Retrospectiva 2024

Improbidade administrativa: principais decisões do ano no STJ e no STF

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  • é pós-graduando em Direito Administrativo pelo Damásio e especialista em Improbidade Administrativa do escritório Vilela Miranda & Aguiar Fernandes Advogados.

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  • é bacharel em Direito pós-graduado em Direito Administrativo pela PUC-MG especialista na Lei de Improbidade Administrativa e associado do escritório Vilela Miranda & Aguiar Fernandes Advogados.

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15 de dezembro de 2024, 9h22

Improbidade administrativa é um tema central no direito público brasileiro que passou por mudanças significativas nos últimos anos, especialmente com o advento da Lei 14.230/2021, que alterou substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), e com o julgamento do Tema 1199 pelo Supremo Tribunal Federal, que estabeleceu parâmetros de aplicação de aspectos dessa reforma de 2021 aos processos sem trânsito em julgado.

E o ano de 2024 se apresentou como um marco importante para a evolução da jurisprudência sobre o tema, com decisões relevantes do STF e do STJ que deram nova roupagem ao entendimento da matéria, as quais abordaremos adiante.

Limitação da retroatividade da Lei 14.230/21 pelo STJ

A fixação de entendimento sobre os limites de retroatividade da Lei 14.230/21 sempre foi um tema polemico e bastante controvertido, mesmo após o julgamento do Tema 1.199, através do qual a Corte Suprema definiu que, salvo sobre os casos com trânsito em julgado, há retroatividade no aspecto de reforma atinente à extinção da forma culposa de improbidade, então prevista no artigo 10, caput, da LIA.

Contudo, a extinção do ato ímprobo culposo não foi a única mudança estabelecida pela Lei 14.230/21 como hipótese de atipicidade superveniente capaz de tocar processos em curso. A taxatividade do rol do art.igo1, da LIA e a exigência de um dano efetivo ao erário para os atos do artigo 10, da LIA também foram mudanças que poderiam levar a extinção de ações de improbidade, da mesma forma que a extinção do ato ímprobo culposo.

No entanto, há algum tempo, e vide tantos julgados desse ano (2024), o STJ vinha adotando interpretação restritiva das teses firmadas pelo Supremo, com aplicação de retroatividade em grau mínimo da Lei 14.230/21, “adstrita aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência da lei anterior, sem condenação transitada em julgado” [1].

Mitigação do entendimento: aplicação imediata do rol fechado do artigo 11, LIA

Posteriormente, no entanto, aquele entendimento foi relativizado em prol da aplicação imediata, nos processos sem trânsito em julgado, da atual redação do artigo 11, da LIA.

Essa conclusão foi inaugurada pelo Supremo Tribunal Federal, que vem admitindo até mesmo Reclamações Constitucionais calcadas no Tema 1.199/STF em razão de condenações por improbidade em desrespeito ao atual rol do artigo 11, da LIA [2].

Daí que o Superior Tribunal de Justiça se submeteu ao entendimento do Supremo, reconhecendo que “A nova redação do art. 11 da LIA, dada pela Lei n. 14.230/2021, que tipificou de forma taxativa os atos de improbidade administrativa por ofensa aos princípios da administração pública, obsta a condenação genérica com base nos revogados incisos I e II do mesmo artigo para atos praticados na vigência do texto anterior da lei e sem condenação transitada em julgado” [3].

A partir de então, houve harmonização entre a compreensão dada a matéria por ambas as Cortes de Superposição – o que era necessário, já que a instabilidade de entendimento vinha sangrando muito a segurança jurídica.

Incidência imediata, também, do dolo específico (artigo 1º, §2º, LIA)

Outra hipótese de atipicidade emplacada pela Lei 14.230/21 que ganhou foco esse ano foi a espécie de dolo anexada pelo Legislativo aos atos de improbidade. O STJ tem antiga jurisprudência no sentido de que bastava um dolo genérico para ser possível penalizar o agente pelas condutas tipificadas pela Lei 8.429/92; a reforma normativa havida em 2021 modificou esse entendimento, passando a exigir uma “vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11” da LIA (artigo 1º, §2º) (dolo específico).

Spacca

Como o entendimento inicial do STJ era de que apenas a extinção da modalidade culposa de improbidade importaria aplicação retroativa, várias ações calcadas em imputação de dolo genérico seguiam em curso – inclusive, eram julgadas procedentes em desacordo com a redação atual da lei.

