Opinião

Modernização do Código Civil: sobre a responsabilidade das plataformas digitais

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16 de dezembro de 2024, 15h17

Evolução tecnológica e necessidade de adaptação do Código Civil

Spacca

O Código Civil brasileiro, denominado por Miguel Reale [1] de “Constituição do homem comum”, é um dos pilares do sistema jurídico, responsável por regular questões essenciais da vida em sociedade. No entanto, o avanço da tecnologia evidenciou a necessidade de adaptar a lei para enfrentar os novos desafios. Nesse contexto, o anteprojeto de reforma do Código Civil, desenvolvido por uma comissão plural de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, surge como uma iniciativa relevante  para a modernização do texto legal, de modo a atender às demandas contemporâneas.

São marcantes as diferenças ao comparar o Brasil de 2003, quando entrou em vigor o atual Código Civil, com o Brasil de 2024, especialmente no campo tecnológico. No início dos anos 2000, o acesso à internet era limitado a 13% da população, predominantemente por meio de conexões lentas e concentrado nas áreas urbanas [2]. Hoje, aproximadamente 92,5% dos domicílios possuem acesso à internet [3], e o uso de smartphones [4] é predominante com a maioria dos brasileiros utilizando esses dispositivos para acessar a internet e outros serviços digitais.

Tais mudanças alteraram as relações sociais e econômicas, o que gerou demandas jurídicas que não estavam previstas no Código de 2002 e resultou na elaboração de um anteprojeto para sua reformulação. Se compararmos com a reforma do Código anterior, de 1916, cujo processo de atualização foi concluído apenas em 2002, percebemos um intervalo de 86 anos. Já o Código de 2002, embora mais recente, envelheceu rápido, especialmente diante do avanço acelerado da inteligência artificial (IA) e de outras inovações tecnológicas. Constata-se, então, a necessidade de atualizá-lo, seja parcial ou integralmente, para que se alinhe com a realidade atual, que é bem diferente daquela de duas décadas atrás.

Direito digital no projeto do CCC: da responsabilidade das plataformas

Nesse sentido, a inclusão do direito digital no anteprojeto do Código Civil reflete a tentativa de adaptar o nosso sistema jurídico às realidades do ambiente digital. Estruturado em dez capítulos, o Livro de Direito Civil Digital aborda temas como proteção de dados, contratos eletrônicos, patrimônio digital e atos notariais virtuais [5].

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Um dos pontos que merecem atenção no anteprojeto é a responsabilidade civil das plataformas digitais. O novo texto prevê a responsabilização administrativa e civil dessas plataformas em dois casos específicos de 1) danos causados por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha ocorrido por meio de publicidade da própria plataforma; e 2) descumprimento sistemático de deveres previstos no referido Código, aplicando-se as normas de responsabilidade civil nele estabelecidas [6].

O primeiro ponto parece seguir uma lógica que atribui a essas empresas um papel central na proteção do consumidor no ambiente digital. Ainda que a razão para tal escolha não tenha sido claramente exposta na justificação do projeto, é possível concluir que, ao disseminarem anúncios para milhares de pessoas e lucrarem com este serviço, as plataformas assumem o dever de cuidado com os conteúdos que promovem e, dada a velocidade e o alcance massivo da internet, espera-se que essas empresas adotem medidas adequadas para evitar a veiculação de anúncios enganosos ou prejudiciais, de modo a garantir mais  segurança aos usuários, conforme os princípios do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

O segundo ponto, por outro lado, requer aperfeiçoamento, uma vez que o texto do inciso é vago e abre espaço para interpretações subjetivas, o que dificulta tanto o entendimento quanto a aplicação prática da norma em casos concretos; ou seja, afeta diretamente a segurança jurídica.

Esse argumento é especialmente relevante no que concerne à (falta de) especificação de que deveres o dispositivo estaria a se referir, uma vez que da própria redação do texto se extrai a possibilidade de subsunção da integralidade do Código. O Código Civil atual, aliás, é repleto de expressões vagas e polissêmicas, como, a título de ilustração: interesse público (artigo 1.278); função social (artigo 421, dentre outros); e boa-fé (artigo 113, dentre outros).

A segurança jurídica, segundo Canotilho [7], é princípio fundamental [8] do Estado de Direito, derivado da interpretação de outros princípios constitucionais, como liberdade, razoável duração do processo e livre iniciativa, o qual se manifesta em dois aspectos principais: a determinabilidade das leis, que exige clareza e densidade legislativa, e a proteção da confiança, que garante aos cidadãos a previsibilidade e estabilidade dos efeitos jurídicos de seus atos, bem como das decisões públicas baseadas nas normas vigentes.

