Normas eleitorais não impediram escalada de violência nos debates
20 de dezembro de 2024, 7h10
“Democracia é debate”, disse Kelsen [1]. Antes dele, Alexis de Tocqueville já se espantava com o nível de efervescência social gerado pelo momento de debate eleitoral [2]. E sob essa perspectiva, o ano de 2024, com eleições municipais, foi pródigo em alimentar este debate.
A discussão de ideias sempre foi colocada como premissa do ambiente democrático, embora se deva reconhecer que o modelo de democracia liberal não inclui, efetivamente, todas as vozes sociais, dada a marginalização das esferas com menor expressão política ou econômica.
O advento dos meios de comunicação em massa, especialmente da televisão, colocou a formatação desta dinâmica em outro patamar. A inclusão da imagem trouxe uma pluralidade ainda maior de mensagens possíveis de serem comunicadas ao público a cada interação.
Neste contexto, é emblemática a análise de Schwatzenberg, que asseverou que o debate de ideias acaba esvaziado por uma apresentação midiática que “fabrica” perfis e personalidades que melhor agradam o telespectador, tal como se fosse a adequação de um produto para alavancar as vendas, transformando a eleição em mais um espetáculo [3].
Sartori, por sua vez, já alertara para os riscos da dinâmica imagética que a televisão incluiria na arena de discussão política, asseverando que haveria perda da reflexão racional para a formação da vontade do voto [4].
Embora seja importante pensar que o exercício da participação política não é isento de paixões, de influências históricas e culturais e de perspectivas de mundo que vão além do ideal de racionalidade pensado por alguns teóricos da democracia, é certo que a prática reiterada de escolhas políticas irrefletidas pode colocar em xeque a própria legitimidade do modelo democrático vigente.
Apesar de esta preocupação sempre permear a legislação eleitoral, a discussão sobre a regulação jurídica dos debates eleitorais parece ter ganhado nova força em 2024.
Rememore-se que, desde a redemocratização do Brasil, os debates eleitorais ganharam relevância no cenário político brasileiro. O número de candidatos era tão grande no pleito de 1989 que a natural dificuldade de compor tantos interesses se revelou na necessidade de formação de um pool de emissoras (Bandeirantes, Manchete, Globo e SBT) para que o programa fosse viabilizado [5].
O escasso tratamento legal sobre o tema, aliás, não impediu os embates memoráveis, que extrapolaram os parâmetros comumente praticados e levaram a soluções imediatas por parte das emissoras, como a inesquecível discussão entre os candidatos Leonel Brizola e Paulo Maluf na Rede Bandeirantes nos debates de primeiro turno de 1989, que desafiaram o controle da situação pela jornalista Marília Gabriela, que fez interrupção abrupta do programa [6].
O fato é que o país foi construindo o regramento também neste tema e, desde 1997, buscou-se estabilizar a legislação e o tratamento jurisprudencial, conforme passou a constar do artigo 46 da redação original da Lei 9.504/97:
“Art. 46. Independentemente da veiculação de propaganda eleitoral gratuita no horário definido nesta Lei, é facultada a transmissão, por emissora de rádio ou televisão, de debates sobre as eleições majoritária ou proporcional, sendo assegurada a participação de candidatos dos partidos com representação na Câmara dos Deputados, e facultada a dos demais, observado o seguinte (…).”
O dispositivo sofreu mudanças ao longo dos anos, especialmente no que tange à definição do critério legal para a obrigatoriedade de convites a candidatos: em 1997, a emissora era obrigada a convidar os candidatos cujos partidos e coligações contasse com ao menos um deputado federal na Câmara dos Deputados; a partir de 2015 este número mudou para dez deputados federais e, em 2017, passou a vigorar a regra, ainda vigente, de convite obrigatório para os candidatos cujos partidos tenham ao menos cinco parlamentares no Congresso Nacional.
A discussão quanto à obrigatoriedade de convites também foi objeto de discussão perante o Supremo Tribunal Federal que, em 2016, definiu, quando do julgamento da ADI 5.488, que era facultativo, às emissoras, convidar outros candidatos, ainda que não atingissem o critério legal de convite obrigatório, desde que apresentassem relevância jornalística:
“No sentido de ampliar o debate político, conferindo maior densidade democrática ao processo eleitoral, o § 5º do art. 46 da Lei 9504/97 deve ser interpretado no sentido de que os candidatos que têm participação garantida não podem vetar candidatos convidados pela emissora. Necessidade de fixação pelo Tribunal Superior Eleitoral de critérios objetivos que atendam os princípios da imparcialidade e da isonomia e o direito à informação.”
Talvez este tenha sido o momento pretérito em que a disciplina legal no que tange ao acordo quanto às regras de realização do debate tenha sido objeto de discussão.
Isso porque, desde 2009 já fora incluída na Lei das Eleições a previsão de que as regras a serem aplicadas na realização dos debates seriam aquelas firmadas entre a emissora e, no mínimo, 2/3 dos candidatos participantes, com a seguinte redação original:
“§ 5º. Para os debates que se realizarem no primeiro turno das eleições, serão consideradas aprovadas as regras que obtiverem a concordância de pelo menos 2/3 (dois terços) dos candidatos aptos no caso de eleição majoritária, e de pelo menos 2/3 (dois terços) dos partidos ou coligações com candidatos aptos, no caso de eleição proporcional.” (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)
Naquela oportunidade, perante o STF, o pano de fundo era a necessidade do consenso dos 2/3 para que a emissora pudesse convidar um candidato adicional; em outras palavras, discutia-se se a emissora teria de buscar a aprovação dos demais participantes para fazer o convite a participantes adicionais.
