Por que protocolos para julgamento com perspectiva racial e de gênero? Diálogo necessário
19 de dezembro de 2024, 6h04
Li recentemente um artigo publicado nesta ConJur por Lenio Streck. Tenho muitos pontos de concordância, em especial a preocupação com a curiosa necessidade que ainda temos de fazer textos (leis, protocolos, resoluções, portarias) para repetir o que já devia ser senso comum, porque previsto na Constituição. Há realmente muita dificuldade em superar a contaminação que o racionalismo cartesiano imprimiu ao que compreendemos como direito.
Concordo, também, sobre os riscos. Aliás, logo que saiu o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, também do CNJ, uma decisão foi publicada reconhecendo a justa causa de trabalhador acusado de assédio no ambiente de trabalho. Ela foi comemorada por utilizar o protocolo, mas seu resultado é a chancela da perda do emprego sem o pagamento dos direitos que garantem a sobrevivência imediata.
Nem discuto o mérito, porque não tenho objetivo aqui de problematizar se, no caso concreto, houve ou não o assédio. A questão é usar uma perspectiva que se pretende crítica e voltada à proteção (das mulheres) como forma de aprofundar a precarização das condições de existência de um trabalhador, sem sequer considerar o fato de que empregador que comete falta grave (assediando, por exemplo) não sofre qualquer perda ou punição, ainda que esse fato seja reconhecido na Justiça do Trabalho.
Ou seja, a questão é maior do que a hipótese dos autos. Passa pela autorização para que as opressões sejam hierarquizadas e, de algum modo, colocadas umas contra as outras, como se não fossem parte indissociável do mesmo problema. Como ensina Rita Segato, assédios ocorrem bem mais em razão da estrutura patriarcal, machista e violenta em que homens e mulheres estão inseridos desde o (e mesmo antes do) nascimento, do que por perversidade de determinado sujeito.
É importante, então, compreender o caráter simbólico dessas ações e ter muita nitidez, quanto aos objetivos perseguidos com tal movimento político. Sim, pois é disso que se trata, de um movimento político que busca comprometer o sistema de Justiça. E isso não é — nem de longe — moralizar juízes, pois não se trata de determinar condutas subjetivas. Se essa for a mirada de quem está engajado com tal movimento, o que alcançará será o fracasso. A tentativa de moralizar juízes falha sempre, inevitavelmente. Falha porque a moral já está impregnada no ato de decidir. E a moral predominante é burguesa, branca e bastante misógina. Isso, porém, não é um desvio das normas jurídicas ou de quem as aplica. Ao contrário, é o que define aquilo que chamamos direito.
Eis porque esse movimento político é tão importante.
O direito que é aplicado pelo sistema de Justiça tem por fundamento a manutenção de um tipo específico de sociabilidade. Essa em que os bens circulam de determinada maneira; na qual é preciso trabalhar em troca de salário para ter acesso ao alimento. Essa em que o casamento é a união de um homem e de uma mulher, e todo o sistema de posse e propriedade se estrutura a partir dessa binariedade. Essa em que os animais são objetos de posse, fruição e consumo. Essa, na qual a natureza é commodity. Essa, em que o mercado assume a condição de um ente, capaz de ficar nervoso, tensionar e exigir que o governo anuncie com brevidade o ajuste fiscal, sob a ameaça de uma fúria materializada pelo aumento do dólar. É para manter essa forma tão absurda quanto naturalizada de sociedade que o direito existe.
Tradição que reproduz misoginia e racismo
Nesse contexto, a pergunta de Lenio faz todo o sentido: como romper com uma tradição que reproduz misoginia e racismo, que se estrutura nesses (e em outros) modos de opressão? Certamente não será apenas editando protocolos. Mas, certamente, será também com a edição desses textos. Esse é o ponto: os protocolos são apenas textos, mas têm um caráter simbólico que não pode ser negligenciado. São fissuras no grande muro que o direito cria para barrar o acesso de pessoas negras, pobres, trans aos espaços de trabalho, de estudo e de poder.