Sob a perspectiva das plataformas digitais, a falta de delimitação clara e precisa sobre os deveres a serem cumpridos e o conceito de “descumprimento sistemático” representa uma ameaça à segurança jurídica. Em um cenário marcado pela constante evolução tecnológica e normas abertas dispersas no Código, a ausência de critérios objetivos expõe as plataformas a riscos desproporcionais, pois prejudica a previsibilidade necessária para o desenvolvimento do ambiente digital.

Embora a responsabilização das plataformas digitais, como proposta no anteprojeto, represente um avanço ao reconhecer o papel dessas empresas na proteção de todo o ecossistema, a falta de critérios definidos para aplicação das normas pode comprometer a previsibilidade das relações jurídicas. Afinal, sem diretrizes claras sobre o que constitui descumprimento sistemático, quais deveres específicos as plataformas devem observar ou no que consistem as “medidas de diligência” exigidas das plataformas digitais [9], abre-se perigosa lacuna para interpretações subjetivas e decisões conflitantes, o que dificulta a construção de um ambiente digital seguro.

Portanto, para alcançar o equilíbrio entre proteção ao ambiente virtual e estímulo ao desenvolvimento tecnológico, é fundamental que o texto do anteprojeto seja aprimorado, de modo a garantir a determinabilidade das leis e, igualmente, a reforçar a confiança nas regras que regem o mundo digital. A previsibilidade não apenas protege os cidadãos, mas também promove um cenário jurídico que estimule investimentos, inovação e uso responsável das tecnologias.

Responsabilidade das plataformas digitais e revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet

Além das questões acima expostas, o anteprojeto do novo Código Civil promove mudança significativa ao responsabilizar as plataformas digitais [10] por conteúdos de terceiros, o que implica a revogação tácita do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o qual exime as plataformas de responsabilidade pelos conteúdos publicados por usuários, salvo em casos de descumprimento de ordem judicial específica.

Inclusive, um dos artigos do anteprojeto do novo Código Civil estabelece que as plataformas digitais devem adotar as providências necessárias para tornar indisponível o conteúdo ilícito, assim que tenham conhecimento, mediante notificação eletrônica, sobre a potencial ilicitude desse material [11], diferentemente do que aduz o artigo 19 do Marco Civil.

Essa mudança toca em uma questão sensível: o equilíbrio entre a liberdade de expressão e a proteção do direito à personalidade. Ambos são direitos fundamentais e, em situações de conflito, é necessária uma ponderação cuidadosa dos princípios para determinar qual direito, em concreto, prevalecerá.

No caso das plataformas digitais, a ponderação entre o direito à liberdade de expressão e a eventual responsabilidade civil pela disseminação de conteúdos prejudiciais deve ser feita com base nos danos efetivamente causados, dado o papel central que essas plataformas desempenham na mediação de interações socioeconômicas e na disseminação de informações. É imprescindível, portanto, que essa análise considere não apenas o impacto do conteúdo prejudicial, mas também a responsabilidade dessas empresas em promover um ambiente digital equilibrado e seguro.

Contudo, o crescimento das plataformas digitais trouxe não apenas benefícios, mas também desafios importantes, como a disseminação de desinformação. Um exemplo emblemático foi a circulação de informações falsas durante a pandemia de Covid-19, que impactou diretamente a saúde pública e que evidenciou a necessidade de modelos mais robustos de responsabilização para lidar com os danos causados por conteúdos nocivos.

Por outro lado, é fundamental considerar o impacto dessas mudanças legislativas na liberdade de expressão e no funcionamento das big techs. A responsabilização por atos de terceiros pode se tornar excessivamente onerosa e inviável para as plataformas, o que prejudicaria o próprio ecossistema digital. Essa preocupação não deve ser ignorada, por mais que a inovação seja bem-intencionada, pois a obrigação de verificar e controlar o conteúdo publicado pode impactar diretamente a experiência dos usuários, além de representar um risco financeiro significativo para a operação das plataformas digitais.

Considerações finais

Conclui-se, portanto, que o anteprojeto de reformulação do Código Civil traz inovações que, à primeira vista, são bastante positivas; a considerar as profundas transformações tecnológicas e sociais que ocorreram desde a promulgação do Código de 2002. No entanto, é fundamental que sejam consideradas as possíveis consequências dessas mudanças, especialmente no campo do direito digital, que ainda está em construção e enfrenta muitos desafios.

Nesse contexto, há quem defenda que talvez seja mais prudente adotar alterações pontuais e direcionadas para lidar com os desafios específicos trazidos pela tecnologia, o que permitiria a criação de normativas especializadas, como leis ordinárias que tratem — com profundidade — questões do ambiente digital, sem comprometer a coerência e a estabilidade do ordenamento jurídico como um todo.

