Caminhos tortuosos

Burocracia excessiva na licitação incentiva caminhos paralelos, afirma Maria Sylvia Zanella di Pietro

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20 de dezembro de 2024, 8h52

O avanço da tecnologia e as novas leis sobre licitações e improbidade são preocupações urgentes para o Direito Administrativo, na opinião de Maria Sylvia Zanella di Pietro, procuradora do estado de São Paulo aposentada, professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e uma das maiores autoridades brasileiras dessa área.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ela afirmou que é muito importante regulamentar o uso de ferramentas tecnológicas — em especial a inteligência artificial —, principalmente em processos que têm como parte a administração pública.

“Já estão usando inteligência artificial em processos de licitação e já se sabe de ocorrência de fraude por causa disso. Então, seria importante que houvesse um controle, uma regulamentação.”

Maria Sylvia Zanella di Pietro

Maria Sylvia Zanella di Pietro

Essa regulamentação deve se estender ao Poder Judiciário, diz a professora. Ela cita dois pontos críticos no âmbito do Direito Administrativo atual, e um deles é a nova Lei de Improbidade Administrativa (LIA), já que o texto exige que seja comprovado o dolo, ou seja, a intenção do servidor de cometer um ato ímprobo, para que ele seja responsabilizado.

“Eu tenho curiosidade de saber se existem pessoas sendo condenadas por improbidade, porque acho que com essa nova lei vai ser muito difícil. Os prazos de prescrição são inviáveis.”

O outro ponto crítico é a nova Lei de Licitações, que, segundo a professora, fortaleceu a burocracia e tornou os processos mais complexos. “Licitação é um procedimento do dia a dia da administração”, diz ela. “Quando se dificulta muito o trabalho da administração, quando há excesso de formalismos, você está incentivando o servidor a procurar caminhos paralelos.”

Aos 81 anos, Maria Sylvia coleciona títulos e prêmios pela atuação como professora, pesquisadora, advogada e procuradora. Mestre e doutora pela USP, é referência dentro de sua área. Seu livro Direito Administrativo (Editora Forense), espécie de guia fundamental de temas objetivos e subjetivos sobre a matéria, já tem 37 edições.

Em seu apartamento em São Paulo, onde recebeu a ConJur, ela contou que considerou outras carreiras antes de escolher o Direito, tendo até se dedicado à música, o que justifica o piano em sua sala. “Fiz a carreira certa. Eu morreria de medo dos palcos!”, brinca.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — O que mais chama a atenção da senhora atualmente na discussão em torno do Direito Administrativo?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Pensando em termos de congressos, ainda se fala muito em concessões, em PPPs, em improbidade. Com essa mudança na Lei de Improbidade, acho que vai ser difícil pegar os corruptos. Então, discutimos isso. Acho que uma das coisas que estão preocupando muito no momento é o avanço da tecnologia, porque não há controle. Não existe lei, ainda, que discipline. Ninguém sabe exatamente o que vai acontecer no Direito Administrativo com a inteligência artificial, porque ele é muito baseado na exigência de motivação, de publicidade, de proteção da intimidade. E, com a inteligência artificial e seus bancos de dados, não se sabe o que vai acontecer com os nossos direitos. Inclusive, a adoção dos precedentes pelo Judiciário, bem como pelos Tribunais de Contas, também é um pouco preocupante, porque como fica o princípio da motivação se você já traz um precedente para aplicar no caso?

ConJur — A senhora atribui a maioria desses pontos de interrogação à tecnologia e à inteligência artificial?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Eu sou péssima em tecnologia, mas esse avanço é muito rápido. Por exemplo, já estão usando inteligência artificial em processos de licitação e já se sabe de ocorrência de fraude por causa disso. Então, eu acho que é importante haver um controle, uma regulamentação. O próprio Tribunal de Contas, que é um órgão de controle, está avançando no uso da inteligência artificial. Fica uma distância muito grande entre alguns órgãos que têm a condição de ter uma tecnologia inteligente especializada e o cidadão que não tem acesso. Tem de haver uma inclusão digital.

ConJur — Essa regulação do uso da tecnologia cabe ao Congresso ou ao CNJ?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Eu acho que teria de ser uma lei. Por exemplo, nos Estados Unidos saiu um regulamento no ano passado sobre isso. E neste ano, foi em agosto, se não me engano, saiu um regulamento no âmbito da União Europeia, pelo Parlamento Europeu. Mas, aqui no Brasil, acho que tinha de ser uma lei. O CNJ acha que pode legislar, mas eu acho que seria mais adequado se fosse uma lei. O CNJ até pode ter alguma regulamentação voltada para o próprio Judiciário, mas, veja, os juízes não seguem nem as do Supremo Tribunal Federal…

ConJur — Qual sua percepção sobre a nova Lei de Licitações?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — A nova Lei de Licitações burocratizou muito o procedimento, ficou muito formal. Quando saiu a lei anterior, a Lei 8.666, eu já achei que era muito formalista. Agora é muito mais, porque o Tribunal de Contas da União teve uma participação grande na elaboração dessa nova lei. E eles, inclusive, embutiram na redação alguns entendimentos do tribunal, usaram a lei como uma maneira de impor o pensamento deles. Porque eu acho, embora eu seja professora de Direito Administrativo, que a licitação é um procedimento do dia a dia da administração pública. Costumo dizer que a fase preparatória da licitação é como o preparo para uma batalha. É tanta coisa que se exige, tanto estudo. E cada licitação tem de ter essa complicação? Eu acho um absurdo, um contrassenso criar um procedimento tão complicado.

