Opinião

A monitoração eletrônica e o princípio da proporcionalidade

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20 de dezembro de 2024, 16h18

A monitoração eletrônica se tornou um marco nas políticas penais brasileiras desde a edição da Lei Federal 12.258/2010. A promessa era de modernizar o sistema de execução penal, oferecendo alternativas ao encarceramento e ampliando as possibilidades de reintegração social dos condenados. No entanto, a expansão do uso das tornozeleiras eletrônicas trouxe consigo desafios jurídicos, sociais e éticos, especialmente quanto ao equilíbrio entre controle estatal e o respeito aos direitos fundamentais.

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Em respeito ao direito individual à dignidade (Constituição, artigo 1º, III) e à individualização da pena (Constituição, artigo 5º, XLVI), dentre outros, a Lei de Execução Penal (LEP) estabelece a humanização da pena como um de seus pilares, buscando compatibilizar a aplicação da pena com os direitos do condenado. O artigo 146-B introduziu a possibilidade do monitoramento eletrônico.

O verbo eleito pelo legislador não deixa margem para dúvidas. “Poderá”. Indica faculdade e não determinação. O parâmetro será o princípio da proporcionalidade, sob os viesses do binômio da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito, tal como determina o critério geral de toda e qualquer medida cautelar (CPP, artigo 282, I e II).

É assim porque a Lei Federal 12.258/2010 (lei da monitoração eletrônica) inseriu na LEP, além do próprio artigo 146-B, referido acima, outro importante preceito, o artigo 146-D, que deixa claro que não existe o monitoramento eletrônico ex lege, sem fundamentação específica.

Monitoração imposta de forma automática

Apesar de a legislação ter estabelecido a monitoração como medida eventual, sua aplicação frequentemente ignora a necessidade de fundamento específico. A tornozeleira eletrônica é imposta de forma automática, desvinculada da análise individual do apenado ou da finalidade de ressocialização. A prática viola não apenas os objetivos da LEP, mas os princípios que norteiam o sistema de justiça, como a proporcionalidade e a dignidade da pessoa humana.

O princípio da proporcionalidade atua como uma salvaguarda contra o abuso de medidas restritivas de direitos. Sua aplicação à monitoração eletrônica exige a observância de três critérios:

Adequação: A medida deve ser eficaz para atingir os objetivos que se propõe. No caso da monitoração, a eficácia dependerá de sua capacidade de prevenir reincidências, facilitar a reintegração social e garantir a fiscalização sem comprometer desnecessariamente a liberdade do apenado.

Necessidade: A monitoração deve ser adotada somente quando não houver alternativas menos restritivas que possam alcançar o mesmo objetivo. Medidas como supervisão presencial, cumprimento de obrigações periódicas ou programas de trabalho podem ser soluções viáveis e menos invasivas, dependendo das circunstâncias.

Proporcionalidade em sentido estrito: A análise deve ponderar os benefícios esperados da monitoração em relação aos prejuízos causados ao monitorado. A exposição social, a perda de oportunidades de reintegração e o estigma associado ao uso da tornozeleira frequentemente superam os benefícios, especialmente quando não há risco concreto de reincidência ou ameaça à segurança pública.

O princípio da proporcionalidade exige não apenas uma análise abstrata, mas também uma aplicação prática, especialmente no contexto da monitoração eletrônica. Decisões como a ADPF 347 (STF), que reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiro, reforçam a necessidade de medidas alternativas proporcionais e individualizadas.

Alternativas mais humanizadas à monitoração

Estudos internacionais apontam para a eficácia de alternativas mais humanizadas à monitoração eletrônica. Na Noruega, a reinserção social de indivíduos em conflito com a lei é promovida por meio de programas que enfatizam educação, trabalho e assistência psicológica. Essas iniciativas buscam reduzir o estigma associado ao sistema penal e fortalecer os vínculos sociais dos participantes. Um exemplo é o sistema de “prisões abertas”, onde os detentos têm maior liberdade e acesso a atividades educacionais e laborais, facilitando sua reintegração à sociedade. Estudos indicam que tais abordagens contribuem para taxas mais baixas de reincidência criminal. [1]

Spacca

No Brasil, a LEP estabelece, em seu artigo 17, que a assistência educacional ao preso deve compreender a instrução escolar e a formação profissional. O artigo 18 determina que o ensino fundamental é obrigatório e integrado ao sistema escolar da unidade federativa. Programas como o “Cened Qualificando” oferecem cursos de qualificação profissional a internos do sistema prisional brasileiro, visando à reintegração social por meio da capacitação durante o cumprimento da pena e à (re)inclusão no mercado de trabalho após a liberdade. [2]

Além disso, a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) promove ações e programas de qualificação profissional para presos e egressos, com o objetivo de fomentar a inserção e a permanência dessas pessoas no mercado de trabalho, contribuindo para a diminuição da reincidência criminal. [3] Essas iniciativas estão alinhadas aos objetivos ressocializadores previstos na LEP, oferecendo alternativas viáveis e menos invasivas para a reintegração social dos apenados.

