AMBIENTE JURÍDICO

Held V. Montana e a declaração ao direito constitucional ao clima estável

Autor

  • é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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21 de dezembro de 2024, 18h37

Dezesseis jovens ajuizaram demanda climática contra o Estado de Montana, nos Estados Unidos, no ano de 2020, argumentando que o incentivo estatal aos combustíveis fósseis violava a Constituição estadual.

Os jovens apreciavam caçar, pescar, observar os animais, as paisagens e usufruir a natureza em geral no Parque Nacional Glacier. Todavia, rapidamente, perceberam os sinais do aquecimento do Planeta, que causou erosão nas suas trilhas de caminhadas decorrente de chuvas torrenciais, dos incêndios nas florestas e da fumaça decorrente destes que demonstrou ser prejudicial para a saúde dos mesmos que passaram a ter que ficar recolhidos em suas residências com suas famílias por períodos cada vez mais longos. Os autores então procuraram uma associação jurídica ambiental para judicializar a violação dos seus direitos constitucionais e buscar a concretização dos mesmos.

Na exordial, como fundamento jurídico do pedido, os autores invocaram a incidência direta do texto da constituição do Estado de Montana [1] que garante ao seus moradores “o direito a um ambiente limpo e saudável” e estipula que o Estado e os indivíduos “são responsáveis ​​por preservar e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras”. [2]

Em virtude da referida disposição constitucional alegaram que o apoio do Estado de Montana, mediante financiamentos e incentivos fiscais, as companhias de combustíveis fósseis — de carvão, de petróleo e de gás —  era inconstitucional porque a poluição resultante destas atividades econômicas está aquecendo perigosamente o planeta e privando os jovens do gozo de um meio ambiente saudável e limpo. [3]

O pedido veiculado na petição inicial foi conciso e sem precedentes nas Cortes Estadunidenses. É de se observar que o Estado de Montana, nos últimos anos, deu uma guinada para a direita no aspecto político [4], com a eleição de políticos republicanos e negacionistas, que defendem agressivamente a indústria carbonizada nos debates públicos e são patrocinados por estas em suas campanhas eleitorais.

Spacca

Foi este o primeiro caso climático que debate o direito constitucional com base em uma Constituição Estadual. O caso marca também um pedido de alteração das políticas públicas adotadas pelo Estado de Montana tendo em vista os efeitos nefastos produzidos por estas que estavam estimulando a poluição e as emissões desenfreadas de gases de efeito estufa em tempos de emergência climática, o que pode ser facilmente verificado pelo Emissions Gap Report 2024.[5]

Existe, outrossim, aparente diversidade entre o perfil dos autores. Entre estes está um menino de 2 anos, cujos pais alegaram problemas respiratórios causados ao impúbere pelos incêndios florestais agravados pelas mudanças climáticas.  Já a autora mais velha, Rikki Held, que emprestou o nome a demanda, em 2020, tinha 18 anos e cresceu em um rancho de 7.000 acres em Broadus, onde o clima está cada vez mais imprevisível gerando extrema dificuldade para o abastecimento básico de água da propriedade de sua família. Outra autora é Sariel Sandoval, que tinha 17 anos quando a demanda foi ajuizada. Ela cresceu na Reserva Indígena Flathead, no norte de Montana. Ela lembrou como as amoras que ela colhia no começo do verão agora são mais difíceis de encontrar e como a diminuição dos volumes de neve reduziu os níveis de água no lago Flathead, impactando a pesca de sua tribo. Muitos dos 16 jovens que ajuizaram o litígio climático, Held v. Montana, prestaram depoimento pessoal durante o julgamento sobre o clima extremo que testemunharam, com tristeza e grande preocupação, em seu estado natal nos últimos anos.

Os demandantes, dentro do seu pluralismo, fortalecem a tendência crescente de um movimento global de jovens que alertam sobre as mudanças climáticas, cujo exemplo mais famoso é de Greta Thunberg, a ativista sueca, que agora já está com 21 anos.

