Retrospectiva eleitoral 2024: avanços, desafios e decisões relevantes
19 de dezembro de 2024, 6h38
O ano de 2024 foi de eleições municipais. Essa é uma empreitada colossal. Além de a Justiça Eleitoral administrar um cadastro de 156 milhões de eleitores, a tarefa envolve ordenar 500.183 seções eleitorais, distribuídas em 2.619 zonas eleitorais que cobrem os 5.569 municípios, com seus respectivos pleitos majoritários (para prefeito e vice) e proporcionais (de vereadores).
Mais de 463 mil candidatos precisaram ser registrados e fizeram campanhas cujos atos foram fiscalizados, muitas vezes judicializados. Em cada candidatura dessas, contas tiveram de ser prestadas. A atividade administrativa e judiciária eleitoral foi intensa, portanto. E ainda não terminou, porque há a possibilidade de recursos estarem pendentes, ações e representações serem ajuizadas, expedições de diplomas serem recorridas e mandatos impugnados.
Consultas à população e sobras eleitorais
De par com isso, houve a realização de algumas consultas populares. Cinco municípios ouviram o eleitorado sobre temas locais, conforme permitido pela Emenda Constitucional nº 111/2021. Em Belo Horizonte (MG), um referendo sobre a alteração da bandeira municipal manteve o símbolo atual. Em São Luís (MA), um plebiscito aprovou o passe livre estudantil no transporte público. Em Governador Edison Lobão (MA) e São Luiz (RR), os eleitores mudaram os nomes das cidades para Ribeirãozinho do Maranhão e São Luiz do Anauá, respectivamente. Em Dois Lajeados (RS), a população rejeitou a construção do novo Centro Administrativo Municipal.
Este ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal desempenharam papéis cruciais no fortalecimento do Direito Eleitoral brasileiro, tanto no âmbito regulamentar, quanto judicial.
Em fevereiro, o STF julgou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7.228, 7.263 e 7.325, declarando inconstitucionais as restrições impostas pela Lei 14.211/2021 à distribuição das sobras eleitorais nas eleições proporcionais. Anteriormente, apenas partidos que alcançassem pelo menos 80% do quociente eleitoral e candidatos com, no mínimo, 20% desse quociente podiam participar da segunda fase de distribuição das vagas remanescentes.
O STF entendeu que tais exigências comprometiam a representatividade e o pluralismo político, ao dificultar a eleição de candidatos de partidos menores com votações expressivas. A corte decidiu que todas as legendas devem participar da última fase de distribuição das sobras, independentemente de terem atingido os percentuais estabelecidos.
Para preservar a segurança jurídica, os efeitos dessa decisão foram modulados para vigorar a partir das eleições de 2024, mantendo inalterados os resultados do pleito de 2022. Posteriormente, em junho, durante o julgamento dos embargos de declaração no Plenário Virtual, a ministra Cármen Lúcia rejeitou os recursos, mas os ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Nunes Marques, Dias Toffoli e Cristiano Zanin divergiram, permitindo que a tese prevalecesse sem modulação. Todavia, o julgamento foi destacado para o Plenário pelo ministro André Mendonça.
Resoluções e gravação ambiental sem autorização judicial
Aprovadas em fevereiro e publicadas em março, as 12 resoluções regedoras da eleição atualizaram as regras aplicadas aos pleitos de 2024. Destacou-se, dentre elas, a Resolução TSE nº 23.732/2024, que trouxe regras sobre o uso de inteligência artificial e a responsabilidade das plataformas digitais no contexto eleitoral.
Em abril de 2024, o STF firmou entendimento de repercussão geral sobre a validade de gravações ambientais clandestinas em processos eleitorais. No julgamento do Recurso Extraordinário 1.040.515, o Plenário decidiu que, em ações eleitorais, é ilícita a prova obtida por meio de gravação ambiental sem autorização judicial, mesmo que realizada por um dos participantes sem o conhecimento dos demais.
