Opinião

Autodeterminação informativa e direito a defender direitos humanos no sistema interamericano

Autor

  • é advogado doutorando em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e integrante do grupo de Estudos e Pesquisa em Direitos Fundamentais e do grupo de Estudos Proteção de Dados no Estado democrático de Direito Inteligência Artificial e Direito.

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18 de dezembro de 2024, 20h56

No último dia 10 de dezembro de 2024, foi lembrado e comemorado o Dia dos Direitos Humanos. Pela ocasião, o atual secretário-geral da ONU, António Guterres, manifestou, categoricamente: “neste Dia dos Direitos Humanos, enfrentamos uma dura verdade: os direitos humanos estão sob ataque” [1].

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, assinada em Bogotá, Colômbia, antecipando a Declaração Internacional de 1948, assim determinou: “que os povos americanos dignificaram a pessoa humana e que suas constituições nacionais reconhecem que as instituições jurídicas e políticas, que regem a vida em sociedade, têm como finalidade principal a proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam progredir espiritual e materialmente e alcançar a felicidade”.

Este breve texto situa-se neste discurso e visa, ao mesmo tempo, recobrar e participar, como um movimento textual abrangente, do recrudescimento do Direito dos Direitos Humanos para a era digital, apresentando um breve comentário sobre o (infeliz) caso Miembros de la Corporación Colective de Abogados José Alvear Restrepo, no qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), para além de outras nuances normativas, reconheceu a autodeterminação informativa como parte estruturante e integrante do direito de se defender os direitos humanos.

1. Caso Miembros de la Corporación Colectivo de Abogados ‘José Alvear Restrepo’ vs. Colombia

Em sentença pronunciada em 18 de outubro de 2023, envolta ao caso Miembros de la Corporación Colectivo de Abogados “José Alvear Restrepo” Vs. Colombia, julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a República de Colômbia foi declarada internacionalmente responsável pela violação a direitos humanos, em razão de atos cometidos em face de diferentes membros da Corporación Colectivo de Abogados “José Alvear Restrepo” (Cajar), associação de ativistas, e seus familiares. Trata-se de um caso importantíssimo para o Direito Interamericano dos Direitos Humanos, em que, mais uma vez, se expôs as dificuldades de se defender os direitos humanos no continente.

Na oportunidade, a CIDH reconheceu que, desde a década de 1990, com altercações circunstanciais a partir 2005, as agências e agentes estatais do Estado Colombiano criaram sistematicamente atividades de vigilância e inteligência arbitrárias em prejuízo das vítimas. Reconheceu-se que as vítimas foram objeto de distintas formas de violências, com hostilização e intimidação, havendo ponderações judiciais de gênero, quanto à vulnerabilidade das ativistas mães.

Decidiu-se também que o Estado colombiano e seus agentes interviram diretamente para que as ações fossem perpetradas. Reconheceu-se a criação de ambiente duradouro, em que o Estado concebeu e ratificou continuamente uma atmosfera de constantes riscos para a vida e a integridade pessoal das vítimas, “en cuanto facilitó a organizaciones paramilitares información personal de estas últimas, obtenida con motivo de las labores de inteligencia desarrolladas. A ello se sumó un escenario de impunidad ante la falta de investigación de los hechos de violencia, amenazas y hostigamientos”.

Spacca

No pronunciamento judicial, a CIDH declarou que a Colômbia violou os direitos à vida, à integridade pessoal, à vida privada, à liberdade de pensamento e expressão, à autodeterminação informativa, a conhecer a verdade, à honra, às garantias judiciais, à proteção judicial, à liberdade de associação, à circulação e residência, à proteção da família, além dos direitos das crianças e o direito a defender os direitos humanos, bem como a proteção à mulher e o dever de se abster-se de qualquer ação ou prática de violência reconhecida na Convenção de Belém do Pará.

Trata-se de uma síntese da matéria, introdutória ao destaque que se quer dar neste breve texto, eminentemente, quanto à violação à autodeterminação informativa das vítimas, quando de relações de inteligência estatal.

2. Autodeterminação informativa e a defesa dos direitos humanos – um acoplamento normativo imprescindível para a era informacional

Com o caso brevemente comentado, situa-se, para além do reconhecimento da gravidade dos atos estatais, e do sofrimento causado às vítimas, um indício difuso, que se materializa enquanto um recado para todos aqueles que se importam com o Direito dos Direitos Humanos (e Fundamentais), em uma era que se quer digital. As relações digitais-computacionais são caracterizadas em um universo que, antes de enriquecer e criar condições de liberdade, mostra-se duplamente, e majoritariamente, colonizado pelos dois sistemas predominantes na atual sociedade global, nomeadamente, o subsistema da economia e o da política, que se autorreproduzem, muitas vezes em conluio, formal ou informalmente, aumentando os espaços para a perpetuação de domínio, regenerando e expandindo assimetrias, com atos balizados pela força bruta, ou com narrativas, persuasões e manipulações palatáveis.

