Abordagens violentas não podem ser cinicamente tratadas como 'atos isolados', diz Celso de Mello
21 de dezembro de 2024, 11h57
Celso de Mello, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, afirmou que abordagens discriminatórias feitas por forças de segurança são gestos de “infidelidade” à Constituição, de “desprezo” às instituições da República e, ainda assim, são por vezes “cinicamente qualificados como ‘atos isolados’”.
As declarações foram feitas ao jornal O Globo. O ministro comentou a decisão do Superior Tribunal Militar, que reduziu a pena de militares que fuzilaram o músico Evaldo Rosa e o catador de lixo Luciano Macedo de 30 para três anos. Eles foram assassinados com 257 tiros em 2019.
“Infelizmente, forças de repressão, em alguns episódios (cinicamente qualificados como ‘atos isolados’), têm agido, como o demonstra o terrível episódio objeto do julgamento pelo STM, com base um absurdo e inconstitucional ‘racial profiling’ (perfilamento racial), que dispensa a determinados estratos sociais, compostos por pessoas negras (pretas e pardas), pobres e periféricos (lamentavelmente invisíveis aos olhos do Estado), e precisamente por serem vulneráveis, tratamento vil, arbitrário e desrespeitoso aos olhos da lei”, afirmou.
Para ele, o perfilamento racial por agentes do estado, civis ou militares, representa “inaceitável prática discriminatória” arbitrária e abusiva.
“Quem, civil ou militar, age à margem do ordenamento jurídico demonstra, com esse gesto indigno de suprema infidelidade à majestade e à autoridade da Constituição, desprezo manifesto pelas instituições da república”, prosseguiu.
Celso também comentou o voto da ministra Maria Elizabeth Rocha, eleita presidente do STM. Ela foi voto vencido quanto à redução da pena dos militares.
“Digno de todo aplauso o brilhante voto, ainda que minoritário, dessa eminente magistrada, notadamente no ponto em que censurou, com absoluta correção, o comportamento dos agentes, todos integrantes do Exército brasileiro.”
“O voto da ministra Elizabeth Rocha deve ser saudado como a aurora de um novo tempo, considerada a insuperável lição ético-jurídica nele contida, no sentido de que os agentes do Estado, sejam eles civis ou militares, inclusive representantes do Ministério Público e magistrados, não podem discriminar qualquer pessoa.”
Leia a íntegra do posicionamento do ministro Celso de Mello:
“Entendo que o voto (vencido) da eminente Ministra Maria Elizabeth Rocha, do E. STM, consagrou o melhor e mais autorizado entendimento no exame do gravíssimo episódio, de altíssima repercussão social, que envolveu, em abril de 2019, militares do Exército, que efetuaram 257 tiros contra duas vítimas inocentes!
Digno de todo aplauso o brilhante voto, ainda que minoritário, dessa eminente magistrada, notadamente no ponto em que censurou, com absoluta correção, o comportamento dos agentes, todos integrantes do Exército brasileiro: ‘Autorizar o disparo de fuzis, incessantemente, até a morte de meros suspeitos, em função da periculosidade de um local e em razão dos soldados supostamente já terem corrido o risco de morte em situação anterior e diversa da que se está vivenciando é colocar a população, sobretudo a que se encontra em locais considerados perigosos, em um risco iminente, o que é inaceitável em um Estado democrático de direito’.
Infelizmente, forças de repressão, em alguns episódios (cinicamente qualificados como “atos isolados”), têm agido, como o demonstra o terrível episódio objeto do julgamento pelo STM, com base em um absurdo e inconstitucional ‘racial profiling’ (perfilamento racial), que dispensa a determinados estratos sociais, compostos por pessoas negras (pretas e pardas), pobres e periféricas (lamentavelmente invisíveis aos olhos do Estado), e precisamente por serem vulneráveis, um tratamento vil, arbitrário e desrespeitoso aos olhos da lei!
A utilização do perfilamento racial (‘racial profiling’) por agentes estatais, não importando se civis ou militares, notadamente por integrantes dos órgãos de repressão criminal, representa inaceitável prática discriminatória, arbitrária e abusiva quando seleciona suspeitos unicamente em razão de sua etnicidade, origem regional ou procedência nacional!
O voto da Ministra Elizabeth Rocha, embora vencido, deve ser saudado como a aurora de um novo tempo, considerada a insuperável lição ético-jurídica nele contida, no sentido de que os agentes do Estado, sejam eles civis ou militares, inclusive representantes do Ministério Público e magistrados, não podem discriminar qualquer pessoa, nem contra ela formular qualquer juízo de desvalor, em razão da cor de sua pele ou de sua procedência étnico-racial ou de sua origem regional ou nacional ou de sua confissão religiosa ou de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, entre outros fatores que tendem, inconstitucionalmente, à desigualação !
Cabe relembrar a jurisprudência que vem sendo formada tanto pelo STF quanto pelo STJ, cujas decisões advertem que impressões meramente subjetivas sobre a aparência ou atitude suspeita do indivíduo, bem assim sobre a presumível periculosidade do espaço social em que se acha a vítima, não podem justificar medidas de coerção contra qualquer pessoa, nem jamais legitimar a sua eliminação física!
Que parta do voto luminoso da futura Presidente do E. STM a grave advertência nele tão bem exposta: abordagens por agentes estatais, civis ou militares , de caráter discriminatório e seletivo, além de desproporcionais, por serem inerentemente ofensivas ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana, são procedimentos totalmente inconstitucionais!
Quem, civil ou militar, age à margem do ordenamento jurídico demonstra, com esse gesto indigno de suprema infidelidade à majestade e à autoridade da Constituição, desprezo manifesto pelas instituições da República!
Desejo enfatizar a real importância do voto (poderoso e primoroso em seu conteúdo), embora minoritário, proferido pela Ministra Maria Elizabeth Rocha!
Aquele que profere voto vencido não pode ser visto como um espírito isolado nem como uma alma rebelde, pois, muitas vezes, como nos revela a História, é ele quem possui, ao externar posição divergente, o sentido mais elevado da ordem, do direito e do sentimento de justiça, exprimindo, na solidão de seu pronunciamento, uma percepção mais aguda da realidade social que pulsa na coletividade, antecipando-se, aos seus contemporâneos, na revelação dos sonhos que animarão as gerações futuras na busca da felicidade, na construção de uma sociedade mais justa e solidária e na edificação de um Estado fundado em bases genuinamente democráticas.
A História, mestra da Vida, tem registrado que, nos votos vencidos, reside, algumas vezes, a semente das grandes transformações.
Tem inteira razão, pois, Raymundo Faoro, quando enfatiza que o voto vencido, muitas vezes, “É o voto da coragem, de quem não teme ficar só…” , como certa vez brilhantemente relembrou o eminente Ministro aposentado Flávio Bierrenbach, do E. Superior Tribunal Militar!”.
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