Abolitio criminis de apostas de quota-fixa e a adequação social dos sorteios
17 de dezembro de 2024, 6h32
Há muita discussão e dissenso sobre a questão das apostas online de quota-fixa [1] e sorteios no que diz respeito à tipicidade da conduta de quem as promove. Inúmeras operações policiais foram deflagradas do Oiapoque ao Chuí em 2024 ao argumento de que a exploração e divulgação destas modalidades de jogos por intermédio da internet configurariam o tipo penal do artigo 50 da Lei das Contravenções Penais. Via de consequência, seriam também passíveis de configuração de infração penal antecedente ao delito de lavagem de dinheiro, previsto na Lei 9.613/98.
Para estruturar a temática proposta, importante notar que a contravenção penal indicada em linhas anteriores, por si só, tem pena imposta em patamar absolutamente insignificante — corolário lógico para sua configuração enquanto contravenção e não crime —, o que, possivelmente, desaguaria em eventual ação penal à utilização de qualquer dos mecanismos de consenso existentes no âmbito do processo penal brasileiro. No entanto, se tal expiação for somada àquela prevista no delito de lavagem de capitais — e ao possível crime de organização criminosa, ambos parte do combo preferido das polícias e do Ministério Público nas esferas estadual e federal —, sua dimensão toma outros contornos diante do concurso material de delitos.
O tema até agora não enfrentado é se, de fato, a contravenção penal subsiste após a aprovação das leis que regulamentaram as apostas esportivas. Uma leitura cuidadosa da Lei nº 14.790/2023 e dos artigos 29 a 33 da Lei nº 13.756/2018 nos parece indicar que houve a revogação tácita do artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941, por mais que surjam questões moralistas e de paternalismo estatal, sobre condições financeiras do apostador e de saúde pública.
De qualquer forma, afora a centralização na Caixa Econômica Federal da exploração de loterias operantes em solo nacional, a questão trouxe à tona o debate sobre a legitimidade da criminalização da exploração dos jogos de azar que visam à proteção de sujeitos autorresponsáveis e imputáveis de comportamentos eventualmente danosos, a despeito de suas vontades.
Consequências comportamentais do jogo
No ponto, não se desconhece que os jogos podem desencadear transtornos comportamentais, e, em nossa visão, esta é a razão única pela qual o tema merece a atenção estatal, sob o enfoque exclusivo da saúde. A ludopatia [2], ou o jogo patológico, é descrito inclusive enquanto transtorno de hábito e impulso descrito na Organização Mundial da Saúde (OMS) com classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID-10), sob o código F63.0.
No entanto, é importante diferenciar que esta patologia está especialmente vinculada aos jogos de resultado imediato, como os jogos de cassino e caça-níqueis, e não aos jogos de resultado postergado, como os que aqui se trata [3], razão pela qual se entende absolutamente discutível sua criminalização e utilização do direito penal, mão repressora do Estado, para a promoção de comportamento inofensivo à terceiros em uma perspectiva liberal [4].
De volta ao ponto, se essa é a intepretação correta, nos parece claro indicar que houve a abolitio criminis da contravenção em comento. A ratio para, ao nosso ver, da inegável atipicidade da conduta descrita no decreto de 1941 é a superveniente alteração legislativa por ausência de continuidade normativo-típica diante dos novos diplomas legais, que autorizam os jogos, sendo hipótese clara de descriminalização. Deve haver uma ab-rogação completa do preceito penal, pois, se feita de forma parcial, poderá subsistir a conduta anteriormente incriminada (artigo 2º, CP e 107, III, CP).
Nesse passo, inexistindo a infração penal antecedente, não se pode falar em posterior lavagem de dinheiro na hipótese em que se cuida.
No mesmo sentido, mas por argumento diverso, deve ser a leitura em relação à promoção de rifas feitas pelos influenciadores digitais em seus perfis nas redes sociais. Aliás, neste caso, temos dúvidas até se há adequação da conduta ao preceito penal incriminador, já que, em nossa percepção, a rifa não se enquadra na acepção dos verbos nucleares do tipo que são “estabelecer” ou “explorar” jogo de azar. E aqui há argumentos de sobra para que as condutas não se enquadrem na esfera penal.