A esfera informacional e digital se transformou em um instrumento generalizável, redesignando antigas formas de arbitrariedade e violência, perpetuadas seja pelo Estado, ou por empreendimentos privados, potencializando-se em escala, assimetria e perversidade (Teubner; Golia). Esse status quo digital, que possui seus lados (limitadamente) positivos, que, a propósito, não podem ser ignorados, necessita ser observado com uma lente atenta, estando como alternativa, justamente, os Direitos Humanos, para que o nosso destino digital não seja limitado ao que Spivak anuncia em sua obra temática: “globalization takes place only in capital and data. Everything else is damage control” [2].

A autodeterminação informativa (informationelle Selbstbestimmung [3]), estrutura dogmática cuja gênese encontra-se no ambiente teórico alemão, é um arcabouço conceitual essencial para a disciplina de proteção de dados pessoais e incorpora, na sua gramática jurídica, uma forma de proteção generalizável, antepondo ao sujeito níveis gradativos de estrutura normativa protetiva, objetiva e subjetiva, criando-se formas de reflexividade interna aos contextos sociais de dados, privados e interestatais, cada vez mais assimétricos, em um cenário constituído por informational power assymmetry [4].

Para a hipótese judicial desse texto, a autodeterminação informativa é tratada em um dos ambientes mais delicados: a relação pessoa/cidadão e os serviços de inteligência estatais. A CIDH posicionou-se fortemente a favor da aplicação da dimensão normativa da autodeterminação informativa nestas dimensões relacionais, e correlacionou a relevância dessa espécie arquitetônica da disciplina dogmática de proteção de dados, como coestruturante de um material normativo associado às outras dimensões de direitos humanos, e, notadamente, com o direito de defendê-los.

Nesse específico ângulo, a decisão inaugura uma forma de olhar especial e atualizada, às relações com o Estado, com um cuidado e lente ‘de dados’. Em sua expressão dogmática, incorpora uma força vinculante que transcende (ou deveria fazê-lo) a responsabilização do Estado colombiano, devendo atingir a todos aqueles Estados que vinculam-se à Convenção Interamericana de Direitos Humanos, os quais deverão respeitar a ratio dessa decisão, com eventuais iniciativas legislativas, em casos semelhantes no interior de suas jurisdições nacionais, inclusive realizando controle de convencionalidade de seus diplomas normativos, que não estejam adequados a esse paradigma normativo. Demais disso, serve e servirá como um exemplo a ser transplantado, desenvolvido e aclimatado para outras cortes nacionais e internacionais que, invariavelmente, aproximam-se de casos assemelhados.

A CIDH reconheceu que, as atividades de inteligência estatais, considerando os meios empregados e a incidência do recolhimento de dados, bem como a utilização de informação e de dados pessoais, supõe “uma ingerência na esfera de direitos da pessoa”. Pontuou-se que, as atividades de inteligência, para estarem de acordo com a Convenção, precisam estar com suas atribuições e obrigações anteriormente previstas em lei (aspecto formal), ao lado de serem voltadas a atividades cujo propósito esteja em atingir um fim legítimo, cumprindo com os requisitos de idoneidade, necessidade e proporcionalidade, “necessárias em uma sociedade democrática” (aspecto material).

Foi pontuado, aliás, que, as agências de inteligência colombianas, presentes nas forças militares, na polícia nacional e na ‘DAS’, agiram sem uma base normativa aprovada pelo parlamento, e, portanto, inacessível publicamente, de forma clara e precisa, impedindo o conhecimento da base legal autorizativa do exercício daquelas ações. Ao realizarem o recolhimento de dados e informações das vítimas, criaram um arquivo de inteligência, registrando distintos aspectos pessoais e da vida das vítimas, sem haver uma lei ou uma disposição normativa autorizadora para tanto (mesmo após a Lei 1621 de 2013), e impedindo o acesso, para o conhecimento, retificação, e outras possibilidades jurídicas relacionadas.

A ausência de estruturas fixadas ex ante, de limitações concretas da atividade de inteligência, de forma a “evitar um exercício desmedido e abusivo de suas faculdades”, estando estas não supervisionadas por uma autoridade competente e funcionalmente independente, são um dos pontos centrais destacado na sentença (§ 672).