Recentemente, no entanto, a 1ª Turma da Corte Superior reconheceu a incidência imediata do dolo específico aos atos ímprobos questionados em ações não passadas em julgado, com definição dos seguintes parâmetros para julgamento de recursos especiais sobre dolo à luz da Lei 14.230/21 [4]:

a) se o juízo a quo identifica a presença do elemento doloso, mas não explicita qual a modalidade do dolo (se específico ou genérico), os autos devem ser devolvidos à origem para que reexamine o caso e se manifeste expressamente sobre a presença do dolo específico que, se não estiver presente, deverá levar à improcedência do pedido;

b) se decisão recorrida expressamente afirma que o dolo é genérico, não haverá necessidade de retorno dos autos à instância originária, sendo possível que o pedido seja julgado improcedente no próprio STJ, porque ausente o elemento subjetivo especial necessário à configuração do ato ímprobo;

c) se julgado impugnado claramente fala que está presente o dolo específico, cabe a Corte entender presente o elemento subjetivo e examinar os demais pontos do recurso ou incidente processual em trâmite neste Tribunal.

Importante frisar que o STJ já havia referendado a necessidade de dolo específico para os atos de improbidade em julgados de anos passados, inclusive quando do julgamento do Tema 1108 em 2022, mas essa decisão mais recente da 1ª Turma definitivamente confere contornos mais seguros no trato da matéria, garantindo harmonia na aplicação da Lei 14.230/21.

Cancelamento do Tema 1.096: impossibilidade de condenação pelo artigo 10, da LIA por dano presumido ao erário

Em 8/6/2021, o Superior Tribuna de Justiça afetou o Tema 1096 para “Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)”. Porém, a nova redação dada ao artigo 10, da LIA pela Lei 14.230/21 tratou da questão ao regrar que as ações pautadas em dano ao erário deverão demonstrar efetiva e comprovada perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres do poder público, sendo vedada qualquer presunção nesse esteio.

Diante desse cenário, a 1ª Seção da Corte Superior entendeu por bem em cancelar o tema em voga, visto que a reforma de 2021 apresentou solução adequada à controvérsia [5].

Importante observar que, em artigo publicado aqui nesta ConJur em 29 de janeiro de 2022, intitulado “Improbidade: principais jurisprudências e temas afetados pela Lei 14.230/2021” [6], já havíamos antevisto a impossibilidade de ser travada tese no julgamento daquele tema que contrariasse a nova disposição do artigo 10, da LIA:

… Com efeito, temos que não mais há como definir como improbidade administrativa aquelas condutas pautadas em dano presumido ao erário — matéria objeto do Tema 1.096/STJ —, uma vez que a nova redação dada pela Lei 14.230/21 ao artigo 10, caput e inciso VIII, e artigo 21, inciso I, da Lei 8.429/92 é clara ao dispor que, ainda nos casos de violação do procedimento licitatório, as ações pautadas em dano ao erário deverão demonstrar efetiva e comprovada perda patrimonial em prejuízo do poder público, sendo vedada qualquer presunção nesse esteio, vide artigo 17-C, inciso I, da norma:…

Isso posto, a perda patrimonial efetiva tornou-se aspecto nuclear da conduta ímproba descrita no artigo 10 da LIA, junto do elemento subjetivo doloso, o que impede o firmamento da Tese 1.096/STJ no sentido de configuração de improbidade administrativa por dano presumido ao erário pelo simples frustrar da licitude de processo licitatório…

Afetação do Tema 1.257: aplicação imediata das novas regras sobre indisponibilidade de bens?

A Lei nº 14.230/2021 também promoveu mudanças significativas no regime de indisponibilidade de bens, com afastamento do entendimento anteriormente consolidado que tratava essa medida como uma espécie de tutela de evidência, dispensando a demonstração da urgência (periculum in mora).

Antes da reforma, a decretação da indisponibilidade de bens baseava-se apenas na probabilidade do direito, presumindo risco de dilapidação patrimonial (Tema 701/STJ). Com a alteração legislativa, essa presunção deixou de ser aplicada, exigindo-se a demonstração concreta da urgência para a manutenção da medida.

Diante dessa mudança, muitos réus passaram a questionar a manutenção da indisponibilidade de bens nos processos em curso. Os tribunais, de forma consistente, vinham decidido pelo levantamento da medida cautelar quando não demonstrado risco de dilapidação patrimonial [7].

Contudo, essa questão está atualmente submetida à análise pelo Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Tema 1.257, afetado para definir, entre outros pontos, se as novas regras sobre tutela provisória de indisponibilidade de bens — incluindo a inclusão do valor de eventual multa civil — podem ser aplicadas imediata ou retroativamente.

Novos parâmetros sobre o artigo 11, da LIA

Com a implementação de um rol taxativo para o artigo, da LIA, foram necessárias também definições de parâmetros de aplicação do dispositivo que se harmonizassem com a tutela à probidade administrativa e com as leis especiais que também dispõem sobre improbidade por infração de princípios.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça definiu que “não se extingue a ação de improbidade administrativa se a exclusão da conduta anteriormente disposta no art. 11 da LIA – violação genérica aos princípios administrativos – aboliu a tipicidade, mas a nova previsão legal especifica em seus incisos a conduta descrita, em razão do princípio da continuidade típico-normativa” [8].

