Julgamentos sob perspectiva: análise sobre armadilhas citadas por Lenio Streck
19 de dezembro de 2024, 7h02
No último dia 5 de dezembro, o professor Lenio Luiz Streck publicou um artigo sobre as recentes iniciativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de criação de protocolos de “julgamentos em perspectiva”. Ele se refere ao protocolo para julgamento com perspectiva racial [1] e ao de perspectiva de gênero [2].
O objetivo do texto foi contribuir com reflexões críticas sobre a melhor forma de se garantir a proteção a grupos vulneráveis. Para isso, ele se propõe a lançar luz aos riscos — ou armadilhas — não considerados pelos movimentos e agentes ligados a tais iniciativas. O autor reconhece a relevância de tais propostas do CNJ e se posiciona como um aliado.
Um dos riscos apontados seria o de reforçar um papel de protagonista ao Poder Judiciário em processos de desconstrução de padrões sociais e institucionais discriminatórios, a despeito das necessárias mudanças no ensino jurídico e na doutrina. O outro seria o de provocar um “racha na base do garantismo”, eis que os protocolos preconizam que o juízo prévio a ser feito a partir de perspectivas já pré-determinadas pelo CNJ. A perspectiva de gênero, por exemplo, facilitaria ou privilegiaria condenações em ações penais que envolvem mulheres ou pessoas LGBTQIAPN+. Um resultado não calculado seria um incremento na criminalização, sobretudo de pessoas pobres.
Acolhendo as boas intenções nas críticas formuladas pelo professor Lenio e sua condição de aliado nesse debate, meu objetivo aqui não será discutir os protocolos do CNJ, tampouco os riscos apontados por ele. O que pretendo é reagir a algumas interpretações equivocadas presentes em sua argumentação que considero distantes das teorias e epistemologias feministas. Farei isso com o propósito de fortalecer um solo comum de entendimentos a partir dos quais poderíamos, aí sim, debater sobre os protocolos e os limites do Judiciário em lidar com desigualdades.
Gadamer e as epistemologias feministas
O professor Lenio informou que sua leitura sobre os protocolos partiu do horizonte da hermenêutica filosófica gadameriana. Para facilitar nosso diálogo, quero dizer que tal referencial não é incompatível com as epistemologias feministas, ainda que o próprio Gadamer nunca tenha se dedicado em suas reflexões a tratar sobre o feminismo, sempre esteve acompanhado por longas listas de discípulos masculinos e pouco contribuiu para romper com as exclusões filosóficas que têm sido o destino das mulheres na filosofia.
O livro organizado por Lorraine Code, Feminist Interpretations of Hans-Georg Gadamer, publicado em 2003, reúne textos de 16 filósofas sobre as interações possíveis entre Gadamer e as epistemologias feministas. Uma delas é Linda Martin Alcoff. Ela lembra que as epistemologias feministas são baseadas na tradição analítica e emergem em meio ao debate sobre os limites da ciência tradicional, questionando elementos que também foram criticados por Gadamer, tais como a relação sujeito-objeto e o caráter controlador e de dominação dos métodos científicos. Nas palavras de Alcoff, Gadamer pode ter uma filosofia feminista e, mais ainda, algumas de suas posições centrais são originariamente feministas.
Os métodos feministas não sugerem necessariamente a adesão a uma “parafernália” já contestada pelas críticas ao paradigma tradicional de ciência. Temos apostado na percepção de método como justificação, como compromisso ético e como compartilhamento de meios para se conseguir uma abertura do sujeito à alteridade e à autorreflexão. Isso pode ser conhecido, por exemplo, com os estudos de reescritas de decisões judiciais em perspectivas feministas[3]. Acredito que a leitura desses trabalhos possa explicitar que o uso de métodos feministas não se resume, por exemplo, a aplicar penas exemplares a pessoas que violam direitos das mulheres ou de pessoas negras.
Sanha punitivista das ‘minorias políticas’
O enquadramento das demandas de “minorias políticas” como punitivistas não é uma novidade para nós, feministas. Quando a Lei Maria da Penha foi aprovada, por exemplo, o criminólogo Nilo Batista, escreveu o texto: “Só Carolina não viu: violência doméstica e políticas criminais no Brasil [4]“. Esse e outros textos produzidos pelo “malestream” da dogmática nacional favoreceram o que eu nomeei de “domesticação da Lei Maria da Penha” [5].
Tal lei, desenhada pelo feminismo brasileiro, reconheceu a violência doméstica não como um tipo penal — como era comum em outros países naquela época — , mas como uma violação de direitos humanos. Por isso, sua tônica foi a de garantia de direitos humanos para as mulheres em situação de violência, por meio de medidas integradas de prevenção, investigação, sanção e reparação.
