Proteção de usuários de planos coletivos e de portadores de TEA contra rescisões abusivas
18 de dezembro de 2024, 8h00
No primeiro semestre de 2024, os meios de comunicação veicularam notícias sobre a demasiada quantidade de cancelamentos unilaterais de contratos de assistência suplementar à saúde, configurando prática excessivamente leonina [1]. Verificou-se que muitos desfazimentos potestativos ocorreram em prejuízo dos portadores do Transtorno do Espectro Autista (TEA) e dos beneficiários de planos coletivos. As arbitrariedades cometidas conduziram o poder legiferante, no âmbito federal, a realizar reunião sobre o problema e a retomar as discussões em derredor do Projeto de Lei nº 7.419/2006 [2], que se arrasta, de modo moroso, dada a forte pressão do mercado [3]. A Agência Nacional de Saúde Suplementar, diante da gravidade das ocorrências, emitiu nota sobre as regras vigentes correlacionadas com a rescisão contratual e a abrupta retirada de consumidores, mas não adotou postura enérgica e combativa [4].
Inexistem normas proibitivas para a rescisão unilateral dos contratos coletivos de assistência suplementar à saúde, pois o artigo 13, parágrafo único, I a III, da Lei nº 9.656/98, somente aplica-se aos liames individuais/familiares [5]. Dispõe o artigo 14, da Resolução Normativa nº 557/2022, que os planos coletivos podem ser rescindidos: 1) após a vigência do período de 12 meses, imotivadamente e mediante prévia notificação da outra parte com antecedência mínima de 60 dias; 2) antes deste lapsus temporis, quando fundamentada por uma das causas de rescisão previstas no contrato; ou, de forma imotivada quando poderá ser cobrada multa pela outra parte, se estiver prevista no dito instrumento [6]. Não há proteção satisfatória para os beneficiários que são afetados com rotineiras fulminações das relações jurídicas.
Nos contratos coletivos empresariais celebrados por empresário individual (MEI), de acordo com o artigo 14 daquela mesma Resolução, a rescisão poderá ser solicitada: 1) pelo contratante, hipótese em que podem ser exigidos o aviso prévio e a cobrança de multa, caso prevista em sede contratual; 2) pela operadora na data de seu aniversário, mediante comunicação prévia, com antecedência mínima de 60 dias, devendo ser apresentadas as razões da rescisão no ato da comunicação; ou 3) ou antes deste marco temporal diante de ilegitimidade do aderente ou de inadimplência. Reitera-se a mesma observação supra sobre a ampla margem de arbítrio para as empresas do setor que podem, de forma abusiva, na data em que o plano foi firmado, eliminá-lo, fincando-se em argumentos esdrúxulos.
As rescisões vexatórias dos planos de saúde coletivos assomam-se no aparato jurisdicional e foram alcançando a mais alta corte, como se nota nos Recursos Especiais 1.842.751/RS e 1.846.123/SP, resultando no Tema 1.082. O Superior Tribunal de Justiça reconhece “o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo”, porém, determina que a operadora deverá “assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física”. Assevera o STJ que a empresa terá que manter o vínculo “até a efetiva alta”, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida [7]. O Projeto de Lei nº 7.914/2006 propõe alterar o artigo 13 da LPS para coibir o cancelamento potestativo quanto a todo e qualquer plano de saúde [8][9]. Seguindo esta mesma linha de intelecção, o PL nº 2.094/2024 reitera esta proibição e estatui que as infrações podem resultar em sanções, multas, suspensão e indenizações [10].
No primeiro semestre de 2024, detectou-se elevada quantidade de cancelamentos arbitrários de contratos, cujos beneficiários são portadores do Transtorno do Espectro Autista [11]. Em decorrência desta problemática, foram propostas 6 ações civis públicas e uma ação coletiva ordinária e, no Conflito de Competência nº 206.082, o Superior Tribunal de Justiça fixou, como prevento, o Juízo Federal da 27ª Vara do Rio de Janeiro [12]. A Secretaria Nacional do Consumidor expediu a Nota Técnica nº 2/2024, a respeito das rescisões unilaterais efetivadas pelas operadoras, e notificou 17 empresas do ramo e 4 associações que as congregam. A Agência Nacional de Saúde Suplementar emitiu pronunciamento sobre a situação e aduziu que “se mantém atenta às necessidades e aos anseios de todos os beneficiários da saúde suplementar” [13].
Entretanto, a ANS não vem cumprindo, de modo satisfatório, o seu poder fiscalizatório e punitivo perante os inadmissíveis cancelamentos dos planos de saúde manejados pelas operadoras, causando gravíssimos prejuízos para os portadores do Transtorno de Espectro Autista. No mencionado posicionamento, a autarquia apresentou um breve histórico sobre as suas ações em relação ao TEA, mas não empreendeu providências quantos aos fatos acima reportados. Registrou que, em 2021, fora publicada a RN nº 469/2021, que beneficiou todos os portadores de Transtornos Globais de Desenvolvimento (CID F84), visto que garantiu o acesso a número ilimitado de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Aponta a agência que a RN n.º 539/2022 determinou a obrigatoriedade de cobertura para quaisquer técnicas ou métodos, indicados pelo médico assistente, para o tratamento de pacientes com TGD, englobando o Applied Behavior Analysis (ABA), Denver e a Integração sensorial [14].
