Castração química: entre a verdade e a mentira
18 de dezembro de 2024, 9h24
Foi um escândalo. Hillary Clinton e outros dirigentes do Partido Democrata norte-americano eram partes de uma organização criminosa de pedófilos, que estuprava crianças no porão de uma pizzaria em Washington. A origem do boato eram e-mails interceptados ilegalmente publicados pela Wikileakes, um site dedicado a publicar segredos políticos.
Quando os e-mails do Comitê Democrata vieram a público, foram examinados em busca de sinais que identificassem as atividades desta organização de pedófilos. Como nada existia, os conteúdos passaram a ser interpretados em busca de sinais ocultos. Foi então que usando redes anônimas, passou-se a interpretar “cheese pizza” (pizza de queijo) como um código para child pornography (pornografia infantil), “pizza” seria uma menina, “hot-dog” um menino, “sauce” (molho) seria orgia.
A “Comet Ping Pong” surgiu como o alvo da acusação. A primeira razão era que seu proprietário, James Alefantis, era um apoiador de Hillary Clinton, inclusive na arrecadação de fundos para a campanha. Depois, era um restaurante frequentado por Tony Podesta, um lobista, irmão de John Podesta. Vieram ainda outras interpretações não menos enganosas, tais como a capa do menu com figuras pintadas que seriam em verdade símbolos ocultos de um grupo de pedófilos (ninguém perguntou porque um grupo tão secreto exporia símbolos em cardápios), isto sem falar em fotos tiradas no restaurante, frequentado por famílias e jovens, de modo que é natural que suas fotografias refletissem a frequência do restaurante.
Também aqui ninguém perguntou por qual razão os secretivos pedófilos fariam questão de se expor desta maneira. Foi exatamente por conta de estímulos da internet que Edgar Welch se dirigiu até Washington levando consigo duas pistolas e um rifle AR-15. Ele procurou e achou a Comet, saiu com o rifle em punho e rendeu um dos funcionários exigindo que lhe mostrasse o porão onde as crianças vítimas de pedofilia estariam presas. O funcionário conseguiu fugir correndo, e Welch disparou o rifle, felizmente sem atingi-lo. Com o barulho do disparo, os clientes saíram correndo do restaurante e deixaram Welch sem ação. Enquanto ficava atordoado com a fuga dos clientes, o funcionário que conseguiu fugir acionou a polícia. Enquanto isto, Welch ficou isolado no salão do restaurante e passou a procurar o porão.
Não durou muito, a polícia chegou em minutos e ele foi desarmado e preso. O restaurante já havia sido investigado pela polícia local e por jornalistas. E nada havia por lá, nunca houve. Foi condenado a quatro anos de prisão. A existência de grupos que exploram menores sexualmente faz parte de uma mitologia ligada à extrema-direita. Fato é que não existe nenhuma evidência ou indício que comprove a existência desta suposta organização. No Brasil, não há referência direta ou indireta a conduta desta natureza.
Relação de oportunidade e convivência íntima
Os casos de pedofilia envolvendo fotografias pela internet derivam da gravação de fotografias de menores extraídas de redes de internet, especialmente no que se chama de deepweb. Mas não há registro de caso em que no Brasil tenha sido identificada organização ou indivíduo que explore menores com intenção de difundir este tipo de conduta entre um grupo ou outros indivíduos.
A imensa maioria dos crimes sexuais envolvendo menores e, empiricamente, podemos verificar ser quase a totalidade, envolve relações de parentesco, geralmente entre padrasto e enteado ou enteadas. Ou seja, o que prevalece é a chamada relação de oportunidade, a chance dada pela convivência íntima e que permite a ação do predador sexual.
Nestes casos, a pena aplicada é dura, raramente inferior a dez anos de reclusão, em regime obrigatoriamente fechado. Mesmo assim, já vimos casos de reincidência, o que seria a exceção dentro da exceção. Nestas hipóteses, contudo, a replicação se deu dentro do mesmo método, ou seja, a facilidade provocada pela convivência íntima. Existe apenas um único grande caso de pedofilia nestes termos registrado no Brasil: a prisão do médico Eugênio Chipkevitch, condenado por mais e 40 crimes semelhantes e condenado ao cumprimento de 114 anos de reclusão. Ao que consta ainda preso.
