Controvérsias Jurídicas

Senacon no caso dos suplementos alimentares: proteção legítima em harmonia com o CDC

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  • é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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  • é advogado especialista em Direito Criminal ex-diretor executivo do Procon-SP e ex-membro do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor.

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19 de dezembro de 2024, 8h00

A recente atuação da Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) diante das denúncias de adulteração em suplementos alimentares comercializados no mercado brasileiro traz à tona uma reflexão jurídica mais complexa do que a mera contraposição entre a liberdade econômica e a intervenção do Estado.

Isso porque há a necessidade de compatibilizar e harmonizar o CDC e as relações de consumo com a Lei de Liberdade Econômica, o que é feito com o diálogo entre as normas e não com a exclusão. A denúncia feita pela Associação Brasileira de Empresas de Produtos Nutricionais (Abenutri) envolve a proteção da saúde do consumidor num cenário de constatação laboratorial de adulteração de produtos alimentares.

Lembre-se, este é um setor do mercado de alimentos em que a segurança e confiança do no produto começa e termina na rotulagem, sendo o consumidor a parte vulnerável. Frente ao grave contexto expostos em denúncia, no diálogo entre as referidas normas deve o CDC servir de eixo central, não havendo outra opção jurídica para o enfrentamento da questão.

Ao solicitar a retirada de produtos irregulares das plataformas de e-commerce, a Senacon não feriu a livre iniciativa, mas consolidou a integridade do mercado. As constatações laboratoriais apresentadas na denúncia da Abenutri não são uma irregularidade menor, mas representam verdadeira assimetria informacional capaz de comprometer a saúde do consumidor, prejudicar a concorrência leal e subverter a lógica do mercado, demandando assim a intervenção estatal como forma de restaurar o equilíbrio.

O ponto de partida dessa análise reside na compreensão de que a defesa do consumidor não é um apêndice acidental do ordenamento jurídico, mas um elemento fundamental integrante da ordem econômica prevista na Constituição. O artigo 170, ao tratar dos princípios gerais da atividade econômica, elenca a defesa do consumidor lado a lado com o estímulo à livre iniciativa, a valorização do trabalho humano, a propriedade privada e a livre concorrência.

Nesse sentido, o consumidor não se apresenta como um agente passivo a ser protegido contra o dinamismo econômico, mas figura como sujeito indispensável, cuja tutela é condição para a existência e perpetuação de um mercado saudável. Não há contradição entre limitar práticas abusivas e assegurar a liberdade empresarial: ao contrário, o respeito aos direitos do consumidor assegura a transparência, a segurança e a credibilidade necessárias para que a livre iniciativa possa florescer plenamente.

A Lei de Liberdade Econômica, ao buscar reduzir a intervenção arbitrária do Estado sobre as atividades econômicas, não se presta a conferir carta branca a atividades empresariais irregulares. Seus dispositivos não eliminam a necessidade de intervenção estatal quando a ausência de regras claras e a prática de fraudes impedem o bom funcionamento do mercado.

Ao contrário do que supõem análises superficiais, a Lei de Liberdade Econômica convive harmonicamente com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que, em dispositivos como o artigo 4º e o artigo 6º, assegura o direito à informação clara e adequada, à proteção contra práticas enganosas e ao acesso a produtos que não ofereçam riscos à saúde ou segurança. Na medida em que o empreendedorismo e a inovação são incentivados, a lei pressupõe a existência de um arcabouço mínimo de confiança e integridade, condições sem as quais a liberdade econômica se degrada em um cenário de incertezas, fraudes e concorrência desleal.

Ação da Senacon é legítima

A presença de suplementos alimentares adulterados fere o artigo 6º, III, do CDC, que garante ao consumidor o direito à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, bem como o artigo 18 do mesmo diploma, que imputa responsabilidade ao fornecedor por vícios de qualidade ou quantidade. Ao oferecer um produto cujos atributos nutricionais não correspondem ao que é anunciado, o fornecedor incide em prática que compromete a própria essência da relação de consumo, privando o adquirente da capacidade de avaliar racionalmente suas opções e fazer escolhas conscientes.

A violação ao direito à informação, longe de ser um detalhe técnico, mina a confiança necessária para a efetividade do mercado e rompe o elo essencial entre produção, comercialização e consumo. Afinal, se não existe no interior do recipiente o produto declarado no rótulo, o que é que o consumidor está consumindo?

A intervenção da Senacon, respaldada pelos laudos apresentados pela Abenutri, não representa uma violação à liberdade do fornecedor, mas uma ação legítima de restaurar condições básicas de concorrência leal. Sem informação fidedigna, a competição deixa de ser pautada pela qualidade, eficiência e inovação, tornando-se uma corrida desigual na qual fornecedores obtêm vantagens ilegítimas. Ao solicitar a retirada desses produtos do mercado, a Senacon não age contra o empreendedorismo ou a concorrência, mas, paradoxalmente, em favor deles. Trata-se de eliminar o fator desestabilizador que contamina o ambiente de negócios e inibe a lealdade concorrencial.

Spacca

A necessidade de intervenção estatal, aqui, não advém de um controle paternalista do mercado, mas da constatação de uma falha que o próprio mercado não corrigiu. Idealmente, a concorrência eficiente e a reputação das empresas deveriam desestimular práticas fraudulentas. Contudo, a experiência mostra que, sem mecanismos adequados de vigilância e sanção, alguns agentes podem se sentir tentados a enganar o consumidor, acreditando que o custo de cumprir normas é maior do que o eventual risco de punição. Nesse sentido, a atuação da Senacon exemplifica o postulado da intervenção mínima, porém necessária, do Estado, consagrada na própria Lei de Liberdade Econômica e no CDC. Não se trata de regular detalhadamente cada aspecto da produção, mas de reprimir práticas que, comprovadamente, tragam riscos ao consumidor e, por consequência, ao próprio mercado.