Em adendo, a ANS argumentou que, em outubro de 2023, fora realizada audiência pública com objetivo de debater sobre a matéria, contando com a participação de “todos os atores do setor, assistência aos beneficiários da saúde suplementar com TGD e especialmente aqueles com TEA”. Apesar desta alegação, não se tem ciência se o espaço foi, realmente, aberto para entidades representativas dos consumidores ou destinado a receber os apelos dos agentes econômicos, que não aceitam arcar com os custos necessários aos tratamentos destes beneficiários. A própria autarquia assevera que, dentre as ações propostas, encontra-se “o monitoramento contínuo da evolução da utilização dos serviços prestados” e a inclusão de uma seção temática no Mapa Assistencial da Saúde Suplementar. Ora, ao que parece, desde 2023, as operadoras já estavam questionando os altos custos, culminando com os injustos cancelamentos em 2024 [15].
Projeto de Lei nº 1.368/2024
As rescisões unilaterais de contratos de assistência suplementar à saúde, máxime dos portadores de TEA, impulsionaram o lançamento do Projeto de Lei nº 1.368/2024 com o empenho de modificar a Lei nº 9.656/98, para impedir tal prática lesiva ante determinadas situações. A essência da proposta vindica o acréscimo de regra, na LPS, proibindo o cancelamento injustificado de vínculos, cujos beneficiários sejam pessoas com deficiência, idosos e portadores de doenças graves [16]. São usuários hipervulneráveis que, em razão da sua fragilidade aguçada, merecem tratamento digno e não discriminatório, nos termos do artigo 39, inciso IV, do microssistema consumerista [17]. As operadoras não se preocupam com a condição destes seres humanos – que dependem da prestação dos serviços para a sua sobrevivência – e, pautadas na lógica capitalista do lucro em primeiro plano, fulminam os vínculos contratuais, desconsiderando-se os efeitos nefastos.
Por derradeiro, cabe a todos os entes encarregados da defesa dos consumidores o acompanhamento dos Projetos de Lei 2.094/2024, 1.670/2024 e 1.368/2024, visto que tratam do gravíssimo problema da rescisão potestativa dos contratos de assistência suplementar à saúde. O primeiro PL destina a vedá-la para todos os planos de saúde; o segundo estabelece que, em caso de inadimplência, esta deverá ser superior a 90 dias, após a notificação do beneficiário para pagamento; e o terceiro almeja proibir a fulminação de vínculos, cujos beneficiários sejam pessoas com deficiência, idosos e portadores de doenças graves. Conclui-se no sentido de que o SNDC deve defender o acolhimento dos prospectos legislativos em curso, competindo-lhe também pugnar que a ANS fiscalize, a contento, as empresas do setor, não admitido que a “captura” [18] seja fator que fragilize a proteção dos usuários.
As operadoras de planos de saúde, no decorrer de quase duas décadas de tramitação do Projeto de Lei nº 7.419/206, que acopla uma vasta gama de outras propostas normativas, vêm exercendo pressões, para que não seja aprovado. A Federação Nacional de Saúde Suplementar, em nota, argumentou que teme “pela adoção de mudanças que desconsiderem o panorama de maneira mais ampla”, colocando “em risco a sobrevivência da saúde privada no país”. Sustenta “a construção de soluções equilibradas e que não inviabilize a atuação das operadoras” [19], porém, de acordo com a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar, as empresas do ramo, ao cabo do ano 2023, obtiveram lucro de R$ 3 bilhões [20]. A Folha de S.Paulo publicou matéria anunciando que, no primeiro trimestre de 2024, angariaram resultados positivos líquidos no patamar de R$ 3,1 bilhões; dados que certificam a falta de coerência das alegações da FenaSaúde com o plano fático [21].
Evitar e prevenir as práticas abusivas na assistência suplementar vindicam efetiva atuação da autarquia reguladora, por isso o multicitado PL aventa a alteração do artigo 27 da Lei nº 9.656/98. A sanção pecuniária, atualmente restrita ao patamar máximo de 1 mil, poderá ser fixada em valor maior, mantendo-se a regra de que não poderá ser inferior a R$ 5 mil. Quanto aos planos odontológicos, não deverá ser menor que R$ 1 mil, inexistindo montante máximo. É uma sugestão promissora e relevante, mas se não houver a satisfatória fiscalização por parte da ANS, não conseguirá reverter o atual quadro em que as violações são frequentes. Como alertava George Stigler, desde 1971, ao elaborar uma teoria de oferta da regulação, as agências reguladoras são submetidas à “captura” pelos empreendedores [22].