Efeito duvidoso da castração
Pois bem, a efetividade da castração química nestes casos é, no máximo, duvidosa. De primeiro porque não poderia ser aplicada enquanto no cumprimento da pena, até porque, estando preso, não teria a possibilidade de praticar este tipo de crime. Cumpre lembrar que no sistema prisional condenados por crimes sexuais são mantidos em presídio à parte dada a impossibilidade de convivência com a população carcerária, que vê este tipo de crime como intolerável, matando quem cai em suas mãos.
Como as penas são longas, o efeito seria zero. Antes que qualquer jejuno lembre que a castração química possa ser aplicada após a obtenção da liberdade pelo criminoso, forçoso reconhecer que a flexibilização da pena exige o prognóstico de que o condenado não volte a delinquir, se este prognóstico for positivo para flexibilizar a pena. Por lógica, a castração química seria inexigível. Caso contrário, havendo prognose desfavorável, deveria o condenado ser mantido em cárcere.
Por outro lado, supondo que o condenado seja acometido de doença mental, obsessão sexual por crianças, por exemplo, a hipótese não é de soltura, mas de aplicação de medida de segurança, devendo o condenado permanecer internado em hospital psiquiátrico e, neste caso, também, inviável a castração química dada a contenção aplicada. Na prática, portanto, a castração química seria inaplicável porque é incompatível com a sistemática penal existente. Ou o condenado não tem condições de sair e deve permanecer contido, ou está em parte ao menos recuperado e a castração é inútil ou desaconselhável.
No Brasil, medida é inconstitucional
Mas isto é apenas uma observação prática. Tal pena jamais será aplicada no Brasil, simplesmente porque é inconstitucional. O artigo 5º inc. XLVI (enumera as penas passíveis de serem aplicadas), XLVII (proíbe penas cruéis) e XLIX (garante a integridade física e moral dos presos) da Constituição proíbe as penas corporais. É a mesma proibição que impede que alguém seja condenado a chibatadas ou tenha uma mão decepada, fato não incomum em outras civilizações.
O fato de ser química não impede que tenha efeito corpóreo, o qual, aliás, é justamente a causa de sua aplicação. Este tipo de previsão nos faz retornar a épocas primitivas, onde as penas corporais eram as mais aplicadas. Lembra, também, a Inquisição Espanhola, de triste memória. Também faz ressurgir a história do inglês Allan Turing, que venceu a criptografia nazista das máquinas Enigma, o que foi um fator decisivo na vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial Ele era homossexual, o que na época era considerado crime, e foi submetido a castração química, o que o levou ao suicídio. Foi perdoado décadas depois de sua morte e agora seu retrato estampa as notas de 50 libras na Inglaterra.
Manipulação ideológica
Resta a questão, de entender por qual motivo uma legislação cuja aplicação é no máximo duvidosa, sem efeitos práticos visíveis, sem impacto criminal, claramente inconstitucional, é objeto de discussão. Pasma, até, que jornalistas de conceituados órgãos de comunicação cogitem da eficácia da prática. O que nos apresenta é que o pano de fundo desta discussão é o mesmo que motivou o episódio que deu início a este artigo: uma questão política cujo objeto é gerar engajamento e apoio político em defesa de posicionamentos supostamente conservadores, em verdade extremistas, manipulando elementos emocionais, notadamente a natural inclinação de proteção a menores e a moral sexual, um tabu conservador sempre em destaque.
A arregimentação emocional de seguidores para formar bases favoráveis a outros compromissos ou comprometimentos políticos. O direito não deve ser visto como uma ferramenta de manipulação ideológica. Ninguém ignora que o processo legislativo é essencialmente político e que a política reflete, também, a ideologia. Mas a Constituição está aí para delimitar fronteiras e conteúdo, extrapolar os marcos constitucionais leva a intervenção judicial, especialmente, nesse caso, do Supremo Tribunal Federal. Depois que não se reclame de ingerência de poderes.
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