Publicidade de influenciadores digitais
Como já indicamos anteriormente [5], os influenciadores que realizam a publicidade de sorteios na modalidade de filantropia premiável autorizados pelo Ministério da Fazenda e fiscalizados pela Susepe a ele vinculada não podem incidir em conduta ilícita quando autorizados pelo próprio poder público. Neste caso, quando o influenciador é um mero promotor do sorteio realizado por entidade devidamente fiscalizada, não há incidência da tipicidade penal. Veja-se que o divulgador não estabelece ou explora jogo de azar, pois isso é feito por capitalizadora autorizada para tanto. Além de não realizar os verbos nucleares do tipo previsto no artigo 50, LCP, por não ser o responsável pelo sorteio, parece que tal modalidade nem se enquadraria no conceito de jogo de azar propriamente dito.
De outro lado, poder-se-ia se argumentar que as rifas se enquadram dentro das condutas socialmente adequadas, já que são frequentemente promovidas em escolas, hospitais, igrejas, creches e etc., para arrecadação de valores destinados aos fins sociais propostos por seus organizadores. No mesmo sentido isso ocorre quando as rifas são realizadas na forma de filantropia premiável [6] [7], porque parte do valor arrecadado é, necessariamente, destinado a uma entidade sem fins lucrativos.
De bom alvitre relembrar que o princípio da adequação social, desenvolvido por Welzel, tem como base o princípio de que uma conduta socialmente adequada, ou, melhor dizendo, socialmente aceita, não deve ser considerada criminosa.
Para o referido autor, “socialmente adequadas são todas as atividades que se movem dentro do marco das ordens ético-sociais da vida social, estabelecidas por intermédio da história”. [8] A função metódica da adequação social consiste em recortar das palavras formais dos tipos, aqueles acontecimentos da vida que materialmente a eles não pertencem, e em que, com isso, se consegue que o tipo seja realmente uma tipificação do injusto penal”. [9]
Assim, o direito penal deveria ocupar-se apenas de comportamentos humanos que coloquem efetivamente em perigo bens jurídicos previstos em lei, condicionada à existência de lei penal que dá vida à expectativa jurídica pressuposto das atividades ali desvaloradas, razão pela qual entendemos que sorteios e apostas online não podem ser enquadrados enquanto infração penal antecedente ao delito de lavagem de capitais tanto em razão da abolito criminis tácita por edição de diplomas legais recentes, quanto por sua adequação social.
[1] Modalidade em que, no momento da efetivação da aposta, é definido o prêmio e seu valor de multiplicação a ser recebido em caso de premiação.
[2] SCHÜLL, Natasha Dow. Addiction by design: machine gambling in Las Vegas. Harvard (18th ed.). 2012.
[3] OLIVEIRA, Maria Paula Magalhães Tavares de; SILVEIRA, Dartiu Xavier da; SILVA, Maria Teresa Araujo. Jogo patológico e suas conseqüências para a saúde pública. In: Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 543-544, June 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/cBvcQb39BvpcRTvrxmH6B5x/?lang=pt
[4] Veja-se que o tema é candente e está em discussão na Suprema Corte brasileira no julgamento do Recurso Extraordinário 966.117, que questiona a constitucionalidade do artigo 50 da Lei de Contravenções Penais por sua aparente oposição à garantia de intervenção estatal mínima pela via Penal e ao direito de autodeterminação individual.
[5] https://www.conjur.com.br/2024-ago-15/sorteios-na-midia-digital-crime-ou-adequacao-social/
[6] Filantropia premiável: permite que o cliente, no ato da compra, ceda o direito de resgate para alguma instituição filantrópica previamente credenciada e participe de sorteios. Ou seja, o subscritor do título (adquirente) possui a faculdade de ceder o direito de resgate a entidade filantrópica previamente indicada, sem prejuízo de participar do sorteio de premiação na forma definida no título e aprovada pelo órgão público fiscalizador
[7] Resolução CNSP nº 384, de 2020. Art. 4º Os títulos de capitalização somente serão estruturados conforme as modalidades discriminadas abaixo:
I – tradicional;
II – instrumento de garantia;
III – compra programada;
IV – popular;
V – incentivo;
ou
VI – filantropia premiável.
Parágrafo único. A estruturação de títulos de capitalização nas modalidades previstas neste capítulo deve observar a regulamentação da Susep com regras complementares sobre a elaboração, a operação, a propaganda e material de comercialização dos títulos de capitalização.
[8] WELZEL, Hans, Derecho Penal Alemán. Traducción de Juan Bustos Raírez y Sergio Yáñez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1993., p. 106.
[9] WELZEL, Hans, Derecho Penal, p. 109.
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