Segunda Leitura

Análise do assédio moral sob diferentes aspectos

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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  • é juiz federal em Florianópolis-SC mestre em Ciência Jurídica professor de Psicologia Jurídica e Sociologia Jurídica.

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22 de dezembro de 2024, 8h00

Não há definição legal para o assédio moral, porém, é certo afirmar que se trata de conduta que caracteriza comportamento hostil e antiético intencional, de modo abusivo e frequente, que possa atingir a dignidade de uma pessoa.

Orientação preventiva da Controladoria Geral do Estado de São Paulo ensina que “O assédio moral, em sentido amplo, ocorre quando um ato ou uma conduta atinge a dignidade da pessoa humana, provocando humilhação e constrangimento, o que pode ocorrer em qualquer esfera das relações interpessoais”. [1] Segundo Carla Pinheiro, “A conduta do assediador é antiproducente, antiética e se prolonga no tempo, não se referindo a algum acontecimento ocasional ou pontual”. [2] 

Não há, até o presente momento, lei federal regulando a matéria. Há, contudo, o PL 4591, de 2001, em tramitação na Câmara dos Deputados, que visa alterar Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, para nela incluir penalidades pela prática de “assédio moral” por parte de servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicas federais a seus subordinados.[3]

No âmbito estadual, alguns estados já editaram suas leis, como Minas Gerais através da Lei Complementar nº 116, de 2011. Idem na área municipal, por exemplo, a Lei Municipal nº 303, de 25 de março de 2022, de Natal (RN).

Muito embora ela possa dar-se nos mais diversos locais, como, por exemplo, no treino de esportistas, costuma ser mais comum nas relações de trabalho, na esfera privada ou pública.

O assédio moral está presente em empresas e instituições que ainda não chegaram à cultura de integridade, que é um requisito para a dignidade profissional. Seu enfrentamento se dá pelo estabelecimento de standards mínimos para as relações humanas no ambiente de trabalho (físico ou virtual).

Até o final do século 20, o abuso nas relações profissionais ainda era algo relativamente comum e tolerado. Nas relações de trabalho, no serviço público e na esfera privada, havia certa normalidade no fato de um superior hierárquico dirigir-se a um subordinado de forma excessivamente enérgica, até violenta, aplicando sermões públicos ou fazendo ameaças de toda espécie. No século 21, no entanto, tais práticas passaram a compor o núcleo do assédio moral.

Em alguns casos, os acontecimentos isolados (como uma grave ofensa verbal pública) podem vir a configurar dano moral, sujeito à reparação civil, mas não assédio, cuja configuração exige comportamento reiterado e sistemático. Significa que o dano moral é gênero do qual o assédio moral é espécie mais gravosa.

Hipóteses de assédio moral

Não existe uma listagem exaustiva das condutas que caracterizam o assédio. No entanto, os episódios mais frequentes ocorrem por meio de palavras, posturas, atos, gestos ou escritos. Há consenso sobre a necessidade de reiteração do comportamento.

Abaixo, trazemos uma lista exemplificativa de comportamentos que, quando adotados de modo reiterado e sistemático, tendem a ser reconhecidos como assédio moral:

a) Praticar o isolamento do assediado;

b) Cortar a comunicação direta;

c) Ignorar a presença na frente dos outros;

d) Proibir colegas de falar com a vítima;

e) Desqualificar o trabalho realizado, especialmente se for em público;

f) Retirar o trabalho, criando situação prolongada de ócio;

g) Criar ambiente desfavorável;

h) Empregar ironia reiteradamente, em escritos ou em público;

i) Insinuar boatos depreciativos;

j) Supervisionar excessiva e desproporcionalmente;

k) Abusar do poder disciplinar;

l)   Pedir a execução de tarefas sem interesse ou afinidade com o trabalho;

m) Induzir ao erro;

n) Atribuir erros imaginários;

o) Fornecer instrumentos de trabalho inferiores ou retirá-los imotivadamente, dificultando seu exercício;

p) Estabelecer horários injustificados;

q) Prestar instruções confusas e imprecisas ao trabalhador;

r) Criar ou endossar apelidos pejorativos;

s) Acusar sistematicamente, em público, sobre alegado erro;

t) Aplicação de reprimenda em público;

u) Prevalecer-se de momentos a sós com a vítima para intervenções indevidas;

v) Criar ambiente de estresse ou impor, sem necessidade, trabalhos urgentes;

x) Cobrar excessivamente por produtividade acima das possibilidades do executor.

Categorias de assédio

A literatura classifica o assédio moral em algumas categorias, de acordo com a sua procedência:

1º- Vertical descendente: é aquele praticado pelo superior hierárquico contra o subordinado, valendo-se da hierarquia existente na relação de trabalho. É o mais frequente.

