Opinião

Princípio da afetividade e direitos poliafetivos: desejo de legitimação da não-monogamia

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21 de dezembro de 2024, 13h27

“Se alguém rompe com uma estrutura tradicional de família, se pode ser caracterizado como um perverso, este tem seu lugar garantido na sociedade. Ele é o que não se deve fazer. Ele tem uma função importante e terá suas regalias asseguradas enquanto assumir a condição de errado. Tal condição é particular e toda sociedade tem espaço para um certo número de casos. No entanto, se o rompimento com a estrutura familiar é acompanhado de um desejo de legitimação dessa condutam esse indivíduo é inaceitável e um bom candidato ao martírio.”

O trecho acima se encontra no bojo do livro A Alma Imoral, do rabino e escritor Nilton Bonder. Com enorme repercussão, tal livro, um tanto quanto disruptivo, foi adaptado para o teatro em 2006 e o espetáculo segue sendo um sucesso, com apresentações periódicas por todo o Brasil, retornando as apresentações em São Paulo, no próximo mês de janeiro.

Como bem retratado no livro, a família é uma construção cultural que, assim como as diversas outras instituições sociais e jurídicas, sofreu e ainda sofre alterações em sua concepção e em sua formulação ao longo do tempo e do espaço [1]. Ao questionar a estrutura tradicional de família, o trecho de Bonder pode ser lido à luz de diversas épocas. Seja por meio da conquista dos direitos pela igualdade feminina, seja pelos avanços no campo dos direitos homoafetivos, a ideia de família foi se transformando com o passar do tempo.

A passagem da ideia de unicidade de arranjos familiares, por meio da família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada e subserviente à religião para a família democrática, qual seja aquela que compreende os seus indivíduos de maneira igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade dos membros que a compõem, demandou diversas modificações jurídico-sociais. Tais modificações se basearam primordialmente em um eixo fundante: o afeto [2].

A opção do constituinte de 1988 por colocar o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio regente de todo o ordenamento jurídico brasileiro atribuiu-lhe uma dimensão positiva, indicando a necessidade de adoção de medidas promocionais para que a mesma seja plenamente alcançada. Essa opção, portanto, refletirá em todo o ordenamento jurídico, trazendo diversas consequências, também, ao Direito de Família. A partir do século 21, a afetividade passou a figurar de forma central nos vínculos familiares, não em substituição aos critérios biológicos ou matrimoniais, mas ao lado deles, podendo concomitarem ou existirem autonomamente [3].

CNJ e as uniões poliafetivas

Todavia, o afeto, por si só, ainda encontra limitações ao ser utilizado como elo suficiente a legitimar juridicamente certas organizações familiares. Famílias que têm por núcleo fundante três ou mais pessoas que se relacionam afetivamente de maneira simultânea ainda sofrem obstáculos para terem seu reconhecimento legal garantido. Dessa maneira, é preciso se refletir sobre a extensão do princípio da afetividade como elo fundamental para o reconhecimento jurídico de uma unidade familiar e a sua extensão e aplicabilidade aos trisais e demais uniões poliamorosas.

Spacca

Em junho de 2018, o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que os cartórios brasileiros não poderiam registrar uniões poliafetivas, formadas por três ou mais pessoas, em escrituras públicas. A maioria dos conselheiros (e não todos, é preciso ressaltar) considerou que esse tipo de documento atesta um ato de fé pública e, portanto, implica o reconhecimento de direitos garantidos a casais ligados por casamento ou união estável  tais como aqueles relacionados à herança ou previdência [4]. Tal decisão ocorreu após o pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), ao observar que dois cartórios de comarcas paulistas, em São Vicente e em Tupã,  teriam lavrado escrituras de união estável poliafetivas.

A argumentação dos conselheiros, no entanto, utilizada para proibir tais registros, pode ser lida à luz do trecho de Bonder: tais organizações familiares poderiam existir enquanto assumirem “a condição de errados”, mas o desejo de legitimação, por meio de um ato de fé pública que lhe concederia direitos iguais às uniões entre duas pessoas, seria inaceitável.

É importante ressaltar que as competências do CNJ se limitam ao controle administrativo, não jurisdicional, conforme estabelecidas na Constituição. Ao argumentar que as escrituras públicas servem para representar as manifestações de vontade consideradas lícitas, a análise do CNJ se baseou meramente em uma lógica de subsunção acerca da legalidade ou não de tais registros,  sem, no entanto, aprofundar a discussão acerca da possibilidade ou não da existência de uma união poliafetiva.