A partir daí a equipe de dezenas de advogados da Our Children’s Trust começou a construir seu caso com responsabilidade, ética e com um acurado estudo  de questões processuais, envolvendo jurisdição e competência,  e de direito material, analisando com profundidade a normativa infraconstitucional do Estado e a Constituição do mesmo. Os advogados, em um trabalho coletivo, engajaram a comunidade científica e ambiental para identificar potenciais demandantes analisando as vulnerabilidades dos mesmos. Realizaram um estudo catalogado e detalhado de todas as maneiras pelas quais o estado estava sendo impactado pelas mudanças climáticas. Ao ajuizar a ação, os demandantes trouxeram vasta prova documental do apoio do Estado à indústria dos combustíveis fósseis, que incluía licenças de instalação e de funcionamento, subsídios e regulamentações estatais benevolentes aos setores poluidores e emissores.

A referida associação ambiental, Our Children’s Trust, por sinal, é financiada por fundações, e possui experiência e expertise em ajuizar demandas contra os governos.  Já processou em nome de jovens mais de 50 estados, tendo inclusive atuado no célebre caso, Juliana v. United States, demanda que jovens ajuizaram contra o governo federal em virtude do aquecimento global e das ações e omissões estatais. Mas Held v. Montana foi o primeiro desses casos envolvendo Estados a ir a julgamento, primeiro no Tribunal Distrital e após, em sede de recurso, na Suprema Corte de Montana, e traz a peculiaridade técnica de ter sido alegada na exordial, diretamente, também, a violação de direitos humanos.

Em sede de contestação, o Estado negou que exista um consenso científico de que a queima de combustíveis fósseis está causando as mudanças climáticas e rejeitou o alegado fato de que Montana esteja enfrentando condições climáticas cada vez mais severas, associadas ao aumento das temperaturas.

Importante grifar que foi em 1972 que a Constituição de Montana foi emendada para garantir aos cidadãos “o direito a um ambiente limpo e saudável”. Isso foi em uma convenção constitucional onde revisões foram feitas para reduzir a influência das indústrias de cobre e carvão, grandes players  na política de Montana desde 1880. A Constituição original, redigida em 1889, foi fortemente influenciada por executivos de mineração, e as leis resultantes, como sói, eram altamente protetivas dos interesses industriais e empresariais.

Não há dúvida que “o direito a um ambiente limpo e saudável” inserido na Constituição pela convenção constitucional de 1972 foi central para a decisão do caso Held v. Montana. Apesar de sua nova Constituição possuir indisfarsável caráter ecológico, Montana continuou sendo um grande pólo produtor de combustíveis fósseis. Hoje, aliás, é bom que se diga, é o quinto maior estado produtor de carvão e o 12º maior estado produtor de petróleo do país. E uma mudança legislativa na política energética do Estado, ocorrida no ano de 2011, impediu o mesmo de considerar as mudanças climáticas ao decidir procedimentos de licenciamento ambiental para projetos de combustíveis fósseis.

Quando o caso Held foi ajuizado, o governador de Montana era Steve Bullock, um democrata. Embora Bullock tenha chamado a mudança climática de “um dos desafios definidores do nosso tempo”, sua administração defendeu o estado contra a demanda.

Em novembro de 2020, foi eleito o governador Gianforte com uma agenda pró-negócios que deixou de lado as preocupações sobre o clima. Ele retirou Montana da US Climate Alliance, uma coalizão de estados que trabalha para o corte das emissões de gases de efeito estufa, e assinou duas leis elaboradas especificamente para evitar o fechamento de usinas de carvão.

No ano de 2022, o procurador-geral de Montana, prevendo um resultado contrário aos interesses do Estado, no caso Held v. Montana, solicitou que a Suprema Corte do Estado retirasse a competência jurisdicional do juiz de primeira instância para decidir a causa. A Suprema Corte negou esse pedido, em decisão interlocutória, com base na prerrogativa da inamovibilidade da magistratura.

Referida ação climática, evoluindo na análise do caso, manifestou nítida eficácia declaratória, pois visava declaração do Estado- Juiz no sentido de que os combustíveis fósseis estavam causando poluição, aquecendo o planeta e, em especial, de que o apoio do estado à indústria carbonizada era inconstitucional.

