Mais uma condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
20 de dezembro de 2024, 8h00
A despeito dos importantes avanços no que diz respeito ao “status” atribuído pelo Supremo Tribunal Federal aos tratados de direitos humanos e ao número significativo de julgados nos quais tais documentos têm sido utilizados como fundamento das decisões de nossa Suprema Corte, ademais da existência de diversos tratados aprovados pelo Congresso Nacional mediante o procedimento legislativo democraticamente reforçado previsto no artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal (CF), o fato é que o déficit de implementação em alguns setores ainda é evidente, revelando uma persistente ausência de eficácia social da normativa humanitária internacional, que, de resto, também se aplica à boa parte dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
Tal cenário se deve ao fato de que, com as duas sentenças publicadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o Brasil já foi julgado 14 vezes, tendo sido condenado em 13 ocasiões, ou seja, mais de 90% dos casos.
No caso Leite de Souza e Outros Contra o Brasil, mediante sentença proferida em 04 de julho de 2024, a CIDH declarou o Brasil internacionalmente responsável pelo desaparecimento forçado de 11 jovens afrodescendentes, residentes na Favela de Acari, ocorrido em 26 de julho de 1990, bem como em virtude das graves falhas, em especial a demora, nas investigações subsequentes, incluindo o homicídio de duas familiares que impulsionaram as investigações dos desaparecimentos. O caso ficou conhecido como a “Chacina de Acari”, tragicamente notabilizado, além do destino das vítimas, por quase trinta e cinco anos de impunidade e pelo fato de que os corpos dos jovens jamais foram encontrados.
No tocante aos fatos pelos quais o Brasil foi responsabilizado, em 14 de julho de 1990, um grupo de seis policiais militares uniformizados (que seriam integrantes de um grupo de extermínio conhecido como “Cavalos Corredores”), invadiu a casa de uma moradora da Favela de Acari, ameaçando três jovens e deles exigindo o pagamento de uma quantia em dinheiro. Pouco tempo depois, em 26 de julho do mesmo ano, um grupo de seis homens encapuzados, que se apresentaram como policiais, invadiu outra casa, pertencente a avó de um dos jovens, levando consigo os 11 jovens que depois iriam desaparecer. Além disso, em janeiro de 1993, Edmea da Silva Euzébio, mãe de um dos jovens e líder do grupo “Mães de Acari”, bem como sua sobrinha Sheila da Conceição, foram assassinadas no Rio de Janeiro, depois de Edmea ter prestado declarações à Justiça sobre a participação de policiais militares no desaparecimento dos jovens.
No que diz respeito ao processo penal por conta dos dois homicídios referidos, o mesmo foi concluído em abril de 2024, resultando na absolvição dos quatro policiais denunciados pelo Ministério Público. Por sua vez, o processo relativo aos desaparecimentos forçados foi arquivado por suposta ausência de provas em abril de 2011, ao passo que a ação de indenização por danos materiais e morais promovida por parentes das vítimas foi fulminada por ter sido considerada prescrita. Note-se, ainda, que em 2022 a Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro publicou a Lei 9.753, dispondo sobre a concessão de tal reparação financeira aos familiares dos 11 jovens desaparecidos.
A decisão da CIDH
A Corte Interamericana de Direitos Humanos aceitou a responsabilidade parcial por parte do Estado brasileiro no que diz respeito à violação dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos (garantias judiciais e proteção judiciária), mas se pronunciou sobre outras questões, decidindo que o Brasil violou uma série de direitos humanos, dentre os quais, os direitos à vida, à integridade pessoal, à personalidade jurídica e à liberdade pessoal, previstos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana, além da violação da obrigação de não praticar, permitir nem tolerar o desaparecimento forçado de pessoas, prevista no artigo I, letra a, da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas. O Estado também foi declarado responsável pela violação dos direitos da criança, estabelecido no artigo 19 da Convenção Americana, uma vez que havia sete menores de idade no grupo desaparecido.
Para a CIDH, restou comprovado que o Brasil não realizou uma investigação séria e efetiva sobre os fatos e os respectivos responsáveis, ademais de considerar que houve tratamento discriminatório em relação aos familiares das vítimas, em especial, as assim chamadas “Mães de Acari”. Além disso, a Corte entendeu terem sido demonstrados os danos à integridade pessoal dos parentes das vítimas desaparecidas.