[1] Cf.: SCOFIELD, Laura. Projeto de lei pode ser votado após onda de reclamações sobre cancelamentos unilaterais, ameaça de CPI e acordo com presidente da Câmara. Nexo Jornal, 08 de agosto de 2024, às 20h27. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/externo/2024/08/08/pl-dos-planos-de-saude-congresso-lobby. Acesso em: 20 set. 2024.
[2] CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 7419/2006. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=332450. Acesso em: 15 set. 2024.
[3] FELIX, Paula. Entenda as mudanças propostas pelo PL dos Planos de Saúde. Em tramitação há 17 anos, projeto prevê proibição da ruptura unilateral do contrato e padronização dos reajustes; advogado comenta principais pontos. Revista Veja, 13 set 2023, 19h30. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/entenda-as-mudancas-propostas-pelo-pl-dos-planos-de-saude. Acesso em: 19 set. 2024.
[4] AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Nota da ANS sobre cancelamento e rescisão de contratos. 11/06/2024, 11:06. Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/beneficiario/nota-da-ans-sobre-cancelamento-e-rescisao-de-contratos 3/5
[5] Tratam do tema: RIBEIRO, Victor Pacheco Merhi. Da ilegalidade da rescisão unilateral imotivada do plano de saúde coletivo. Revista Consultor Jurídico, Opinião, São Paulo, 10 de junho de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-10/da-ilegalidade-da-rescisao-unilateral-imotivada-do-plano-de-saude-coletivo/. LUCCHESI, Danilo. As cláusulas nulas e abusivas nos contratos coletivos empresariais estipuladas em favor das operadoras de plano de saúde. Migalhas, 23/09/2024, 17:43. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/415108/clausulas-nulas-e-abusivas-em-favor-das-operadoras-de-plano-de-saude. Acesso em: 5 out. 2024.
[6] Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/ans/2022/res0557_30_12_2022.html. Acesso em: 20 ago. 2024.
[7] https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/tema_inicial=1082&cod_tema_final=1082. Acesso em: 15 set. 2024.
[8] Cf.: RODRIGUES, Mariana. Fim da suspensão de planos de saúde: entenda Lei em tramitação na Câmara. UOL, São Paulo, 15/06/2024. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/06/15/fim-suspensao-planos-de-saude-proposta-tramitacao.htm. Acesso em: 15 set. 2024.
[9] Manifestou-se pela aprovação, no mérito, dos seguintes projetos de lei: 6.067/2013; 1.039/ 2015; 5.286/2016; 8.942/2017; 9.537/2018; 2.485/2019; 5.332/2019; 2.286/2020; e 394/2021. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 7419/2006. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=332450. Acesso em: 15 set. 2024.
[10] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacaoPL%202094. Acesso em: 15 set. 2024.
[11] Cf. : BLEULER, Eugen. Lehrbuch der Psychiatrie. Springer-Verlag Berlin Heidelberg GMBH, 1955, p. 55-65.
[12] CONJUR, STJ manda Vara Federal do RJ unificar decisões urgentes contra planos de saúde https://www.conjur.com.br/2024-jul-03/vara-federal-no-rj-decidira-medidas-urgentes-em-acoes-coletivas-suspensas-que-contestam-exclusoes-de-beneficiarios/ ¼. 12/07/2024, 17:05.
[13] Cf.: AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Nota da ANS sobre cancelamento e rescisão de contratos. Confira as regras para cada tipo de contratação de plano de saúde. 20/05/2024 11h58. Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/beneficiario/nota-da-ans-sobre-cancelamento-e-rescisao-de-contratos. Acesso em: 18 ago. 2024.
[14] Ibidem, idem.
[15] Cf.: AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Nota da ANS sobre cancelamento e rescisão de contratos. Confira as regras para cada tipo de contratação de plano de saúde. 20/05/2024 11h58. Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/beneficiario/nota-da-ans-sobre-cancelamento-e-rescisao-de-contratos. Acesso em: 18 ago. 2024.
[16] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao. PL%201368. Acesso em: 18 ago. 2024.
[17] Cf.: DÍAZ-AMBRONA, M. D. H. (2016). Consumidor vulnerable. Madrid: Reus, 23-25. MARQUES, Cláudia Lima.; MIRAGEM, Bruno. O Novo Direito Privado e a Proteção dos Vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 55-75.
[18] Cf. : STIGLER, G. J. The Citizen and the State: essay on regulation. Chicago: University of Chicago Press, 1975, p. 67-87.
[19] MACHADO, Rafael. Sob apreensão das operadoras, nova versão do PL dos planos de saúde deve sair até 7 de junho. Disponível em: https://futurodasaude.com.br/pl-dos-planos-de-saude/. Acesso em: 19 ago. 2024.
[20] Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/numeros-do-setor/ans-divulga-dados-economico-financeiros-relativos-ao-4o-tri. Acesso em: 20 ago. 2024.
[21] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/06/planos-de-saude-lucram-r-33-bilhoes-no-1o-trimestre-alta-de-343. Acesso em 20 set. 2024.
[22] STIGLER, G. J. The Citizen and the State: essay on regulation. Chicago: University of Chicago Press, 1975, p. 67-87.
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