está muito mais ligada a uma relação de poder do homem com a vítima, do que a uma questão de libido. Em torno da prática do estupro, há uma questão cultural, há o machismo estrutural da nossa sociedade. Combater esse machismo deveria ser o foco central de atuação dos três poderes”, afirma Maíra.
Efeito duvidoso
Em artigo publicado na ConJur, o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino e a advogada Fabiana Mendes da Silva Christino afirmam que, no Brasil, a grande maioria dos casos de abuso sexual contra menores está ligada a relações de parentesco, frequentemente entre padrastos e enteados. Assim, a convivência íntima cria oportunidades para a ação de predadores sexuais.
As penas para esses crimes são severas, raramente inferiores a 10 anos de reclusão em regime fechado. Os casos de reincidência, destacam, são a exceção da exceção e costumam ocorrer pelo mesmo método, ou seja, a facilidade provocada pela convivência íntima. Existe apenas um único grande caso de pedofilia nestes termos registrado no Brasil: o do médico Eugênio Chipkevitch, condenado a 114 anos de prisão por mais de 40 crimes de abuso sexual.
A efetividade da castração química é duvidosa, opinam os Christino. “De primeiro porque não poderia ser aplicada enquanto no cumprimento da pena, até porque, estando preso, não teria a possibilidade de praticar este tipo de crime. Cumpre lembrar que, no sistema prisional, condenados por crimes sexuais são mantidos em presídio à parte, dada a impossibilidade de convivência com a população carcerária, que vê este tipo de crime como intolerável, matando quem cai em suas mãos.”
“Como as penas são longas, o efeito seria zero. Antes que qualquer jejuno, lembre que a castração química possa ser aplicada após a obtenção da liberdade pelo criminoso, forçoso reconhecer que a flexibilização da pena exige o prognóstico de que o condenado não volte a delinquir, se este prognóstico for positivo para flexibilizar a pena. Por lógica, a castração química seria inexigível. Caso contrário, havendo prognose desfavorável, deveria o condenado ser mantido em cárcere”, avaliam.
E se o condenado for portador de alguma doença mental, como obsessão sexual por crianças, deverá ser internado em hospitais psiquiátricos, sendo inviável a castração química. Dessa maneira, eles concluem que a penalidade é incompatível com sistema penal brasileiro. “Ou o condenado não tem condições de sair e deve permanecer contido, ou está em parte ao menos recuperado e a castração é inútil ou desaconselhável.”
Cadastro ilegal
No fim de novembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 15.035/2024, que determina a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais. O objetivo é montar um banco de informações aberto à consulta pública com dados de pessoas condenadas pelos crimes de estupro, estupro de vulnerável, registro não autorizado de relação sexual, favorecimento da prostituição e cafetinagem.
O sistema vai permitir que o público tenha acesso ao nome completo e ao número de Cadastro de Pessoa Física (CPF) do condenado em primeira instância. Caso o réu seja absolvido em instâncias recursais, suas informações não ficarão mais disponíveis para consulta pública.
A maioria dos especialistas consultados pela ConJur acredita que a lei é inconstitucional e que, além disso, não deve ajudar no combate efetivo a crimes sexuais.
O paralelo mais óbvio com a Lei 15.035/2024 é a Lei de Megan, aprovada nos Estados Unidos em razão do estupro e assassinato de uma menina de 7 anos, Megan Kanka, por um homem chamado Jesse Timmendequas, que já havia sido preso por tentar estuprar duas crianças.
A norma determina que os estados americanos tenham um registro e um sistema de notificação sobre os criminosos sexuais. Cada estado é responsável por adotar um modelo de aplicação da lei e operação dos bancos de dados.
A análise dos efeitos da lei, feita pela Universidade de Rutgers e pelo Departamento de Penas do estado de New Jersey, entretanto, aponta que ela falhou na redução de casos de crimes sexuais. Por isso, os críticos do regramento questionam também o custo de aplicação da lei — manter um banco atualizado sobre criminosos sexuais não se justifica, uma vez que não existem dados de que a medida seja eficaz.
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