Práticas de vigilância que impactam dinâmica social

A estigmatização associada ao uso da tornozeleira eletrônica pode ser analisada sob diferentes perspectivas teóricas que elucidam como práticas de vigilância e controle impactam as dinâmicas sociais e subjetivas dos indivíduos monitorados.

Erving Goffman, em sua obra seminal “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada”, aborda como símbolos visíveis de diferenciação social, como a tornozeleira, atuam como marcas de desvalorização que reforçam preconceitos, exclusões e a percepção de desvio por parte da sociedade. Esses estigmas, segundo Goffman, restringem as possibilidades de interação social e promovem uma segregação simbólica que compromete os esforços de reintegração dos indivíduos ao convívio comunitário.

Michel Foucault, em “Vigiar e Punir”, amplia a análise ao contextualizar a tornozeleira eletrônica como parte de um aparato mais amplo de tecnologias de vigilância, que consolidam o que ele denomina de “sociedade disciplinar”. Através do conceito de “panoptismo”, Foucault ilustra como instrumentos de monitoramento como a tornozeleira reforçam uma relação assimétrica de poder, onde o indivíduo monitorado está constantemente consciente de sua observação potencial. Esse estado de vigilância permanente promove uma internalização do controle, moldando comportamentos e subjetividades conforme as normas impostas pelo poder punitivo, muitas vezes sem oferecer alternativas efetivas para a superação das condições que levaram ao delito.

Ambas as perspectivas sugerem que, sem políticas de inclusão social amplas e estruturadas, a monitoração eletrônica pode agravar desigualdades já existentes, perpetuando mecanismos de exclusão social e psicológica. Nesse sentido, a ausência de suporte socioeducativo e estratégias de reintegração efetiva reforça a marginalização dos monitorados, consolidando um ciclo de vulnerabilidade e reincidência. Assim, a tornozeleira, ao invés de cumprir sua promessa de controle humanizado e ressocializador, pode funcionar como um símbolo material de controle punitivo e estigmatização social, em dissonância com os princípios de dignidade e ressocialização previstos em marcos legais como a LEP brasileira.

Falha estrutural do Estado

A dependência do monitoramento eletrônico como substituto de infraestrutura adequada revela uma falha estrutural do Estado. O desvio de recursos que deveriam ser destinados à criação de colônias agrícolas e casas de albergado, conforme prevê a LEP, demonstra uma priorização inadequada de políticas. Para que a ressocialização seja efetiva, é necessário um compromisso do Estado com políticas públicas que promovam a dignidade e a inclusão dos apenados, em vez de relegá-los a uma “prisão virtual”.

Além disso, a utilização indiscriminada da tornozeleira eletrônica pode aprofundar a exclusão social dos monitorados. O estigma associado ao uso do dispositivo pode dificultar a reintegração no mercado de trabalho e nas relações sociais, comprometendo a percepção de dignidade individual. A Defensoria Pública do Paraná destaca que, embora a monitoração eletrônica seja uma alternativa mais humanizada ao encarceramento, o estigma social sofrido pelos monitorados pode dificultar sua reintegração social. [4]

Embora a tornozeleira eletrônica seja frequentemente apresentada como uma solução pragmática, seus efeitos vão muito além do controle físico do apenado. Abaixo, listo alguns dos principais impactos dessa grave medida:

Estigmatização e exclusão social: O uso da tornozeleira torna a condição penal do indivíduo visível, submetendo-o a preconceitos e discriminação em ambientes profissionais, educacionais e comunitários. Essa visibilidade perpetua o estigma de criminalidade, dificultando a construção de uma nova identidade social e o estabelecimento de vínculos positivos com a sociedade.

Fragilização psicológica: A constante presença do dispositivo funciona como um lembrete da condição penal, criando um ambiente de vigilância que limita a liberdade subjetiva do apenado. Essa “prisão mental” pode gerar ansiedade, depressão e retraimento social, prejudicando o processo de reintegração e ampliando os efeitos punitivos além do necessário.

Barreiras à ressocialização: A estigmatização associada ao monitoramento eletrônico compromete as oportunidades de trabalho e educação, elementos essenciais para a ressocialização. Além disso, muitos apenados relatam dificuldades em acessar espaços públicos, como instituições financeiras e locais de culto, devido à presença do dispositivo.