Significa dizer que, se o autor da ação se valeu da previsão genérica do caput, do artigo 11, da LIA, em sua redação original (de rol aberto) para imputar ao réu ato ímprobo, mas suas acusações encontram algum referencial no atual rol fechado do dispositivo (por exemplo, alega fraude à licitação, atualmente previsto no inciso V), a ação deve prosseguir.

Outrossim, para a 1ª Turma do STJ, a Lei 14.230/2021 também não afastou a caracterização das condutas descritas no artigo 73 da Lei das Eleições (Lei 9.504/1997). Conforme decidido, tais disposições agrega-se ao rol taxativo previsto no artigo 11 da LIA [9]. Vale dizer que esse mesmo entendimento serve para manter como ato ímprobo as condutas descritas no artigo 52 e incisos, do Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001).

Embate sobre custas processuais

A Lei nº 14.230/21 também introduziu na Lei de Improbidade o artigo 23-B, que traz previsão sobre o diferimento do recolhimento de custas nas ações de improbidade administrativa e em seus incidentes processuais.

Apesar da clareza normativa quanto ao diferimento das custas processuais também se operar em favor dos réus, o Superior Tribunal de Justiça tem adotado um posicionamento restritivo, limitando a aplicação desse benefício ao autor da demanda, baseando-se no entendimento relativo ao diferimento previsto na ação civil pública, vide precedentes da 1ª e 2ª Turma [10].

Infelizmente, tal entendimento coloca em risco os princípios do contraditório, ampla defesa e duplo grau de jurisdição, o que se agrava diante da penalização processual de deserção que vem sendo imposta aos réus que não realizam o recolhimento em dobro das custas, sequer possibilitando o questionamento de tal entendimento, sob o fundamento de que o despacho que determinou o recolhimento não tem caráter decisório e, portanto, irrecorrível.

 


[1] Julgados: AgInt no REsp 2082995/PB, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/03/2024, DJe 02/04/2024; AgInt no REsp 2013262/MA, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/03/2024, DJe 14/03/2024; AgInt no AgInt no REsp 1962115/MG, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/03/2024, DJe 07/03/2024; AgInt no AREsp 948730/RR, Rel. Ministro AFRÂNIO VILELA, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/02/2024, DJe 29/02/2024; EDcl nos EDcl no AgInt no AgInt no AREsp 1635190/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/12/2023, DJe 07/12/2023; AgInt no AREsp 2301778/DF, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/12/2023, DJe 07/12/2023

[2] Rcl 71279, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, Rcl 70.277, de relatoria do Exmo. Min. André Mendonça; AgR na Reclamação 64.629-MT, de relatoria do Min. Gilmar Mendes

[3] Julgados: EDcl nos EDcl no AgInt no AREsp 1174735/PE, Rel. Ministro PAULO SÉRGIO DOMINGUES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/03/2024, DJe 08/03/2024; AgInt no AREsp 2380545/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/02/2024, DJe 07/03/2024  REsp 2018282/SP (decisão monocrática), Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/03/2024, publicado em 14/03/2024; AREsp 2016453/SP (decisão monocrática), Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/03/2024, publicado em 12/03/2024

[4]AgInt no AgInt no AREsp n. 2.329.883/MG, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 15/10/2024, DJe de 11/11/2024.

[5] QO no REsp n. 1.912.668/GO, relator Ministro Afrânio Vilela, Primeira Seção, julgado em 22/2/2024, DJe de 19/3/2024

[6] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-29/freitas-principais-jurisprudencias-temas-afetados-lei-14230/ – acesso em 11/12/24, às 16h19min

[7] TJSP, Agravo de Instrumento nº 2048700-07.2022.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Público, Relator: José Eduardo Marcondes Machado, julgado em 6 de abril de 2022; TJSP, Agravo de Instrumento nº 2240678-44.2020.8.26.0000, 1ª Câmara de Direito Público, Relator: Vicente de Abreu Amadei, julgado em 17 de dezembro de 2021.

[8] Julgados: AgInt no AREsp 1206630/SP, Rel. Ministro PAULO SÉRGIO DOMINGUES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/02/2024, DJe 01/03/2024  REsp 2107553/MG (decisão monocrática), Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/04/2024

[9] Lei 14.230/2021 não afasta atos ímprobos da Lei das Eleições

[10] AgInt no AREsp n. 2.596.292/SP, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 11/11/2024, DJe de 14/11/2024; AgInt no REsp n. 2.147.286/PE, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 28/10/2024, DJe de 30/10/2024.

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