De modo a que se resguarde uma formatação formal das atividades de inteligência com um cuidado com a autodeterminação informativa e a proteção de dados, a CIDH referiu a certas diretrizes. Sublinha-se, e.g., a necessidade de se instaurar uma regulação destinada a concretização de procedimentos formais, específicos e não abstratos, com os quais seja possível enumerar os processos realizados e os meios utilizados, vinculados às atividades de inteligência desenvolvidas, com o devido registro de todas suas etapas, e o histórico de registro de acesso aos sistemas eletrônicos, se for o caso. Aduziu-se que, estes procedimentos devem ser encaminhados em informes periódicos aos respectivos órgãos controladores independentes.

De forma específica ao processamento de dados pessoais recolhidos por agências de inteligência, prescreveu-se determinados deveres, vinculantes às autoridades responsáveis, para que estas mantenham registros, a serem funcionalizados para que: 1) identifiquem os responsáveis pelo processamento dos dados; 2) os propósitos para que o processamento da informação coletada, indicando a origem e a categoria desses dados; 3) a base legal das operações realizadas; 4) os prazos de conservação; e v) as técnicas utilizadas para o seu tratamento. Em tais procedimentos devem constar os registros cronológicos de acesso, alteração, consulta, eliminação ou divulgação, e a identificação daqueles que os acessaram (§ 673). As trocas de informações entre agências precisam respeitar esses mesmos procedimentos e garantias e, no caso de se realizar determinada técnica de ação de vigilância, em face de pessoas determinadas, com acesso a base de dados e sistemas de informações não públicos, há de se exigir previa autorização judicial (§ 674).

Foi destacado que, em caso de comprovada urgência e necessidade, os organismos de inteligência estariam autorizados a monitorar “o espectro electromagnético”, em outros termos, das comunicações, de uma forma imediata, embora devendo iniciar o protocolo de sua operação, para análise do tribunal competente, dentro de 24 horas, seguintes ao início da instauração da medida, garantindo o controle judicial da matéria, seja em um monitoramento seletivo ou em grande escala. Se o poder judiciário, no caso, entender que, o procedimento está eivado por ilegalidade, toda a informação e dados obtidos deverão ser destruídos.

Conclusão

Neste breve texto, sublinha-se parte de uma importante decisão para o sistema interamericano de direitos humanos, com a qual a autodeterminação informativa é levada ao patamar de uma estrutura de barreira, de fronteira e proteção às arbitrariedades estatais, em especial, quando de ações de inteligência de estado.

Não se ignora da relevância estrutural das ações de inteligência de Estado, e da necessidade de constante adequação aos cenários nacionais e internacionais que, cada vez mais, complexificam-se, produzindo riscos inauditos à soberania e às arquiteturas constitucionais internas. Entretanto, as intersecções entre inteligência e vigilância mostram-se tênues, e a produção de respostas prontas e acabadas não parece ser a melhor solução. Os Direitos Humanos podem ser inseridos nessa esfera, de modo a permitir uma reflexividade interna capaz de gerar aperfeiçoamentos, em que um lado não seja constituído em detrimento do outro.

No caso, a autodeterminação informativa, reconhecida na CIDH, como parte estruturante de uma gramática de proteção aos direitos humanos, e do direito de defendê-los, inaugura uma janela normativa importantíssima para o tema, e a sua relação com a era digital do continente americano.

 


[1] https://brasil.un.org/pt-br/285508-dia-dos-direitos-humanos

[2] SPIVAK, Gayatri Chakravorty. An aesthetic education in the era of globalization. Cambridge: Harvard University Press, 2013, p. 1.

[3] FRIEDEWALD, Michael; LAMLA, Jörn; ROßNAGEL, Alexander. Informationelle Selbstbestimmung im digitalin Wandel. Springer Vieweg, 2017.

[4] DÖHMANN, Indra Spiecker gen. The more the merrier: a dynamic approach learning from prior misgovernance in EU data protection law. In: KETTEMANN, Matthias C.; PEUKERT, Alexander; DÖHMANN, Indra Spiecker gen (Orgs.) The law of global digitality. Abingdon: Routledge, 2022, p. 79.

Autores

  • é doutorando em Direito na PUC-RS, integrante dos grupos de pesquisa Direitos Fundamentais e Inteligência Artificial e Direito, PhD international researcher Goethe Universität/Institut für Digitalisierung Universität zu Köln.

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