No caso do agravo de instrumento nº 2357545-81.2024.8.26.0000, o Tribunal de Justiça de São Paulo cassou liminar que havia determinado censura ao Programa de Automonitoramento de Mercado da Abenutri, reconhecendo a importância da informação ao consumidor e do papel construtivo que a atuação conjunta entre empresas, associações de classe e órgãos de defesa do consumidor desempenha na promoção da transparência e segurança do mercado. Ao confirmar a prevalência do direito à informação sobre interesses comerciais privados, o Poder Judiciário sinaliza que a liberdade econômica, longe de dispensar a proteção do consumidor, dela se alimenta para criar um ambiente competitivo e confiável.

Sinergia entre defesa do consumidor e liberdade econômica

A autorregulação e a participação da sociedade civil, exemplificadas pela Abenutri, são instrumentos que fortalecem o caráter subsidiário da intervenção estatal. Quando as entidades setoriais monitoram o cumprimento de padrões de qualidade, sinalizam ao mercado a importância da ética e da veracidade das informações. Esse monitoramento privado não substitui o papel do Estado, mas contribui para um equilíbrio mais dinâmico, reduzindo a necessidade de ações repressivas mais intensas. Ao se engajar no controle da qualidade dos produtos, a sociedade civil reforça a ideia de que a proteção ao consumidor não é antagônica ao desenvolvimento econômico, mas um componente essencial para a formação de um mercado plural, inovador e dinâmico.

A sinergia entre defesa do consumidor e liberdade econômica pode ser percebida também sob o prisma da Análise Econômica do Direito. Em mercados onde o consumidor é bem-informado, a reputação se torna um ativo valioso para o fornecedor. A confiança depositada pelo público em uma marca ou empresa impulsiona suas vendas, aumentando seu valor e fortalecendo sua posição concorrencial. Quando o Estado intervém para punir desvios de conduta, atua sobre a construção de um capital reputacional coletivo. A repressão às práticas enganosas não é um fardo excessivo, mas um investimento na solidez do próprio mercado, beneficiando tanto consumidores, que passam a ter mais segurança, quanto fornecedores honestos, que não precisam competir com base em subterfúgios ilícitos.

Assim, ao coibir a adulteração de suplementos, a Senacon cria condições para que a qualidade efetiva dos produtos se torne o principal diferencial competitivo, impulsionando a inovação, o aperfeiçoamento técnico e a confiança do público. Esse quadro é coerente com a Lei de Liberdade Econômica, que não se limita a retirar entraves burocráticos da atividade empresarial, mas demanda que a atuação econômica seja exercida dentro de parâmetros éticos e transparentes. A observância às normas de proteção ao consumidor garante ao empreendedorismo uma plataforma sólida para seu desenvolvimento, afastando a insegurança gerada por práticas abusivas.

Dessa forma, a proteção do consumidor não apenas caminha ao lado da liberdade econômica, mas a fortalece. Ao assegurar que as transações sejam orientadas por informações corretas, ao punir desvios de conduta e ao promover a integridade nas relações de consumo, o Estado estimula o desenvolvimento de um mercado sólido, no qual a concorrência não é mascarada pela opacidade ou pelo engano. O consumidor protegido é capaz de fazer escolhas mais racionais, premiando fornecedores confiáveis e pressionando aqueles que não se adaptam a padrões mais altos de qualidade. Esse mecanismo incentiva a livre iniciativa legítima, impulsiona o crescimento econômico sustentável e consolidado, além de promover o equilíbrio que a própria Constituição Federal vislumbra quando coloca a defesa do consumidor entre os fundamentos da ordem econômica.

O caso dos suplementos alimentares adulterados não representa, portanto, uma sobreposição do Estado sobre o setor privado, mas sim o exercício legítimo de um papel moderador, capaz de restabelecer a harmonia rompida por condutas ilícitas. A intervenção, pautada em evidências técnicas e respaldada pelo ordenamento jurídico, contribui para a construção de um cenário no qual a liberdade econômica não é confundida com a ausência de regras, mas entendida como a possibilidade de agir no mercado contando com um arcabouço normativo confiável. A transgressão desses padrões afeta não apenas o consumidor individualmente, mas a própria estrutura concorrencial, desmotivando o empreendedorismo honesto e prejudicando a reputação de todo o setor.

A reflexão final que se impõe é que, em uma ordem jurídica democrática, a proteção do consumidor e a liberdade econômica estão intrinsecamente ligadas. O respeito ao CDC, em seus artigos 4º, 6º, 18 e demais dispositivos, longe de limitar as possibilidades empresariais, as qualifica. O princípio da intervenção mínima, que norteia a Lei de Liberdade Econômica, não prescinde da intervenção necessária, pontual e proporcional, quando se defronta com falhas de mercado como adulteração, omissão ou engano deliberado.

Neste sentido, ao solicitar a retirada dos produtos irregulares, a Senacon não apenas cumpriu seu dever, delimitando como eixo central de solução o CDC, mas forneceu o arrimo necessário para que a liberdade econômica continue a florescer, agora sobre bases mais sólidas e condizentes com o espírito constitucional que privilegia, concomitantemente, a livre iniciativa, a concorrência e a inafastável proteção do consumidor.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

  • é advogado, especialista em Direito Criminal, ex-diretor executivo do Procon-SP e ex-membro do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor.

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