Nilo Batista acusou as feministas de não terem se dado conta dos perigos de propostas punitivistas da Lei Maria da Penha. Não importa que a lei diga outra coisa, tampouco tentar conhecer se, de fato, as feministas desconsideraram os riscos que “só ele” viu. Naquela época, seu argumento prosperou bastante, até porque a nossa comunidade jurídica parece não ter se dedicado a buscar outras referências bibliográficas que pudessem apresentar versões e visões distintas sobre o tema [6]. Temos um apreço reverencial por nossos cânones jurídicos. Talvez, por isso, alguns deles se sentem confortáveis em escrever sobre tudo, até sobre assuntos dos quais não dominam ou têm pouca experiência.
Perspectiva de gênero é um ponto de vista parcial?
Esse foi o aspecto do texto do professor Lenio que mais me chamou atenção. A percepção que tive foi que ele reproduz uma ideia de senso comum sobre o tema, mas que eu imaginava já não mais ser compartilhada por intelectuais com trajetórias mais robustas como a dele: a ideia de que gênero é um viés, significando uma visão prévia mais favorável às mulheres.
A referência inicial de uma área do direito em que questionamos o sujeito de direito universal foi a trabalhista. Depois disso, tivemos o direito do consumidor. Nos dois casos, a recomendação é, de fato, um ponto de partida em favor da pessoa empregada ou consumidora, dada as desvantagens ou desequilíbrios presumidos na relação jurídica. Todavia, não é isso que se espera com o uso da chamada abordagem de gênero.
A Lei Maria da Penha, por exemplo, ao afirmar que a violência doméstica é baseada no gênero, sugere que tal fenômeno não deve ser interpretado como decorrente de fatores individuais das partes, mas sim como derivado de um contexto social mais amplo. São as múltiplas e interseccionais formas de desigualdades sociais que explicam a prevalência de mulheres como as mais afetadas por esse tipo de violência.
Gênero é uma categoria relacional que nos ajuda a fazer perguntas sobre a forma como construímos socialmente os papéis, lugares e identidades de modo diferenciado e hierarquizado, baseando-se, para isso, na condição dita biológica das pessoas: sermos nomeados como do sexo feminino ou masculino. Esse entendimento é até bastante elementar e reporta a uma tradição de estudos acadêmicos iniciados nos anos 1980 em áreas diversas áreas do conhecimento. No final dos anos 1990, gênero também passou a ser um conceito jurídico, figurando em tratados internacionais de direitos humanos e em leis internas de diversos países.
O mesmo ocorre com o conceito de raça. É uma categoria relacional, um marcador de diferenças sociais que se constroem de modo hierarquizado, constituindo sistemas de opressão, subordinação e/ou dominação. Há uma profusão de estudos referindo-se ao termo como um conceito relevante em diversas áreas. O silêncio sobre o conceito entre intelectuais brancos, inclusive, já foi objeto de análise de autoras como Sueli Carneiro [7].
Como as construções de gênero — e raciais — são sociais, nós as compartilhamos, seja de modo intencional, para se valer de privilégios, ou não. A análise sobre o papel dos estereótipos de gênero e raciais, ou seja, de crenças coletivamente compartilhadas sobre um atributo, uma característica ou um papel de modo generalizado sobre alguns grupos importa para as juristas feministas e antirracistas, porque frequentemente a tomada de decisões judiciais é feita com apoio nessas normas informais de gênero ou raciais, ao invés de se basearem nas regras formais.
As referências teóricas que mais usamos não advêm da neurociência ou da economia comportamental. Interessa-nos os trabalhos que abordam a dimensão social dos estereótipos, eis que consideramos a decisão judicial também como um produto social. Alguns conceitos que dão reforço a essa compreensão da dimensão social dos estereótipos sobre determinados grupos são o de imagem de controle, de Patricia Hill Collins [8], o de ignorância branca, de Charles Mills [9], e o de raciocínio politicamente motivado, de Elizabeth Anderson [10].
A resposta contra os estereótipos de gênero ou raciais em decisões judiciais, na literatura feminista e nos estudos raciais, passa pela construção de mecanismos que reforcem, por exemplo, os processos de formação e de capacitação de profissionais do direito. A aposta na formação jurídica está expressa, por exemplo, na Lei Maria da Penha, que estabelece a inclusão, como conteúdos curriculares em todos os níveis de ensino, os temas de gênero, relações étnico-raciais, direitos humanos e violência doméstica. Ela também preconiza a capacitação permanente de agentes do sistema de justiça e de segurança pública nesses mesmos temas.
Cadê a preocupação com os pobres?
Outro aspecto equivocado no texto do professor Lenio se refere à questão da desconsideração da dimensão de classe ou da pobreza nos estudos feministas e antirracistas. Esse argumento também não é muito original. Há tempos que os movimentos feministas e movimentos negro e antirracistas são enquadrados sob o rótulo de identitários ou de grupos que se importam exclusivamente com interesses de minorias políticas, desconsiderando o fator mais estrutural de todas as desigualdades, a classe social.