Então, talvez não se trate de dar saltos “por cima do ensino e da doutrina”, pois em momento algum as pessoas que trabalharam nesses textos protagonizaram discursos nesse sentido. Ao contrário, elas justamente convocam para o debate. Trazem à luz conceitos que, embora já devessem transitar no senso comum dos estudos acadêmicos, ainda estão longe de serem conhecidos por muitos juristas. Provocam a possibilidade de uma hermenêutica que desvele o compromisso do direito com a sustentação de uma forma de vida em comunidade que está cada vez pior, para um número cada vez maior de pessoas.
É interessante como as percepções podem ser diversas. Eu tenho receios em relação ao que faremos com esses protocolos. Penso que há outras medidas importantes, que precisam ser tomadas, para que tais documentos não se transformem em mais um modo de acomodar consciências, que seguirão negando a ordem constitucional. Mas não os vejo como um problema. Ao contrário, parece-me que esses instrumentos propiciam o importante debate que Lenio também suscita com seu texto. É necessário um ensino jurídico que dê conta da estrutura escravista e colonial que fundamenta nossos institutos, mas também que questione a atuação das cortes de justiça, que depuram as causas judiciais de toda a sua humanidade.
Neutralidade do direito
Os protocolos permitem que professoras, advogadas, juízas, pessoas que lidam com o direito conheçam conceitos básicos e produzam discussões mais profundas sobre o que implica uma ordem jurídica e social fundada na violência, que se direciona contra determinados corpos. Não me parece, portanto, que busquem “despir os magistrados de qualquer viés”. Isso é impossível. Propõem exatamente o contrário: que haja um compromisso por parte de quem julga, para que consigamos finalmente problematizar a falácia da neutralidade do direito. Afinal, o direito nunca foi neutro. Sempre assumiu (e ainda assume) compromisso de classe, de gênero e de raça. Os protocolos problematizam isso, oportunizando, no mínimo, o desvelamento desse fato, que por tanto tempo ficou (ainda está…) escondido em discursos esterilizados sobre segurança jurídica ou paz social.
É verdade, não há como prescrever a interpretação. Ovídio Baptista já dizia isso, Warat também. Direito é um discurso, que estrutura um determinado tipo de sociedade. Mas é justamente no campo desse discurso que a disputa por outra racionalidade precisa ser feita. Afinal, não é por ingenuidade ou desconhecimento que decisões judiciais relativas à apreensão da mesma quantidade de substância ilícita são caracterizadas como tráfico ou uso, a depender da cor da pele de quem foi autuado e do local em que houve a apreensão. Também não é por ingenuidade ou desconhecimento que se admite 12 horas sem intervalo, quando a Constituição estabelece o máximo de 8h de trabalho por dia, ou que até bem pouco tempo se reconhecia a possibilidade de alegar legítima defesa da honra para justificar um feminicídio.
A interpretação/aplicação do direito é realizada por pessoas que estão imersas em uma sociabilidade, reforçada constantemente por todas as instâncias de convívio (família, escola, trabalho, universidade, redes sociais…). Então, talvez nem seja o caso de seguir pretendendo algum modo de interpretação que finalmente vincule quem atua o direito com determinados valores. Se isso fosse possível, provavelmente já teríamos mais decisões judiciais honrando o texto constitucional. Algo que não acontece, menos por ausência de bem intencionadas teorias, do que pela circunstância objetiva de que o direito é um campo de distribuição e manutenção de poder.
Concordo com Lenio: é difícil (ou ingênuo) imaginar que um juiz racista ou machista vá mudar seu modo de decidir. Mas não é disso que tratam os protocolos. Eles são um convite à leitura, ao conhecimento de outras formas de pensar o direito, à problematização dos efeitos das decisões judiciais sobre a vida das pessoas. E, se forem lidos, comentados, criticados, discutidos em sala de aula, terá valido a pena.
Insisto: não se trata de moralizar juízes ou determinar a forma como devem julgar. Trata-se de discutir questões estruturais que já determinam as regras do jogo, no campo judicial, administrativo e legislativo. Trata-se de tocar em feridas históricas que são razões não ditas para a manutenção de práticas, a adoção de decisões e a edição de leis que dividem e interditam os espaços em que podem existir os diferentes corpos.