A juíza Kathy Seeley, do Tribunal Distrital de Montana, no último ano, referiu que o estado é um “grande emissor de emissões de gases de efeito estufa no mundo, em termos absolutos, por pessoa e historicamente e que  somando a quantidade de combustíveis fósseis extraídos, queimados, processados e exportados pelo estado, é responsável por tanto dióxido de carbono quanto o produzido pela Argentina, pela Holanda e pelo Paquistão”. De fato, Montana tem 5.000 poços de gás, 4.000 poços e quatro refinarias de petróleo e seis minas de carvão. A juíza considerou que as emissões do estado “provaram ser um fator substancial” para afetar o clima e que as leis que limitavam e impediam a regulação dos poluidores em virtude das suas emissões eram inconstitucionais. O mais interessante e até de certo ponto revolucionário foi que ela declarou que os os habitantes de Montana “têm o direito constitucional fundamental a um ambiente limpo e saudável, o que inclui o clima como parte do sistema de suporte ambiental à vida”.

Após a irresignação da parte ré, a Suprema Corte de Montana, na última quarta-feira, confirmou a decisão do Tribunal Distrital, e declarou que as políticas energéticas do estado violavam o direito constitucional dos habitantes de Montana a um meio ambiente limpo. [6]

Os demandantes foram representados por advogados das organizações sem fins lucrativos Our Children’s Trust e Western Environmental Law Center. Nate Bellinger, o principal advogado dos ativistas, disse que a decisão mostrou que “o futuro de nossas crianças não pode ser sacrificado pelos interesses da indústria dos combustíveis fósseis”. Patrick Parenteau, professor emérito de direito e membro sênior de política climática no Environmental Law Center da Vermont Law and Graduate School, disse que Montana estava entre os vários estados com disposições protetivas do meio ambiente em sua constituição, e talvez tenha o mais forte arcabouço constitucional protetivo do meio ambiente nos Estados Unidos. De acordo com o jurista é provável que outros estados ajuízem litígios climáticos do estilo. Para o professor Parenteau a linguagem forte na decisão do ano passado utilizada pela juíza Kathy Seeley abriu caminho para que a mesma fosse mantida. [7]

Por outro lado, como o debate jurídico está diretamente dentro dos limites da constituição e da legislação estadual, é bastante difícil um recurso para a conservadora Suprema Corte dos Estados Unidos. O professor refere com total acerto que esta decisão é um marco porque pela primeira vez “um tribunal nos EUA reconheceu um direito constitucional a um clima estável”. [8] Referida decisão é notável também pois quase não há jurisprudência nos Estados Unidos afirmando que a queima de combustíveis fósseis está aquecendo o planeta de forma rápida e perigosa e a vitória dos jovens de Montana serve de precedente para novos casos climáticos. Pensilvânia e Nova York, por exemplo, possuem previsões em suas constituições de direitos de cunho ambiental, como o direito ao ambiente saudável e há um grupo de ativistas tentando adicioná-las a todas as constituições estaduais.

Em suma, com a declaração de inconstitucionalidade da política energética do estado, os órgãos reguladores e licenciadores do Estado de Montana vão ser forçados a levar as mudanças climáticas em consideração ao aprovar projetos industriais e de desenvolvimento econômico.

[1] https://courts.mt.gov/External/library/docs/72constit.pdf

[2] https://www.nytimes.com/2023/08/14/us/montana-youth-climate-ruling.html

[3] https://climatecasechart.com/case/11091/

[4] https://www.nytimes.com/2023/01/11/magazine/montana-republicans-christian-nationalism.html

[5] https://www.unep.org/resources/emissions-gap-report-2024

[6] https://www.nytimes.com/2024/12/18/climate/held-montana-youth-climate-lawsuit.html?searchResultPosition=3

[7] https://www.nytimes.com/2024/12/18/climate/held-montana-youth-climate-lawsuit.html?searchResultPosition=3

[8] https://www.nytimes.com/2024/12/18/climate/held-montana-youth-climate-lawsuit.html?searchResultPosition=3

 

Autores

  • é juiz federal, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), do European Law Institute (ELI), vice-presidente nacional do Instituto O Direito Por um Planeta Verde (IDPV) e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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