A ministra Carmen Lúcia, que à época ocupava também o cargo de presidente do CNJ, afirmou que não seria atribuição do CNJ tratar da relação entre as pessoas, mas do dever e do poder dos cartórios de lavrar escrituras. Nas palavras dela, “nós não temos nada com a vida de ninguém. A liberdade de conviver não está sob a competência do CNJ. Todos somos livres, de acordo com a constituição”. Será mesmo? Será que dá para ser efetivamente livre para viver uma relação poliafetiva se à mesma não é atribuído  direitos iguais às das demais uniões legitimadas pelo ordenamento jurídico?

Projeto de lei com o pé no passado

É preciso ressaltar que não há nenhuma lei que proíba expressamente a união poliafetiva. O que há no ordenamento jurídico é somente uma vedação de que pessoas casadas contraiam outro casamento (artigo 1521, VI, do Código Civil). Não é disso que se trata. Não se está discutindo a existência de dois núcleos familiares coexistentes simultaneamente e, sim, um mesmo núcleo familiar composto por mais de duas pessoas que se relacionam afetivamente. A diferença é nítida.

Em dezembro de 2023, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o PL 4.302/2016  que proíbe o registro civil de uniões poliafetivas no Brasil [5]. Segundo o relator Filipe Martins (PL-TO) “se este tipo de afetividade fosse equiparado à família, seria necessário reescrever a Constituição, o Código Civil e as legislações previdenciárias, entre outras. Além disso, todas as políticas públicas de atenção à família teriam de ser reformuladas”.

Tal argumentação, no entanto, deixa clara a intenção do parlamentar de estancar o pé no passado e impedir que a legislação acompanhe as transformações sociais.  É preciso relembrar que também foi necessário reformular as políticas públicas e promover alterações na Constituição e na legislação civil para que fosse possível alcançar os direitos femininos e homoafetivos num passado não tão longínquo.

Nessa linha, votou contrariamente ao projeto a deputada Erika Kokay (PT-DF): “Você não pode ter a exclusão do acesso ao cartório em uniões que são estabelecidas por pessoas adultas, com livre consentimento e pautadas no próprio afeto. Quem é que acha que pode reger as relações? Ou quem é que acha que pode reger as famílias ou determinar quais são as famílias que precisam e que podem existir?”.

A justificativa trazida nas razões de tal projeto de lei aponta para o fato de que, supostamente, os registros de uniões poliafetivas feririam de morte a família tradicional [6]. Ao se trazer o termo família tradicional já se percebe por si só um anacronismo, que vai de encontro diretamente ao princípio da pluralidade de arranjos familiares, princípio esse com amplo reconhecimento doutrinário, jurisprudencial e respaldo constitucional.

Importante ressaltar que o referido acima se trata meramente de um projeto de lei, não tendo ainda vigência no ordenamento Jurídico. Tal PL encontra-se no momento sendo analisado pela comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial, tendo ainda, posteriormente, que ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Em suma, a ampliação de direitos às famílias não-monogâmicas, diferentemente do que o PL maliciosamente alega, não se mostra uma ameaça à existência da família tradicional. Assim como a união estável não deu fim ao casamento e a união homoafetiva não suprimiu a heterossexualidade do mundo, a relação poliamorosa não influenciará de nenhuma maneira as uniões à dois. Reconhecer e tutelar os desdobramentos de uma nova forma de constituição de família e pensar acerca de suas repercussões jurídicas, independente de valores morais ou religiosos, mostra-se essencial para que o princípio da afetividade não seja somente uma abstração jurídica e que tenha efetivamente uma aplicabilidade prática no ordenamento brasileiro.

 


[1] BODIN DE MORAES, Maria Celina. A Família Democrática. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, v. 13-14, p. 47-70, 2005.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de. A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida da pessoa humana. Revista de Direito Privado, v. 19, p. 56-68, jul./set. 2004.

[3] CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no Direito Brasileiro. 2a ed.. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017. ps. 32 e 51.

[4] https://www.cnj.jus.br/cartorios-sao-proibidos-de-fazer-escrituras-publicas-de-relacoes-poliafetivas/#:~:text=O%20Plen%C3%A1rio%20do%20Conselho%20Nacional,mais%20pessoas%2C%20em%20escrituras%20p%C3%BAblicas.

[5] Fonte: Agência Câmara de Notícias: https://www.camara.leg.br/noticias/1031226-comissao-aprova-projeto-que-proibe-uniao-poliafetiva/#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Previd%C3%AAncia%2C%20Assist%C3%AAncia,entre%20mais%20de%20duas%20pessoas.

[6] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1434397

Autores

  • é pós-graduando em Direito Processual Civil pela Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro., graduado em Direito pela FND-UFRJ, associado ao Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões (IBDFAM) e sócio do Escritório Pires, Kaufmann e Rehfeld Advogados.

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