Fato é que a atualização do Código Civil ou qualquer alteração normativa pontual é relevante, especialmente diante da evolução digital e do impacto cada vez maior das novas tecnologias em nossa sociedade. Porém, é crucial que esses temas sejam debatidos de forma mais ampla e que a redação das normas seja mais objetiva e precisa, a fim de garantir que o futuro texto normativo promova, igualmente, previsibilidade e segurança jurídica, superando as lacunas e os conceitos vagos que marcam a proposta atual. Só assim será possível criar um marco normativo que consiga equilibrar inovação tecnológica, proteção jurídica e estabilidade das relações sociais e econômicas.

 


[1] REALE, Miguel. Revista dos Tribunais. In: MENDES, Gilmar Ferreira; STOCO, Rui (orgs.). Edições Especiais Revistas dos Tribunais – 100 anos: Doutrinas Essenciais Direito Civil, Parte Geral. v. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1169.

[2] BANCO MUNDIAL. Indicador de uso de internet (% da população) no Brasil. Dados disponíveis em: https://data.worldbank.org/indicator/IT.NET.USER.ZS?end=2005&locations=BR&start=1990. Acesso em: 5 dez. 2024.

[3] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Brasileiros passam em média 5,6% do dia em frente às telas de smartphones, computadores. Jornal da USP, São Paulo, 21 nov. 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/brasileiros-passam-em-media-56-do-dia-em-frente-as-telas-de-smartfones-computadores/. Acesso em: 18 nov. 2024.

[4] IBGE. Informações atualizadas sobre tecnologias da informação e comunicação. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/21581-informacoes-atualizadas-sobre-tecnologias-da-informacao-e-comunicacao.html. Acesso em: 18 nov. 2024.

[5]  Comissão de Juristas. 2024. Relatório Final dos Trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Brasília: Senado Federal. https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2630/. Acesso em: 18 de nov. 2024

[6] Em suma dispõe o Art. “As plataformas digitais podem ser responsabilizadas administrativa e civilmente: I – pela reparação dos danos causados por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade da plataforma; II – por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros, quando houver descumprimento sistemático dos deveres e das obrigações previstas neste Código, aplicando-se o sistema de responsabilidade civil nele previsto.”

[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

[8] A segurança jurídica não é explícita na Constituição, sendo, portanto, um princípio implícito que resulta da interpretação de outros princípios constitucionais, como a razoável duração do processo, a segurança, o direito à liberdade, a livre iniciativa, entre outros. Humberto Ávila considera a segurança jurídica um “postulado normativo aplicativo” (Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos.  13ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012, pgs.156/158.) e Robert Alexy a define como uma “máxima” (Teoria dos direitos fundamentais.  Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, pgs.116/118).

[9] Conforme disposto no Anteprojeto do Código Civil: “Art. As práticas de moderação de conteúdo devem respeitar a não discriminação e a igualdade de tratamento, a garantia da liberdade de expressão e a pluralidade de ideias, facilitando a prevenção e a mitigação de danos.

§1º. As plataformas digitais devem demonstrar a adoção de medidas de diligência para mitigar e prevenir a circulação de conteúdo ilícito, nos termos do regulamento.

[10] O novo projeto do Código Civil define plataforma digital como “os serviços de hospedagem virtual que tenham como funcionalidade principal o armazenamento e a difusão de informações ao público”.

Por sua vez, Marcel Leonardi, em sua obra Fundamentos de Direito Digital, conceitua provedor de aplicação de internet de forma ampla, abrangendo qualquer “conjunto de funcionalidades” acessível via internet, incluindo serviços como hospedagem, correio eletrônico, marketplaces, redes sociais, mecanismos de busca, e plataformas de intermediação e aproximação (LEONARDI, Marcel. Fundamentos de Direito Digital. São Paulo: Thomson Reuters Brasil Revista dos Tribunais, 2019).

Em suma, enquanto toda plataforma digital de grande alcance pode ser considerada um provedor de aplicação, nem todo provedor de aplicação necessariamente se enquadra como uma plataforma digital de grande alcance.

[11] Em suma, aduz: § 3º Demonstrado o conhecimento pela plataforma sobre a potencial ilicitude do conteúdo, mediante notificação eletrônica do interessado, deverão ser adotadas as providências necessárias para a indisponibilização do conteúdo ilícito.”

Autores

  • é sócio do escritório Figueiredo & Velloso Advogados, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e graduado pela Universidade de Brasília (UnB), pós-doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ex-assessor de ministro do STF.

  • é advogada do escritório Figueiredo & Velloso Advogados e pós-graduanda em Direito pela Fesudeperj.

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