A única exceção ocorre quando a gravação é feita em local público desprovido de controle de acesso, onde não há expectativa de privacidade. O ministro Dias Toffoli, relator do caso, destacou que, devido às acirradas disputas político-eleitorais, tais gravações podem ser usadas de forma ardilosa para desestabilizar pleitos eleitorais. A tese fixada pelo STF estabelece que essa diretriz deve ser aplicada a partir das eleições de 2022, garantindo segurança jurídica e preservando decisões anteriores da Justiça Eleitoral.
Troca do número do partido e fraude à cota de gênero
Ainda em abril, o TSE definiu que a mudança de número de um partido político não é suficiente para configurar justa causa de desfiliação partidária, como debatido na Consulta 0602027-29.2022.6.00.0000.
Em maio, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, encerrou sua gestão. Ele foi sucedido pela ministra Cármen Lúcia, que conduziu a corte durante o pleito municipal.
Nesse mesmo mês, o TSE iniciou o julgamento do Recurso Especial Eleitoral (REspe) 0600003-05.2021.6.06.0062, referente a uma alegada fraude à cota de gênero nas eleições municipais de Granjeiro (CE), em 2020. O caso envolvia acusação de utilização de candidaturas femininas fictícias para cumprir a exigência legal de 30% de candidaturas de um mesmo gênero. O julgamento foi concluído em agosto de 2024, com o TSE reconhecendo a fraude e determinando a nulidade dos votos recebidos pela legenda para o cargo de vereador, além de cassar o Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap) e os diplomas e registros dos candidatos envolvidos.
Representatividade na corte, Súmula 73 e apostas eleitorais
Ainda em maio, o TSE registrou a realização de sua primeira sessão com duas mulheres negras compondo a bancada de julgadores: ministras Edilene Lobo e Vera Lúcia Santana Araújo. Além disso, a bancada contou com maioria feminina, incluindo a ministra Cármen Lúcia e Isabel Gallotti.
Em 16 de maio de 2024, o TSE aprovou a Súmula 73 para orientar os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e juízes sobre a fraude à cota de gênero. A súmula estabelece que a fraude pode ser configurada pela presença de um ou mais dos seguintes elementos: votação zerada ou inexpressiva; prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; e ausência de atos efetivos de campanha, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros.
O reconhecimento do ilícito resulta na cassação do Drap da legenda e dos diplomas dos candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência deles; na inelegibilidade daqueles que praticaram ou anuíram com a conduta, nas hipóteses de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije); e na nulidade dos votos obtidos pelo partido, com a recontagem dos quocientes eleitoral e partidário, inclusive para fins de aplicação do artigo 224 do Código Eleitoral.
Em setembro, o TSE alterou a Resolução 23.735. Explicitou a ilicitude das apostas eleitorais em plataformas digitais, conhecidas como “bets”. A Corte entendeu que tais práticas poderiam configurar abuso de poder econômico e captação ilícita de votos, além de serem passíveis de tipificação como crime eleitoral.
Clima de tranquilidade, influenciadores, ainda a Súmula 73 e abstenção
Em outubro, ocorreram as eleições municipais. A ministra Cármen Lúcia destacou a tranquilidade do pleito, com “pouquíssimas ocorrências” registradas, sem desinformações que pudessem comprometer a vontade popular.
Para além do êxito na realização das eleições, pode-se trazer a lume alguns pontos dignos de atenção.
A atuação de influenciadores digitais nas eleições de 2024 suscitou debates sobre a necessidade de regulamentação específica. A falta de normas claras para esses comunicadores, que possuem ampla audiência nas redes sociais, pode desvirtuar o processo eleitoral, criando disparidades na exposição dos candidatos. Especialistas sugerem que, assim como apresentadores de rádio e TV têm restrições durante o período eleitoral, influenciadores digitais também deveriam ser submetidos a regras que garantam a igualdade de oportunidades entre os candidatos. É difícil, contudo, encontrar o justo termo entre essa pretensão e as liberdades comunicativas constitucionalmente garantidas.
Por igual, o tema das candidaturas fraudulentas femininas é relevante, mas não está totalmente resolvido. Remanescem questionamentos se a aplicação da Súmula 73 deveria ser flexibilizada em casos excepcionais, para a preservação dos votos de mulheres eleitas em chapas fraudulentas.