Spacca

2º- Vertical ascendente: é aquele praticado pelo subordinado contra o superior hierárquico. A prática de assédio moral não é unidirecional: em certos casos, a postura do subordinado pode vir a comprometer o clima organizacional e a desestabilizar o ambiente de trabalho do superior hierárquico. Não raramente, o assédio vertical ascendente é praticado em grupo, levando o superior hierárquico ao desgaste emocional extremo e comprometendo a sua continuidade.

3º- Horizontal ou paritário: é aquele que ocorre entre colegas de trabalho que não possuem relação hierárquica entre si. O assédio horizontal costuma se manifestar por meio de brincadeiras indesejadas, gracejos inoportunos, comentários indelicados, menosprezo, sarcasmo, ironia, entre outros comportamentos que não pressupõem superioridade hierárquica.

Atualidades normativas

Não há uma lei específica sobre assédio moral. O que há são normas esparsas, de diferentes hierarquias, que dispõem sobre um aspecto específico. Neste particular, vale lembrar a Constituição, no artigo 1º,  “a” (dignidade da pessoa humana) e no artigo 5º, inciso X, (proteção a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas).[4]

Vejamos como os ramos do direito tratam o assédio moral.

No âmbito trabalhista, as relações entre quem detém a gestão dos serviços e quem as executa frequentemente atingem um nível de tensão. Ana Luisa Guimarães Fonseca alerta que:

Nas relações hierárquicas de trabalho, deve-se sempre se ater ao poder de direção do empregador, ou seja, o direito do mesmo de decidir, apontar a maneira pela qual seus empregados realizarão as atividades laborais. O poder de direção do empregado engloba ainda o poder de organização, o poder de controle e o poder disciplinar. [5]

Há, entretanto, limites para estes poderes, os quais, quando forem ultrapassados, podem constituir assédio moral.

Não há previsão explícita de assédio moral na CLT. Todavia, o artigo 483, alíneas “a” e “b”, dá ao empregado o direito de reivindicar a extinção do contrato de trabalho, com todas as suas consequências jurídicas.

Na esfera do serviço público federal, da mesma forma inexiste previsão específica, mas há leis estaduais, municipais e normas infra-legais.

No âmbito do Poder Judiciário, o CNJ instituiu a “política de prevenção e enfrentamento do assédio moral, do assédio sexual e da discriminação, a fim de promover o trabalho digno, saudável, seguro e sustentável no âmbito do Poder Judiciário” (artigo 1º da Res. nº 351, de 28/10/2020).

Por meio da Res. nº 518, de 31/08/2023, [6] o conceito de assédio moral foi atualizado e apresentado em balizas mais refinadas (art. 2º, I). A mesma norma também propôs o conceito de assédio moral organizacional (artigo 2º, II). Finalmente, a Resolução 538, de 2023, no art. 2º,  complementou o art. 39 do Código de Ética da Magistratura Nacional ao incluir a prática de assédio moral e de assédio sexual como atos atentatórios à dignidade do cargo de juiz.

No âmbito criminal, em 12/01/2024, a Lei nº 14.811 alterou o Código Penal e tipificou o delito de intimidação sistemática (bullying), punindo-o com pena de multa. Todavia, se for divulgado em espaços virtuais (v.g., redes sociais), a sanção será de reclusão de 2 a 4 anos

Embora o delito de intimidação sistemática não diga respeito especificamente ao tema do assédio moral no trabalho, é evidente a relação entre os temas. Basta observar que a descrição típica do crime coincide, em muitos aspectos, com as condutas tendentes à configuração do assédio moral.

A literatura internacional também sugere a referida proximidade. Na Inglaterra, por exemplo, o assédio moral é dado praticamente como sinônimo de bullying (tiranizar), conhecido como mobbing (molestar) nos Estados Unidos, harcèlement na França (próximo ao assédio inglês – harassment) e murahachibu (ostracismo social) no Japão. Todas essas expressões traduzem comportamentos hostis e antiéticos de terrorismo psicológico e manipulação perversa.

Jurisprudência

A jurisprudência trabalhista vem decidindo um grande número de demandas sobre a matéria. O TRT do PR condenou empresa de telecomunicações que exigiu resultados de funcionária, expondo-a no descumprimento de metas, através de ameaças e exposição pública do desempenho.[7]

O TRT do RJ, por sua 2ª. Turma, examinando caso de cobrança de metas, concluiu que “não se configurou o alegado assédio moral, uma vez que a cobrança por desempenho dos empregados, dentro do limite do tolerável, seria um direito legítimo do empregador”. [8]

No Juízo da 3ª. Vara de Anápolis, TRT de Goiás, um hipermercado foi condenado porque uma funcionária denunciou que um colega assediador falava sobre a sua boca dizendo, na frente de colegas, que “era até ‘pecado olhar para ela, pois desejava o que não podia fazer’, além de citar sonhos eróticos com a colega na presença de outros funcionários”. [9] O galanteador foi demitido e a empregadora condenada a pagar R$ 65 mil de indenização.

