Para constitucionalistas, CNJ extrapolou suas atribuições em resolução sobre julgamentos virtuais
17 de dezembro de 2024, 8h52
A Resolução 591 do Conselho Nacional de Justiça, que vai entrar em vigor em fevereiro do ano que vem, determinou que todos os processos em trâmite em órgãos colegiados poderão, a critério do relator, ser submetidos ao julgamento virtual.
Nesses casos, quando houver sustentação oral, caberá ao advogado enviar vídeo da defesa após a publicação da pauta e até 48 horas antes do início do julgamento.
O CNJ diz que a resolução foi editada considerando questões como a celeridade da Justiça e que “a adoção de sessões de julgamento em ambiente eletrônico contribui para a acessibilidade e a publicidade das decisões judiciais”.
No entanto, constitucionalistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmam que o órgão extrapolou suas atribuições ao inovar em termos legislativos, ou seja, ao criar uma regra que influencia o trabalho da advocacia. E não só: o CNJ também interferiu em direitos fundamentais das partes e dos advogados por meio de uma resolução, o que transborda as atribuições concedidas à instituição quando ela foi criada, em 2005.
Diz o artigo 2º da resolução:
Artigo 2º. Todos os processos jurisdicionais e administrativos em trâmite em órgãos colegiados poderão, a critério do relator, ser submetidos a julgamento eletrônico.
Parágrafo único. O Regimento Interno do Tribunal ou Conselho poderá excepcionar a admissibilidade de julgamento eletrônico para determinados recursos, incidentes ou classes processuais.
Em artigo publicado na ConJur na última quinta-feira (12/12), o jurista Lenio Streck sentenciou: “CNJ foi criado para tratar de e com juízes. Não pode legislar sobre os direitos dos demais cidadãos. Mormente não pode retirar direitos dos cidadãos e dos seus causídicos”.
“Qualquer resolução que signifique inovação será, pois, inconstitucional. E não se diga que o poder regulamentar (transformado em ‘poder de legislar’) advém da própria EC 45. Ou de lei posterior. Fosse correto este argumento, bastaria elaborar uma emenda constitucional para ‘delegar’ a qualquer órgão (e não somente a CNJ e CNMP) o poder de ‘legislar’ por regulamentos”, continuou Streck.
À ConJur, ele sintetizou sua argumentação: “O CNJ não foi criado para legislar. Tampouco sua atribuição é a alterar leis processuais. Há muitas resoluções inconstitucionais. Nesse caso, ele mexe com décadas de prerrogativas dos advogados. Nem o Parlamento pode proibir advogados de sustentar oralmente e presencialmente”.
O professor de Direito Constitucional e advogado Ingo Sarlet diz que não estão em jogo a existência e o poder normativo do CNJ, mas os limites da atuação do conselho.
“Tais limites se encontram tensionados, e não raras vezes ultrapassados, quando verificada uma erosão da reserva legal, em especial quando se trata da imposição de restrições a direitos e garantias fundamentais. Aliás, como se sabe, mesmo as restrições a direitos veiculadas por lei em sentido formal e material devem observância a determinados critérios, como é o caso, dentre outros, do teste da proporcionalidade”, afirmou Sarlet. “Sem prejuízo da nobreza das razões que motivaram tal medida, o fato é que a sua legitimidade constitucional merece ser discutida, visto ser, salvo melhor juízo, evidente o seu impacto sobre direitos fundamentais”, completou ele.
Competência dos tribunais
A advogada Vera Chemim levanta outro ponto sobre a resolução do CNJ. Para ela, caberia aos tribunais tomar administrativamente medidas para impor ou não determinada norma sobre julgamento virtual e, consequentemente, as possibilidades de sustentação oral dentro desse organograma.
“Os colegiados que integram os tribunais dos estados e demais tribunais superiores têm de reconhecer que tal iniciativa teria de vir de cada tribunal, desde que decidida em reunião administrativa e devidamente prevista em seus respectivos Regimentos Internos”, afirmou ela.
“Por outro lado, com a interpretação de que é atribuição constitucional e legal do CNJ criar mecanismos que facilitem a atuação administrativa do Judiciário, seria possível entender que a norma em debate teria como pressuposto auxiliar os colegiados dos tribunais no sentido de que, ‘a critério do relator’, determinados processos ‘poderiam’ ser julgados em sessão virtual, desde que não afrontem qualquer norma do CPC e do CPP.”
À exceção desses pontos, diz Vera Chemim, “a interpretação literal do §4º do artigo 103-B da Constituição Federal de 1988 não inclui aquela atribuição ao CNJ, conforme já se comentou, uma vez que tal iniciativa é restrita aos colegiados dos tribunais, que, em conjunto com o presidente, deliberam sobre o tema para transformá-lo em norma regimental”.
Prerrogativa violada
O professor de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Marco Aurélio Marrafon acredita que a resolução do CNJ extrapolou as atribuições do conselho ao tratar de questões de direito das partes e do próprio direito processual, já que a norma não é mera regulamentação de procedimento interno dos tribunais.
Segundo ele, a Constituição é clara ao estabelecer que cabe ao CNJ expedir atos regulamentares no âmbito de sua competência, ou recomendar providências, “jamais tratar de matéria que invada o direito processual e o direito das partes, extrapolando inclusive a sua competência sobre regulamentação dos procedimentos no Judiciário e sobre a magistratura.”
“A possibilidade de sustentação oral assíncrona, que eles preveem nos julgamentos virtuais, viola norma de direito processual, e não meramente um procedimento interno dos tribunais. (A norma do CNJ) Trabalha com o direito das partes, direito fundamental de defesa, do contraditório, e também as próprias prerrogativas de sustentar presencialmente, sobre as quais o CNJ não tem competência.”
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