Eu sinceramente não consigo saber para quais movimentos sociais brasileiros de mulheres e de pessoas negras nossos colegas estão olhando quando afirmam algo desse tipo. Será que confundem os movimentos que emergiram nas ruas, desde anos 1970, em defesa da anistia ampla e irrestrita, da carestia, do direito a creches, do direito ao ensino público gratuito e universal, do direito à saúde pública e universal, em favor da reforma agrária, em defesa das ações afirmativas na educação e assim por diante com reuniões de empresárias ou artistas globais entusiastas do feminino empoderado? Qual a figura que representa as feministas para as pessoas que fazem afirmações desse tipo? Emma Watson?
Bem, o professor chega a citar as teorias interseccionais. Minha sugestão é que os estudos de pessoas interessadas em pensar a relação dos feminismos e a crítica racial com a questão da pobreza ou da classe social comecem por aí, pela interseccionalidade, eis que as autoras ligadas a essa vertente deixam mais explícita a necessária articulação entre, ao menos, três categorias — raça, classe e gênero — para abordar qualquer tipo de desigualdade ou discriminação social.
Questão da imparcialidade
Um último aspecto que gostaria de apontar diz respeito às associações feitas entre os protocolos e a quebra da imparcialidade ou a queda em subjetivismos. Isso eu considero equívocos menos triviais, ao ponto de ter me dedicado a escrever sobre esses temas em minha recente tese que submeti ao concurso de titularidade na USP (Universidade de São Paulo). O trabalho foi publicado com o título “Imparcialidade judicial e a crítica feminista”.
Argumento que o distanciamento preconizado por perspectivas mais tradicionais sobre a imparcialidade judicial é hoje, à luz de uma série de vertentes filosóficas, incluindo as feministas, uma impossibilidade. Partindo dessa perspectiva, a imparcialidade deve ser um conjunto de critérios ou métodos voltados a favorecer a constante autorreflexão das pessoas tomadoras de decisão acerca da sua posicionalidade. As teorias feministas, não prejudicam nem comprometem o ideal de imparcialidade, mas sim têm se caracterizado pelo empenho em construir modelos que possam operacionalizar um juízo imparcial.
Para finalizar, antecipo a maneira como percebo o papel dos protocolos de perspectivas, sem entrar propriamente no debate crítico sobre tais documentos. Penso que o CNJ não está inovando tanto assim no direito, tampouco na filosofia da linguagem. Os protocolos oferecem um apanhado muito breve de conceitos para um público de profissionais que, em sua maioria, se formou em direito quando os conceitos de gênero e de raça não eram, ainda, tão determinantes nos estudos sobre igualdade, desigualdade e discriminação; quando a ideia de controle de convencionalidade não fazia parte dos manuais jurídicos e quando o próprio direito estudado era discriminatório em sua textualidade.
Protocolos assim existem em inúmeros países de diversos continentes. Eles são comuns em áreas de gestão de políticas públicas, referindo-se a documentos que apresentam modelos de condutas baseados em melhores práticas e em evidências científicas, favorecendo, assim, uma padronização mínima na prestação de serviços públicos.
No caso dos “protocolos de perspectivas”, eles oferecem ferramentas para bem aplicar o direito formal, evitando o uso de regras informais do patriarcado ou de modelos escravocratas na tomada de decisão, ou melhor, recursos para evitarmos uma espécie de terraplanismo jurídico. Se eles contemplam adequadamente as epistemologias feministas e antirracistas, ou se estão bem “calibrados” para as funções a que se propõem são questões que adoraria discutir, a partir de um terreno comum que espero ter ajudado a construir.
[1] Ver: Recomendação CNJ nº 128/2022.
[2] Ver: Ato Normativo CNJ nº 0007307-92.2024.2.00.0000.
[3] Sobre o livro, ver: Severi, Fabiana Cristina (Org.). Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Ribeirão Preto: FDRP, 2022.
[4] Ver em: Mello, Adriana Ramos (org.). Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[5] Severi, Fabiana Cristina. Lei Maria da Penha e o Projeto jurídico feminista brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
[6] Em 2011, a Professora Carmen Hein Campos organizou o livro Lei Maria da Penha em perspectiva feminista, pela Lumen Juris, que ajuda a entender de modo mais denso todo o histórico para se aprovar a referida lei.
[7] Carneiro, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
[8] Ver: Collins, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
[9] Ver: Mills, C. White Ignorance. In: Sullivan, S.; Tuana, N. Race and Epistemologies of Ignorance. New York: Suny Press, p. 11-38, 2007.
[10] Anderson, Elisabeth. Epistemic Justice as a Virtue of Social Institutions. Social Epistemology, v. 26, n. 2, p. 163–173, 2012.
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