ConJur — E, mesmo com esse excesso de burocracia, os problemas permaneceram.
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Eu acho que quando se dificulta muito o trabalho da administração, quando há excesso de formalismos, você está incentivando o servidor a procurar caminhos paralelos.

ConJur — A nova LIA melhorou ou piorou a discussão sobre improbidade?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Eu tenho curiosidade de saber, e só daqui a alguns anos poderemos saber, se existem pessoas sendo condenadas por improbidade. Porque acho que com essa nova lei vai ser muito difícil. Os prazos de prescrição são inviáveis. Antigamente eram cinco anos, agora são oito, mas não há um aumento do prazo, na realidade. Quando se instaura o processo, o prazo de prescrição é interrompido e começa a contar pela metade, então na realidade são quatro anos. Isso já torna inviável. Outra coisa que fizeram foi deixar de considerar como improbidade determinados atos. Por exemplo, o artigo 11 fala em atos que atentam contra os princípios, agora a lei é taxativa. Acho que isso é inconstitucional, porque a Constituição diz que aos atos de improbidade importarão tais penas. Como é que a lei pode vir e dizer que isso não é ato de improbidade, se é uma desonestidade? Creio que o dispositivo é realmente inconstitucional. Essa lei é a vitória da corrupção.

ConJur — Muita gente argumenta que essa lei foi redigida para impedir que os promotores ajuizassem ações contra inimigos políticos. A senhora concorda?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Não é nem só razão política, eu acho que o Ministério Público quer mostrar serviço. E isso não é a instituição toda, são alguns membros do Ministério Público, principalmente em comarcas pequenas, do interior. Às vezes não há muita coisa para fazer, então qualquer descumprimento de lei ou de uma norma, entram com ação de improbidade. Acho que o Ministério Público foi o grande responsável pela mudança da lei. E, veja, é uma instituição muito importante, eu a defendo. Mas eles, às vezes, exageram mesmo.

ConJur — A Justiça brasileira é ineficiente?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Ela é demorada. Nesse sentido, ela é muito ineficiente. É uma coisa absurda: em casos concretos e situações que poderiam ser resolvidas de forma simples, às vezes demora um ou dois anos para sair um despacho do juiz. E às vezes não é a decisão, é só um despacho mandando fazer isso ou aquilo. Eu acho que há excesso de judicialização, porque hoje qualquer coisa faz com que a pessoa vá a juízo. É o caminho. Porque querem reclamar, estão descontentes com alguma coisa, vão reclamar para quem? As pessoas vão para o Judiciário, e vão com essa expectativa de que o assunto será resolvido. Às vezes não resolvem e ainda gastam dinheiro.

ConJur — A senhora acredita que as instituições públicas têm prestado um bom serviço?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Eu acho que houve uma melhoria grande nos últimos tempos, embora a gente ainda veja alguns órgãos que não conhecem determinadas leis que são fundamentais. Mas eu acho que, de maneira geral, a advocacia pública ajuda muito. Eu vejo, por exemplo, que a AGU está fazendo um papel muito importante com relação à aplicação da Lei de Licitações, porque eles baixam normas, orientações, fazem modelos de peças. Isso é realmente importante. A Procuradoria aqui de São Paulo também faz. Então, acho que a advocacia pública vem desempenhando um papel muito importante na melhoria do funcionamento da administração pública. Eu não sei o que se passa no Brasil todo, e nós estamos aqui no melhor estado. Estamos em uma situação privilegiada, mas se pensarmos, por exemplo, em termos de AGU, que funciona no Brasil inteiro, eu acho que é importante. A AGU funciona muito bem.

ConJur — A Constituição do Brasil é muito grande?
Maria Sylvia Zanella di Pietro – Sim, mas é a nossa Constituição, nós convivemos com ela dessa maneira. Já tem mais de cem emendas, fica difícil acompanhar. Tenho de rever meu livro (Direito Administrativo) todos os anos. Acho que há um excesso de leis, de normas, mas não é só na Constituição, é um sistema do brasileiro de querer resolver todos os problemas fazendo leis, o que nem sempre funciona. Por exemplo, a Constituição americana tem poucos artigos. O professor Dalmo Dallari sempre falava que, uma vez, mandou buscar nos Estados Unidos uma Constituição e veio um livrinho. Veio a Constituição com todos os entendimentos da Suprema Corte, que acabam funcionando como se fossem regras. Nós, em vez de termos tantas decisões, temos um colosso de leis. E hoje, tanto o Supremo quanto o STJ estão multiplicando o número de súmulas e decisões por repercussão geral, que se aplicam a todas as situações. Isso vai crescendo de uma maneira assustadora e, para acompanhar, é difícil.