De todo modo, até 2022, as principais discussões jurídicas sobre os debates eram acerca dos convidados. E o grande desafio — que não é jurídico — era criar modelos e dinâmicas que proporcionassem informação relevante e genuína aos eleitores.
Neste contexto, é de se registrar, em 2022 no Brasil, o relevante modelo dos debates de segundo turno da TV Bandeirantes, e depois realizados pela TV Globo ao final do período eleitoral, em que os candidatos passaram a controlar um “banco de tempo” para debaterem os temas, proporcionando maior expressão dos temas que consideravam relevantes e como reagiam à estratégia de discussão do adversário.
Pois bem, chegamos a 2024 e as discussões ganharam outro patamar.
Eleições municipais
É verdade que as ações judiciais sobre o direito de participar de debates não acabaram. A título exemplificativo, rememore-se a Representação nº 0600143-62.2024.6.26.0002 – TRE/SP em que o Partido Novo sustentava o direito de participar do debate com candidatos a prefeito de São Paulo, promovido pela Rede Bandeirantes.
Tal ação foi julgada improcedente, na medida em que o número mínimo de cinco parlamentares por partido no Congresso Nacional deve ser contabilizado até o dia 20 de julho do ano da eleição, conforme dispõe o artigo 44, § 6º da Resolução TSE 23.610/19. A agremiação, por outro lado, totalizara o número mínimo de parlamentares apenas no dia 2 de agosto de 2024.
Contudo, as grandes discussões que cercaram os debates eleitorais foram, na verdade, a falta de efetiva aderência de candidatos, não apenas às regras acordadas, mas à própria noção de debate.
Observe-se que inexistiram violações das normativas legais e regulamentares que regem os debates eleitorais, especialmente o artigo 46 da Lei 9504/97 e os artigos 44 a 47 da Resolução TSE 23.610/19.
Como regra, (1) foram convidados todos os candidatos cujos partidos tinham a representação mínima de cinco parlamentares no Congresso Nacional; (2) houve a participação dos candidatos para os quais o convite era facultativa, mas com relação aos quais as emissoras vislumbraram relevância para a cobertura jornalística; (3) as regras para o funcionamento dos debates foram estabelecidas entre emissoras e ao menos 2/3 dos participantes e (4) foi dada ciência prévia à Justiça Eleitoral da realização do debate e das regras acordadas.
Isso não impediu, por exemplo, que em debate de segundo turno para capital de estado, estabelecido pela sistemática de “banco de tempo” administrado pelos competidores, um dos candidatos exaurisse todo seu tempo de fala num monólogo inicial, forçando o adversário a se manter em outro monólogo também durante todo o tempo do programa.
Como não se supunha que o candidato fosse aderir às regras do debate sem que tivesse a mínima intenção de efetivamente debater, punição imediata a esta conduta não estava prevista nas regras do debate e, em sua ausência, qualquer reprimenda por parte da emissora poderia ser reclamada como tratamento prejudicial, colocando-a sob o risco de receber a penalidade de suspensão de sua programação por 24 horas, conforme dispõe o art. 46, §3º da Lei 9504/97.
O atendimento das normativas eleitorais sobre os debates, acima transcritas, também não foram suficientes para evitar a escalada de violência — verbal e até mesmo física — a que se assistiu nos debates para Prefeitura de São Paulo.
Sequer o expediente do direito de resposta, amplamente utilizado na dinâmica dos debates há anos, foi suficiente para fazer frente, em alguns casos em que o nível da violência no discurso, absolutamente apartada do debate crítico de ideias, permeou as falas, como ação ou reação, chegando até mesmo a situações de agressão física.
Mais uma vez, era impossível às emissoras, dispondo da legislação vigente, especialmente a ameaça de suspensão da programação em razão de tratamento privilegiado ou prejudicial, fazer frente, isoladamente, a essa nova e curiosa dinâmica em que não há consenso sequer sobre debater as ideias.
Evidentemente, a questão dos debates está inserida num cenário maior da dinâmica informacional, que prioriza falas unilaterais e entregues de modo personalizado pelos algoritmos; em outras palavras, viveu-se – e se vive – a incessante busca para os melhores “cortes” para as redes sociais.
Esse tipo de comunicação nos faz pensar o que diria Giovanni Sartori, que já se preocupava com a formação da vontade do voto do homo videns, nos quase já remotos de discussão das questões da política pela televisão.
Se não podemos prever, podemos nos valer do seu alerta, para compreender a complexidade do problema, a incapacidade de o Direito fazer frente a ele de modo isolado, a urgente necessidade de políticas públicas de educação digital e para refletir como a legislação, para 2026, poderá ser alterada para permitir um equilíbrio mais adequado de forças enquanto se busca refundar a noção de consenso mínimo.
[1] KELSEN, Hans. A democracia. Tradução de Ivone Castilho Benedetti et al. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[2] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução de Eduardo Brandão. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[3].SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado espetáculo: ensaio sobre e contra o star system em política. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Círculo do Livro, 1977
[4] SARTORI, Giovanni. Homo videns: televisão e pós-pensamento. Tradução de Antonio Angonese. Bauru/SP: EDUSC, 2001.
[5] https://sbtnews.sbt.com.br/noticia/eleicoes/224583-em-1989-sbt-liderou-pool-de-emissoras-nos-debates-do-segundo-turno
[6] https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/ultimas/primeiro-debate-da-historia-da-televisao-do-brasil-completa-35-anos-202407172017
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!