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Pelo fim do Ministério Público! (como o conhecemos)

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16 de dezembro de 2024, 12h12

Nossa Constituição começa dizendo que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. Mas na prática não é bem assim. Alguns órgãos trabalham à margem do voto e ficam com um bom pedaço. O Ministério Público é um deles. Entre as novidades preparadas no laboratório da Assembleia Constituinte de 1988 estava a criação de um quarto poder.

O Ministério Público é citado nada menos do que 101 vezes no texto da Constituição Federal, o que dá escala de suas atribuições, mas não de suas responsabilidades. Obras ficam paradas, privatizações são suspensas, leis são derrubadas, políticas são implementadas ou alteradas. Empresas surgem e quebram, pessoas podem ir para a cadeia ou saírem ilesas se o MP assim decidir.

Esse modelo de “quarto poder” não é regra no cenário internacional. Lá fora, o órgão de acusação da Justiça criminal não necessariamente acumula a função de fiscal da lei, muito menos faz tudo isso sem a supervisão de algum dos poderes eleitos pelo voto, Executivo e Legislativo.

Modelo judicial vs. modelo hierárquico

O modelo adotado no Brasil se enquadra no que é chamado “modelo judicial”, no qual o MP é estruturado de forma idêntica ao Judiciário. Por um lado isso dá independência ao MP, mas por outro traz o risco de criar um poder paralelo. A fórmula alternativa de organização é o “modelo hierárquico”, com controle por outros poderes.

Os dois modelos têm prós e contras. O modelo hierárquico pode abrir espaço para interferência política indevida, mas tem como vantagem alinhar as prioridades do MP com as do resto do poder público. O Estado briga menos com si mesmo e executa políticas públicas de forma mais coordenada.

O modelo judicial garante independência, mas pode abrir espaço para a manifestação de preferências políticas e pessoais e ações de autopromoção. Especialistas destacam que a proximidade entre juízes e membros do MP incentiva estratégias de associação do tipo “ação entre amigos” e pode desequilibrar o sistema.

O problema é que juízes e promotores exercem funções totalmente diferentes. Um juiz só age quando provocado, obedece a um emaranhado de ritos processuais e se submete a múltiplas instâncias de revisão. Já um promotor age de ofício e tem grande autonomia. Sua função é escolher o que vai ou não vai à Justiça.

A oposição entre o modelo “hierárquico” e o “judicial” é uma falsa dicotomia. Qualquer agente do Estado precisa de algum grau de autonomia e também de algum tipo de controle. Deixar agentes públicos totalmente livres para fazer o que quiser é um risco para o Estado e para a democracia.

MP mundo afora

Na França, o modelo adotado é o hierárquico. Lá o parquet é subordinado ao Ministério da Justiça, combinado a ferramentas contra interferências indevidas. Instruções do Ministério da Justiça devem ser feitas por escrito, e um conselho composto por membros do Ministério Público avalia a atuação de promotores e intermedia sua relação com o Poder Executivo.

Em 2017, o sistema hierárquico francês foi questionado pelo sindicato dos magistrados em processo movido no Conseil Constitucionnel, a Corte Constitucional francesa, sob alegação era falta de independência. A Corte negou o pedido e entendeu que a submissão do MP ao Poder Executivo é uma forma de “conciliação equilibrada entre o princípio da independência da autoridade judiciária e as prerrogativas do governo”.

No Canadá, o procurador-geral é submetido à supervisão do Parlamento. O chefe do MP tem amplos poderes: pode interferir em investigações, dar diretrizes gerais e é informado de temas importantes. Chegam à deliberação do chefe do MP, e logo à supervisão do Parlamento, questões políticas, legislativas e litígios de impacto.

O sistema dos Estados Unidos combina uma promotoria federal subordinada ao Departamento de Justiça e procuradores-chefes eleitos pelo voto popular nos estados. A maior parte da atuação do Ministério Público se dá no poder local, onde a eleição direta de procuradores-chefes cria, por um lado, um escudo contra interferências do poder político. Por outro lado, alimenta associações indevidas com apoiadores eleitorais, populismo penal e superexposição midiática.

Clamor das ruas

Pesquisas em praticamente todas as áreas do conhecimento comprovam há anos a influência da opinião pública no funcionamento do sistema de Justiça. Juízes e promotores atuam com um olho no Direito e outro no “clamor das ruas”. Ministério Público e Judiciário são “independentes”, mas a opinião pública dá o tom.

Uma pesquisa publicada em 2015 pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) José Roberto Xavier entrevistou dezenas de juízes e procuradores brasileiros para chegar à conclusão de que a interferência da opinião pública utiliza a linguagem jurídica para se expressar. Jargões jurídicos funcionam como “estruturas de recepção”.

“(As estruturas de recepção) são argumentos jurídicos, construções do mundo jurídico que permitem dar conta de um estímulo externo ao sistema (opinião pública) sem que isso soe forçado”, diz o autor.

Ou seja, o sistema de Justiça é perfeitamente capaz de encobrir suas reais intenções com grossas camadas de juridiquês, e assim obter seus 15 minutos de fama. Faz isso promovendo “grandes causas” e saindo atrás do culpado da vez, seja quem for. O resultado são ações populistas e espetacularização da Justiça.

Controle externo

Não é preciso explicar os riscos de se ter um Ministério Público ocupado em promover espetáculos judiciais, principalmente quando conseguem fazer sociedade com integrantes do Judiciário. Acusações sem pé nem cabeça podem prosperar e trazer consequências graves para o sistema penal, a economia e a vida política.

A Reforma do Judiciário de 2004 propôs instâncias de controle externo pensando nesses problemas: o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O resultado não saiu como o esperando e a composição acabou dominada por integrantes das próprias carreiras, criando instâncias sem dentes e suspeitas de complacência.

O CNMP tem 14 membros, dos quais oito são do próprio Ministério Público, e outros dois são juízes. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 5/2021, assinada por 185 deputados federais, tenta tirar um representante do Ministério Público e dar mais um ao Congresso e Executivo. Mesmo essa mudança tímida provocou forte reação.

Se o Ministério Público é um quarto poder, precisa ser tratado como tal. É preciso mecanismos efetivos de controle social, controle externo e prestação de contas. Um CNMP efetivo e canais formais de relacionamento do MP com o Executivo, Legislativo e sociedade civil. É preciso dar independência ao MP, inclusive de si mesmo.

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