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Capítulos de história constitucional: direito e religião (parte 3)

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22 de dezembro de 2024, 8h00

Nos Embargos Culturais desta semana, exploro como o cristianismo, em suas múltiplas interações com o direito, contribuiu para a formação de paradigmas das democracias ocidentais e do constitucionalismo contemporâneo. Assim, na sequência dessa série de ensaios temáticos sobre Direito e Religião, no contexto da construção de capítulos de história constitucional, continuo explorando semelhanças e dissemelhanças entres esses dois campos da experiência humana.

É inegável que a influência do cristianismo na construção do direito ocidental é uma das mais marcantes na história das ideias e das instituições. Desde as bases da ética jusnaturalista até o princípio da dignidade da pessoa humana, o ideário cristão moldou alicerces de uma cultura jurídica que marca vários textos constitucionais contemporâneos.

Essa conexão, que ultrapassa os limites do tempo e do espaço, reflete não apenas uma herança histórica, mas também uma convergência de valores universais que fundamentam as concepções contemporâneas de justiça, igualdade e liberdade.

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Primeiramente, chamo a atenção para o tema da interpretação. Direito e Religião compartilham o desafio da hermenêutica, enfrentando questões de contexto, tradução e adaptação. Essa interseção, longe de ser uma mera curiosidade, oferece insights profundos sobre como os seres humanos construímos sentido e ordem, no domínio espiritual e na vida pública e política.

A hermenêutica bíblica, à luz de uma reconstrução histórica de seus vários modelos, protagoniza trajetória de algum modo parecida com a hermenêutica jurídica. Isto é, as hermenêuticas bíblica e jurídica enfrentaram discussões parecidas, a exemplo dos temas da “morte do autor”, do estruturalismo (há também um estruturalismo bíblico), das teorias da desconstrução, da hermenêutica da suspeita, do pós-modernismo. Pensadores como Gadamer, Derrida, Heidegger e Saussure suscitam discussões no Direito e na Teologia também.

Em segundo lugar, e retomo a questão já mencionada em colunas anteriores, a percepção de hierarquia é também outro elemento comum entre Direito e Religião. Quando o Papa Inocêncio III (1198-1216) justificou teologicamente seu poder político subordinando o Estado à Igreja, situação que se incrementava desde a conversão de Constantino (séc. IV d.C.), desenhou-se, ainda que indiretamente, paralelos entre os poderes clerical e secular, informados por regimes próprios de regras de obediência.

A história da teologia política medieval registra a construção da noção de que o chefe político era ao mesmo tempo o chefe religioso, ainda que seus corpos e identidades materiais não se confundissem; é o tema do grande livro de Ernest Kantorowicz (1895-1963), “Os dois corpos do Rei”, hoje raríssimo.

A expressão “hierarquia” radica em dois substantivos gregos, significantes de “sagrado” e de “poder”. Remete-se à ideia de “sagrado”; nesse sentido, etimológico, relações hierárquicas derivam de relações marcadas por determinações não seculares. A hierarquia dos arranjos institucionais do Direito também reflete a hierarquia das formulações organizacionais das estruturas eclesiásticas. As concepções discursivas entre organizações jurídicas e eclesiásticas guardam muita semelhança.

Concebe-se a necessidade de um Governo na Igreja, ainda na Igreja Católica primitiva, bem como na Igreja Reformada calvinista, a par, naturalmente, de todas as comunidades religiosas que se tem notícia. O estudo da organização da Igreja Católica nos indica intensa produção normativa fixando fontes de poder, centradas em Coleções Gregorianas, nos Decretos de Graciano, nas coleções gerais de Atos Pontifícios.

Trata-se de atos normativos e estruturais, aproximando os conceitos de clero, hierarquia e constituição territorial, de modo que a relação entre o sacerdote e a autoridade eclesiástica se pauta num contexto de absoluta hierarquia, que se reproduziu nas instituições jurídicas, especialmente porque a Filosofia Escolástica (substancialmente cristã) ditou os modos de ensino das primeiras faculdades de Direito na Europa, a partir de Bolonha.

Há exemplos de confluência entre esses dois campos, Direito e Religião, quanto à composição de categorias hierárquicas, porque concretamente normativas. Exemplifico também com o vigente Código de Direito Canônico que conta com parte específica que dispõe sobre a estrutura hierárquica da Igreja, tratando do Sumo Pontífice, do Colégio dos Bispos, do Sínodo, dos Cardeais, da Cúria Romana, bem como das várias igrejas e das autoridades nelas constituídas, a exemplo das províncias e regiões eclesiásticas, dos vigários-gerais, dos conselhos pastorais, dos capelãos, entre outros assuntos e nichos de poder eclesiástico. Nas organizações protestantes originárias, também por exemplo, a organização da Igreja é, na essência, a formatação de quadros e a captação de ocupantes de estruturas hierárquicas.

Do ponto de vista discursivo constata-se a semelhança entre Direito e Religião também na estrutura do Código de Direito Canônico cotejando-se esse livro com os textos normativos compilados e codificados da tradição ocidental. O Livro I do Código de Direito Canônico, por exemplo, dispõe sobre leis eclesiásticas, costumes, decretos gerais, instruções, atos administrativos singulares (decretos, rescritos, privilégios, dispensas) e prescrição.

O Livro V trata dos bens temporais da Igreja, o Livro VI dispõe sobre delitos e penas num contexto eclesiástico, o Livro VII trata sobre matéria processual, com ênfase na organização dos juízos e tribunais, nas partes da causa, nas ações e exceções, com as singularidades de juízos contenciosos, inclusive com normas sobre processo penal eclesiástico, e decorrentes aspectos de investigação prévia, de procedimentos e de ações para reparação de danos.

Há também semelhanças nas formas expositivas de textos religiosos e textos normativos. Ambos compartilham um sentido de “doutrina”. O comentário chamado exegético, com base em excertos bíblicos ou com base em excertos de textos constitucionais (e legais) é também outro ponto de convergência entre Direito e Religião, especialmente no que se refere ao direito ocidental e à tradição cristã.

Na tradição cristã, por exemplo, há exemplos nos comentários que Agostinho anotou sobre a Primeira Epístola de João, ainda no século 4 d. C. Mais contemporaneamente, também como exemplo, porque há farta literatura, os Comentários à Nova Versão Internacional das Escrituras, ou mesmo um Comentário Bíblico dito Popular.

No Direito, o estilo exegético é também fórmula norte-americana, a exemplo do modelo expositivo e argumentativo dos Artigos Federalistas, atribuídos a Alexander Hamilton, James Madison e John Jay. Esse procedimento discursivo é recorrente no direito brasileiro, em todos os campos, com ampla aceitação editorial.

O comentador explora o texto interpretando, fixando diálogos com outras passagens, extraindo sentido e aplicação, também com foco nos aspectos linguísticos, culturais e teleológicos. Há muita semelhança entre os métodos utilizados na Teologia e no Direito, no que se refere à técnica do comentário textual.

A relação entre Direito e Religião, que tenho explorado nessa, sugere como esses dois campos, apesar de suas diferenças fundamentais, compartilham raízes, estruturas e desafios hermenêuticos permanentes.

A interseção entre o sagrado e o normativo, evidente tanto nas tradições exegéticas quanto na organização hierárquica de seus textos e instituições, aponta para um legado comum de busca por ordem, sentido e autoridade. Ao traçar essas conexões, reforça-se a relevância do estudo histórico e comparativo para compreender como Direito e Religião se entrelaçam, moldando não apenas as instituições, mas também a maneira como as sociedades ocidentais geralmente lidam com questões essenciais de fé, poder e justiça.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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