Custos econômicos e a eficiência do Estado: A implementação do monitoramento eletrônico exige investimentos significativos em tecnologia, manutenção e supervisão. Contudo, a substituição de regimes semiabertos por tornozeleiras, como uma solução para a ausência de infraestrutura prisional adequada, representa um desvio de recursos e pode mascarar a necessidade de políticas públicas efetivas para a melhoria do sistema penal.

O uso automatizado banaliza a medida, transformando-a em uma espécie de “prisão virtual”, custodiando o indivíduo em uma “prisão mental”, combina os ônus do encarceramento com os desafios da reinserção social. Além disso, tal prática desconsidera a individualização da pena, princípio fundamental do Estado democrático de direito, e viola os direitos humanos dos apenados.

Violação do sistema progressivo de cumprimento da pena

O pensamento simplista viola o sistema progressivo de cumprimento de pena e acaba por reproduzir um juízo ultrapunitivista, cuja retina detecta apenas o binômio do corpo na prisão e da prisão no corpo. O cidadão passou pela prisão. Seu corpo esteve na prisão. Mas a prisão ainda está em seu corpo. O linear monitoramento eletrônico de egressos de unidades prisionais tem impacto devastador para a vida da pessoa. O Estado, nesta situação, age de forma medieval, evidenciando característica de uma arquitetura panóptica de execução de pena.

Os tribunais brasileiros têm destacado a importância de fundamentação concreta para a imposição da monitoração eletrônica. A jurisprudência reconhece que a medida deve ser avaliada com base nas especificidades do caso, respeitando os princípios da proporcionalidade e da dignidade humana. Decisões como da Justiça de Mato Grosso, noticiada neste veículo [5], ressaltam a imprescindibilidade de motivo específico e da necessidade de vincular o monitoramento eletrônico a políticas públicas que promovam a reintegração social.

Para que a monitoração eletrônica cumpra seu propósito de oferecer uma alternativa humanitária ao encarceramento, é necessário que sua aplicação seja pautada por critérios claros e alinhada aos objetivos da execução penal. Algumas propostas incluem:

Fortalecimento da fundamentação judicial: O uso da tornozeleira deve ser sempre acompanhado de uma análise criteriosa das circunstâncias do caso, demonstrando a necessidade e a adequação da medida.

Desenvolvimento de políticas públicas de apoio: A monitoração deve ser integrada a iniciativas que promovam a reinserção social, como programas de emprego, educação e assistência psicológica.

Revisão e controle periódico: As decisões de monitoramento devem ser revistas regularmente, para garantir que a medida continue sendo necessária e eficaz.

Investimento em infraestrutura penal: A criação de unidades adequadas para o cumprimento de penas em regimes menos gravosos reduziria a dependência do monitoramento eletrônico, garantindo maior diversidade de opções ao sistema penal.

Sensibilização da sociedade: É fundamental educar a sociedade sobre os objetivos da monitoração eletrônica, reduzindo o estigma associado ao uso do dispositivo e promovendo a aceitação dos apenados.

Ferramenta para modernizar o sistema penal

A monitoração eletrônica, quando bem fundamentada e aplicada com parcimônia, pode ser uma ferramenta valiosa para modernizar o sistema penal e promover a reintegração social. No entanto, sua utilização indiscriminada e desvinculada de uma análise criteriosa compromete os princípios constitucionais e os objetivos da execução penal. É imperativo que o Judiciário, em conjunto com as políticas públicas, resgate a função original da monitoração eletrônica, assegurando que ela opere como um mecanismo de inclusão e não de exclusão. Apenas assim será possível equilibrar segurança pública, direitos fundamentais e justiça social em um sistema penal verdadeiramente humanitário.

A Lei Federal 12.258/2010 deve ser revisada para incorporar critérios claros de aplicação, limites temporais para o uso da monitoração e mecanismos obrigatórios de revisão periódica. Tais mudanças garantiriam que o monitoramento eletrônico seja temporário, proporcional e focado na reintegração social, reduzindo seu potencial de perpetuar desigualdades e estigmas.

É essencial que o Estado e o Judiciário assumam a responsabilidade de garantir que a tecnologia seja um meio de inclusão, e não de exclusão, cumprindo os objetivos de uma execução penal em um Estado democrático de direito.

 


[1] https://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/8865/1/PSIQUE-XIV_3-Percec%CC%A7o%CC%83es-dos-Reclusos%281%29.pdf

[2] https://www.cenedqualificando.com.br/ProgramaEducacional

[3] https://www.gov.br/senappen/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/presos-e-egressos/qualificacao-profissional

[4] https://www.defensoriapublica.pr.def.br/Noticia/Tornozeleira-eletronica-profissionais-da-DPE-PR-avaliam-o-impacto-do-estigma-social-sofrido?utm_source=chatgpt.com

[5] https://www.conjur.com.br/2024-nov-03/tj-mt-manda-tirar-tornozeleira-eletronica-de-preso-do-semiaberto

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