Transformação social
Não sei dizer qual o objetivo do CNJ com essas iniciativas. Aliás, já manifestei minha inconformidade com a ausência de compromisso radical com pautas que efetivamente podem conduzir a uma transformação social mais profunda. Se os mesmos sujeitos que fomentam a criação de protocolos seguem proferindo decisões que reforçam práticas opressivas, não há como crer que pretendam efetivamente um novo modo de compreender a realidade. É possível, inclusive, que apenas estejam surfando na onda de temas que, por não poderem mais ser invisibilizados, mobilizam tanta gente.
Esse risco, porém, não invalida a iniciativa.
A crítica proposta no texto com o qual estou dialogando é prova disso.
É interessante que um jurista como Lenio reconheça nos protocolos a força para estabelecer uma inovação na filosofia da linguagem ou na hermenêutica jurídica. Ou, pelo menos, a pretensão de promover tais inovações. Se ele tiver razão, essas iniciativas são ainda mais promissoras do que em princípio podem parecer. Não tenho essa mesma impressão. Se forem usados para condenar pessoas, perderemos uma grande oportunidade, e todo o esforço terá sido em vão.
Esse é um risco real e seu alerta é da maior importância. Mas, se forem mobilizados para colocar em pauta o racismo estrutural e a misoginia, compreendendo-os juntamente com a questão social (de classe, se quisermos permanecer na tríade mais disseminada entre o pensamento crítico atual) já teremos espaço para mudanças importantes. Ainda assim, não se trata de alterar a filosofia da linguagem ou a hermenêutica jurídica, mas de problematizá-las, trazendo para o campo crítico questões que até hoje foram violentamente silenciadas.
Protocolos não conferem sentido às normas. Eles não têm, realmente, a possibilidade de evitar um julgamento discricionário. Nem as súmulas vinculantes conseguem tal façanha, basta observar o texto da Súmula Vinculante 04 e o que se faz dele na prática. Técnica alguma, até hoje, revelou-se suficiente para isso. A questão é que esse talvez não seja o problema. Afinal, quem pretende o controle subjetivo das decisões não edita protocolo; edita súmula vinculante ou textos legais, estabelecendo o que é e o que não é fundamentação de sentença.
Editar um protocolo para julgamento com perspectiva racial ou de gênero é ocupar o campo de disputa que é o cenário jurídico. É problematizar a diferença de renda, de acesso, de direitos, das diferentes pessoas. Em outras palavras, é propor o reconhecimento de perspectivas de raciocínio acerca dos fatos, que deem conta da realidade racial, de classe e de gênero, desvelando os compromissos que o Direito assume (sem reconhecer que o faz), para então aplicar as regras do jogo com menos ingenuidade, tensionando essa estrutura social opressiva.
Portanto, os protocolos não reforçam necessariamente a falácia da cientificidade do direito (embora possam ser usados desse modo e, então, perderem seu sentido crítico). Ao contrário do que sugere Lenio, parece-me que a provocação é para que outra lente possa ser acrescentada ao olhar de quem interpreta/aplica as regras do jogo. As lentes do garantismo (assim como aquelas da proteção trabalhista) não são incompatíveis com essas.
Todas elas têm um mesmo pressuposto: desprender-se do sujeito (abstrato, universal, mas sempre possível de ser imaginado — com raça, gênero, sexualidade e, especialmente, propriedade) e considerar as estruturas, onde existem pessoas reais, com sofrimentos reais. Trazer para o discurso jurídico classe, raça, gênero, sexualidade, capacidade é pouco, se disso não resultar um outro ensino, um outro modo de selecionar pessoas para exercer o cargo de juízas ou procuradoras; se não resultar, sobretudo, uma profunda crítica ao modelo de sociedade que o Direito sustenta.
Não se trata então, de incentivar o subjetivismo, mas de contestá-lo.
Lembrando novamente a literatura de Warat, os protocolos podem ser uma ótima oportunidade para que a ciência jurídica consiga finalmente, separada (e livre) de seus dois maridos, assumir uma postura mais transgressora, exercendo seu desejo por uma sociedade diversa: negra, feminina e plural.
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