Outro ponto de atenção, em um país no qual o voto é obrigatório, é a abstenção. Nas eleições municipais de 2024, o índice no primeiro turno foi de 21,71%, representando um aumento em relação aos 17,58% registrados em 2016, mas uma ligeira diminuição comparado aos 23,15% de 2020, ano marcado pela pandemia de Covid-19. No segundo turno, a abstenção subiu para 29,26%, com cerca de 9,9 milhões de eleitores ausentes.
Esse percentual é próximo ao observado em 2020 e representa a segunda maior taxa desde as eleições municipais de 2000. A ministra Cármen Lúcia considerou os índices elevados e destacou a necessidade de analisar regionalmente as causas para desenvolver estratégias de enfrentamento. Entre as possíveis razões apontadas está a facilidade de justificar a ausência por meio do aplicativo e-Título, o que levou o TSE a considerar a revisão desse mecanismo para incentivar maior participação nas próximas eleições.
Transferência de títulos
Apesar da excelência dos trabalhos preparatórios do pleito, também se tem notícias de problemas pontuais com a transferência de eleitores. Alguns pequenos e médios municípios brasileiros enfrentaram suspeitas de fraude eleitoral devido à transferência em massa e possivelmente ilegal de títulos eleitorais.
Em Fernão (SP), por exemplo, o número de eleitores superou o de habitantes, com um aumento de 17% no eleitorado devido a transferências de títulos. Ali a eleição para prefeito foi decidida por apenas um voto de diferença, o que revela a seriedade do assunto. Situações semelhantes de elevação de eleitorado ocorreram em Divino das Laranjeiras (MG) e Elesbão Veloso (PI), onde investigações averiguam a suspeita de utilização de comprovantes de residência falsos. Em Mangaratiba (RJ), o número de eleitores registrados ultrapassou o de moradores, levando a inquéritos sobre possíveis fraudes.
Saldo positivo
Há sinais alvissareiros. As eleições evidenciaram maior presença de mulheres e jovens nos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador. O número de prefeitas eleitas cresceu 7% em relação a 2020, totalizando 728 mulheres no cargo. Para vice-prefeito, houve um aumento de 15%, com 1.066 mulheres eleitas. Nas câmaras municipais, as mulheres passaram a ocupar 18% das vagas, um crescimento de 13% em comparação com as eleições anteriores. Além disso, a participação de jovens também se destacou: o número de prefeitos com até 29 anos mais que triplicou, passando de 36 eleitos, em 2020, para 119, em 2024. Entre os vereadores, candidatos com até 39 anos conquistaram mais espaço, enquanto as faixas etárias de 60 a 69 e de 70 a 79 anos apresentaram diminuições acentuadas.
Observou-se também um aumento na representatividade de pessoas negras nos cargos eletivos. Para o cargo de vereador, foram eleitos 26.789 candidatos que se autodeclararam negros (pretos e pardos), representando 45,86% do total de eleitos, um aumento em relação aos 44,46% registrados em 2020. Entre os prefeitos eleitos, 33,5% se autodeclararam negros, o que também indica um crescimento em comparação com eleições anteriores.
A introdução de consultas populares durante as eleições municipais de 2024 representou um marco na participação cidadã, permitindo que eleitores de diversos municípios opinassem diretamente sobre temas locais significativos. Essa iniciativa, além de fortalecer a democracia participativa, demonstrou a capacidade da Justiça Eleitoral de organizar plebiscitos e referendos de forma eficiente e integrada ao processo eleitoral. É um promissor cenário, possível de ser empreendido, inclusive, em questões estaduais e nacionais.
Apesar do cenário de polarização política, da miséria de muitos debates eleitorais, da cultura republicana em esgarçamento a olhos vistos e dos sérios riscos de ruptura institucional pelos quais passou o país, as eleições transcorreram de maneira tranquila. Isso evidencia a maturidade do eleitorado brasileiro e a eficácia das medidas adotadas pela Justiça Eleitoral para garantir a lisura do pleito.
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