No tocante às medidas impostas pela CIDH ao Brasil, destacam-se: a) seguimento diligente e em prazo razoável das investigações a respeito do desaparecimento forçado dos onze jovens de Acari; b) busca rigorosa do paradeiro das vítimas; c) realização de um ato público reconhecendo sua responsabilidade internacional; d) criação de um memorial em Acari; e) elaboração de estudo que inclua um diagnóstico atualizado sobre a atuação de grupos de extermínio e milícias no Rio de Janeiro; e) assegurar atendimento médico, psicológico e/ou psiquiátrico às vítimas que o requererem; f) criminalizar mediante tipificação do delito de desaparecimento forçado; g) adequação ou adoção, no estado do Rio de Janeiro, de protocolos de investigação incorporando os parâmetros internacionais de investigação de casos de violência policial com enfoque de gênero, infância e interseccionalidade; h) pagamento das quantias fixadas a título de indenização por danos materiais e imateriais e à guisa de custas e gastos; i) restituir ao Fundo de Assistência Legal de Vítimas da CIDH a quantia dispendida durante a tramitação do feito.
À vista da apertada síntese do caso recentemente julgado pela CIDH é de se indagar se as providências determinadas pela corte serão cumpridas pelo Brasileiro, no caso, de responsabilidade direta do estado do Rio de Janeiro, porquanto um dos maiores desafios segue sendo – e não apenas em relação aos julgados da CIDH – a eficácia social, portanto, a efetividade das decisões do Poder Judiciário, seja em nível de controle de convencionalidade (externo, como no caso, ou interno), seja no que diz respeito ao controle da legitimidade jurídico-constitucional de ações ou omissões por parte do poder público no Brasil, sem prejuízo da responsabilidade de atores privados em muitos casos, mas que atrai os deveres de proteção dos órgãos estatais.
O que causa (ou deveria causar) cada vez maior perplexidade é o quanto as condenações do Brasil pela CIDH dizem respeito a problemas relacionados às mazelas da segurança pública e da proteção judiciária nesse contexto, aqui tomado em sentido amplo. Relembre-se que o Brasil foi condenado em 13 vezes das 14 ocasiões em que foi julgado pela CIDH, sendo que das condenações, além do caso dos Jovens de Acari, mais dez casos envolveram violação dos direitos à vida, integridade física e psíquica, desaparecimentos forçados, sendo dois relacionados ao período do regime militar. Outro aspecto, que igualmente chama tristemente a atenção, é que em praticamente todos os casos que levaram às condenações, houve constatação, pela CIDH, da violação de garantias judiciais e do direito à proteção judiciária efetiva.
Tal cenário apenas desnuda ainda mais o inquestionável estado de coisas inconstitucional e inconvencional (ou anticonvencional) que caracteriza a situação do Brasil, ainda que não de modo igual em todos os lugares e em todos os casos, no campo da segurança pública, da violência policial e de grupos armados, mas também as mazelas no que diz respeito à real capacidade do sistema judiciário (aqui incluídos todos os atores que o integram) no sentido de dar respostas adequadas e efetivas a tais problemas, que seguem sendo (juntamente com as graves desigualdades sociais, econômicas e culturais, a proteção do meio ambiente, o racismo e a discriminação estruturais, entre outros) uma das grandes chagas que deveria fazer enrubescer a todos os brasileiros.
Por outro lado, não é o caso de sucumbir ao pessimismo e à tentação da resignação, dado que a atuação da CIDH tem sido também já o estopim de algumas mudanças importantes (v.g. a legislação contra a violência doméstica), ademais da gradual incorporação do direito internacional dos direitos humanos e dos parâmetros estabelecidos pela jurisprudência da CIDH pelo Poder Judiciário brasileiro, com destaque para uma série de decisões do STF, como se deu, em caráter apenas ilustrativo, quando do reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário. No mesmo sentido, calha lembrar das Resoluções do CNJ orientando os Magistrados no sentido de aplicar os tratados de direitos humanos e a jurisprudência da CIDH, bem como criando uma Unidade de Monitoramento e Fiscalização de Decisões, Deliberações e Recomendações do Sistema Interamericano de proteção dos Direitos Humanos, isto sem aqui considerar um significativo número de outras medidas criadas e sendo implementadas pelo Poder Judiciário e outros atores estatais.
Há, portanto, boas razões para se ter esperança quanto a gradual superação, ainda que talvez longe do que seria o ideal, do déficit de efetivação dos direitos humanos e fundamentais no Brasil, até mesmo pelo fato de que o pessimismo e a resignação são um luxo que não podemos nos dar, posto que não apenas não contribuem para a solução dos problemas, como também operam como salvo conduto para o seu agravamento.
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