No que toca à jurisprudência sobre o assédio moral no serviço público, vale citar Brasinicia Tereza Tápia, que, em excelente pesquisa de conclusão de curso de Direito, promoveu levantamento dos julgados do TRF da 4ª. Região. [10] A investigação foi dividida em tópicos, dos quais se extraíram conclusões. Entre elas está que as universidades são o local em que há mais ações sobre a matéria, a maioria das práticas de assédio moral são feitas do superior para o servidor abaixo na hierarquia e o valor das indenizações, em casos de procedência, é estabelecido entre R$ 15 mil e R$ 30 mil.

No âmbito exclusivo do Judiciário, a pesquisa de jurisprudência por magistrados ou servidores é mais complexa, porque, na maioria dos casos, os processos tramitam em segredo de Justiça. Mas, como é do conhecimento dos que atuam na área, o assédio moral existe, dependendo a maior ou menor frequência das noções de integridade adotadas ou não por cada tribunal, o que se refletirá nos órgãos de primeira instância.

Vejamos um exemplo. No ano de 2023, o CNJ aposentou compulsoriamente um Desembargador do Trabalho do TRT da 2ª. Região (RJ), porque o magistrado, como “professor de curso preparatório para a Ordem do Advogados do Brasil (OAB), segundo registros processuais, abordava as vítimas em seus locais de estudo, virtualmente e até mesmo no trabalho. As múltiplas formas de assédio iam de convites para sair, sob o pretexto de dirimir dúvidas do curso, conversas invasivas de cunho sexual, por meio de redes sociais, a beijos forçados”. [11]

Conclusão

O tema encontra-se em franco desenvolvimento e deve ocupar espaço obrigatório na agenda de gestores e autoridades dos mais diferentes níveis. Nem sempre será fácil distinguir as situações e descobrir onde se encontra a verdade. Não se pode desarmar a administração de exercer o seu poder de autoridade, nem as empresas de exigir cumprimento de metas, que aliás são também cobradas pelo poder público (v.g., CNJ) e pelas melhores universidades. A busca do razoável deve ser a principal meta, sempre lembrando que a cultura da integridade surge como nova diretriz moral das relações de trabalho.

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[1] Controladoria Geral do Estado de São Paulo. Prevenção e combate ao assédio moral no Poder Executivo do Estado de São Paulo. Disponível em: https://www.controladoriageral.sp.gov.br/wp-content/uploads/sites/2/2024/06/CARTILHA-ASSEDIO-MORAL-2-1.pdf. CGE, 2024, p. 04. Acesso em 18 dez. 2024.

[2] PINHEIRO, Carla. Manual de Psicologia Jurídica. 6ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 146.

[3] LEXML. Disponível em: https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:camara.deputados:projeto.lei;pl:2001-05-03;4591. Acesso em 18 dez. 2024.

[4] CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 18 dez, 2024.

[5]  FONSECA, Ana Luisa Guimarães. ASSÉDIO MORAL NAS RELAÇÕES DE TRABALHO. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r30822.pdf,  p. 4. Acesso em 18 dez. 2024.

[6] CONSELHO NACIONAL DA JUSTIÇA. Resolução 351/2020.  Disponível em:  https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5242. Acesso em 18 dez. 2024.

[7]  Justiça do Trabalho. TRT da 9ª. Região. Disponível em: https://www.trt9.jus.br/portal/noticias.xhtml?id=5175671. Acesso em 18 dez. 2024.

[8] Justiça do Trabalho. TRT da 1ª. Região. Disponível em: https://www.trt1.jus.br/ultimas-noticias/-/asset_publisher/IpQvDk7pXBme/content/para-2-turma-do-trt-rj-cobranca-de-metas-com-respeito-a-dignidade-do-trabalhador-nao-configura-assedio-moral/21078. Acesso em 18 dez. 2024.

[9] Justiça do Trabalho. TRT da 18ª. Região. Disponível em: https://www.trt18.jus.br/portal/hipermercado-e-condenado-a-reparar-funcionaria-por-danos-em-decorrencia-de-assedio-sexual-e-moral-no-ambiente-do-trabalho/. Acesso em 18 dez. 2024.

[10] TÁPIA, Brasinicia Tereza. ASSÉDIO MORAL NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL: PERSPECTIVAS DA JURISPRUDÊNCIA DO TRF-4 ENTRE OS ANOS DE 2017 E 2021. Disponível em: https://repositorio.unilasalle.edu.br/bitstream/11690/3287/1/bttapia.pdf. Acesso em 18 dez. 2024.

[11] CNJ. Juiz do Trabalho é aposentado pelo CNJ por assédio e importunação sexual. PAD 0006667-60.2022.2.00.0000, Relatora Conselheira Salise Sanchotene. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/juiz-do-trabalho-e-aposentado-pelo-cnj-por-assedio-e-importunacao-sexual/. Acesso em 18 dez. 2024.

Autores

  • é professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

  • é juiz federal em Florianópolis (SC), mestre em Ciência Jurídica e professor de Psicologia Jurídica e Sociologia Jurídica.

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