ConJur — A qualidade dos textos das leis influencia na qualidade da Justiça?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Com certeza. Inclusive, hoje vemos que o Supremo é acusado de legislar, de invadir a competência do Executivo, do Legislativo, e de tomar muitas decisões sobre constitucionalidade de alguma norma. Eles (os ministros) fazem a interpretação conforme a Constituição, porque o que significa esse dispositivo sem reduzir o texto? Normalmente, quando se diz que algo é inconstitucional, aquele texto deixa de existir. Ou parte dele. E quando eles fazem a interpretação conforme, eles dizem que esse dispositivo tem de ser interpretado de certa maneira. E o dispositivo não se alterou, está ali. É uma consequência da evolução que a gente está vivendo hoje, nós sofremos muita influência do Direito europeu. Quando falamos das inovações do Direito Administrativo brasileiro, vemos as inovações do Direito europeu continental, é a mesma coisa. Se lermos os autores europeus, teremos a impressão de que eles estão falando do Direito brasileiro, porque nós seguimos seus passos, sempre um pouquinho depois, mas vamos seguindo.

ConJur — A falta de ação do Legislativo é a explicação para a postura bastante ativa do Supremo?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — A administração se omite, o Legislativo se omite e daí chega ao Judiciário e ele tem de dar uma decisão. E uma coisa que facilita muito hoje esse ativismo judicial é a quantidade de princípios que são aplicados. O princípio tem conteúdo indeterminado, você pode aplicar de uma maneira em um caso, de outra em outro caso. E o Judiciário tem essa facilidade de usar o princípio para dar a interpretação no caso concreto. Hoje, a quantidade de matérias que chega ao Supremo é impressionante. Com essa constitucionalização do Direito Administrativo, muitas matérias que eram da legislação ordinária passaram para a Constituição. E, se está na Constituição, pode chegar ao Supremo o conflito, então houve realmente uma constitucionalização do Direito Administrativo.

ConJur — No caso da reforma da Previdência, por exemplo, o próprio tamanho e o texto da lei influenciaram na judicialização posterior…
Maria Sylvia Zanella di Pietro — E a última reforma que foi feita deixou alguns dispositivos como de âmbito nacional. Escrevi um texto, em um tratado que eu organizo pela revista RT, e o revisor me disse: ‘Mas esse dispositivo da Constituição foi revogado’. E eu respondi: ‘Foi revogado para a União, mas os estados vão continuar aplicando porque não foi revogado para os estados e municípios’. E agora tentaram aprovar uma PEC no Congresso para mandar aplicar as normas da reforma da União para os estados e os municípios. Aí foi impugnado, alegaram que feria a autonomia, mas ficou confuso. Há coisas que estão resolvidas para o governo federal e que não estão resolvidas para os servidores dos estados e municípios, porque a emenda ficou incompleta. Então existem coisas muito mal feitas.

ConJur — O que mais a preocupa, no momento, no Direito Administrativo?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — A minha grande preocupação no momento é a inteligência artificial. Acho que precisa ser muito bem regulamentada para não corrermos riscos. E se você coloca informações em bancos de dados, como é que está protegido na sua privacidade e na sua intimidade? Aquilo que é sigiloso para o poder público, como você vai impedir que seja divulgado? Acho que é uma grande preocupação hoje, não só no âmbito do Direito Administrativo, mas do mundo, do Direito em geral, esse uso indiscriminado da inteligência artificial.

ConJur — Na área criminal, a senhora acredita que uma pessoa pode ser incriminada por uma câmera, por um reconhecimento facial criado pela inteligência artificial? O robô vira o juiz, no caso?
Maria Sylvia Zanella di Pietro — Eu li um livro do Dan Brown, A Origem, que gira em torno de um robô que tinha a forma humana, inclusive matava pessoas. No fim do livro ele faz um comentário dizendo que em poucos anos o ser humano iria se tornar escravo da máquina. E, infelizmente, eu acho que já está acontecendo. Por exemplo, eu conheço um professor da faculdade que dá aula de Ciência da Computação, professor universitário. Ele disse que chegam alunos lá, já com idade de fazer faculdade, que nunca usaram um computador. Não sabem datilografar, não sabem gravar um arquivo, não sabem nada, eles só sabem usar o celular. E é um vício que as pessoas têm hoje. Às vezes você vê, em uma sala de audiência, em uma conferência, as pessoas lá, olhando o celular. E desde cedo as crianças já usando. Então eu acho que, infelizmente, o ser humano vai virar escravo da máquina mesmo.

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