Opinião

Emendas parlamentares impositivas: da legitimidade à ineficiência orçamentária

Autor

  • é graduado em Direito especialista em Direito da Proteção e Uso de Dados pela PUC Minas auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas de Pernambuco e diretor para Assuntos Técnicos e Jurídicos da Auditores TCE-PE.

    Ver todos os posts

15 de dezembro de 2024, 6h09

Este artigo tem como objetivo demonstrar como as emendas parlamentares impositivas evoluíram de um instrumento legítimo para um mecanismo que contribui para a corrupção sistêmica no Poder Legislativo. Além disso, é necessário destacar que este artigo se propõe a tratar, apenas, de aspectos atinentes a emendas impositivas individuais.

Waldemir Barreto/Agência Senado

É importante esclarecer o que são as emendas parlamentares impositivas e em que contexto elas foram criadas. As emendas impositivas foram introduzidas no ordenamento jurídico em 2015 por força da Emenda Constitucional nº 86, que trouxe a obrigatoriedade da execução das emendas parlamentares individuais. Esse é um marco no Direito Financeiro. Antes dessa alteração constitucional, a natureza jurídica do orçamento público era meramente autorizativa. Com essa mudança, uma parte do orçamento passa a ter a execução obrigatória. Dessa forma, a execução dessa parte do orçamento é um dever do gestor, ressalvados os impedimentos de ordem técnica (CF, artigo 166, § 13º).

O contexto em que essa alteração legislativa foi aprovada era marcado pelo descontentamento parlamentar com os baixos níveis de execução orçamentária (Greggianin; Da Silva, 2015). Na visão dos parlamentares, estabelecer a obrigatoriedade da programação orçamentária decorrente de emendas individuais é uma maneira de aumentar a participação do Legislativo na definição das políticas públicas.

Dessa forma, inaugura-se um novo marco na definição das políticas públicas no contexto orçamentário, com uma participação ativa e fundamental do Poder Legislativo na elaboração do orçamento público. Desde a criação do mecanismo da impositividade orçamentária, diversas alterações foram realizadas. Considerando apenas as emendas individuais, a representatividade dos valores é de 2% da receita corrente líquida do exercício anterior (CF, artigo 166, § 9º). Levando em consideração todos os tipos de emendas parlamentares, na esfera federal, em 2022, o Poder Legislativo teve o controle de 24% das despesas discricionárias.

Dos limites para execução obrigatória: impedimentos de ordem técnica

A execução obrigatória das emendas individuais encontra impedimentos de ordem técnica (CF, artigo 166, § 13º). A definição desses impedimentos, no âmbito do Poder Executivo federal pode ser encontrada na Portaria Conjunta MF/MPO/MGI/SRI-PR nº 01/2024, que reproduz o disposto na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Em 25 de novembro de 2014 foi publicada a Lei Complementar nº 210, que dispõe sobre a proposição e a execução de emendas parlamentares na lei orçamentária anual e dá outras providências. Desta forma, na esfera federal, de acordo com o artigo 10 da Lei Complementar nº 210/2024, são consideradas hipóteses de impedimentos de ordem técnica para execução de emendas parlamentares:

“I – incompatibilidade do objeto da despesa com finalidade ou atributos da ação orçamentária e respectivo subtítulo, bem como dos demais classificadores da despesa;

II – óbices cujo prazo para superação inviabilize o empenho no exercício financeiro ou no prazo previsto na legislação aplicável;

III – ausência de projeto de engenharia aprovado pelo órgão setorial responsável pela programação, nos casos em que for necessário;

IV – ausência de licença ambiental prévia, nos casos em que for necessária;

V – não comprovação, por parte dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios que fiquem a cargo do empreendimento após sua conclusão, da capacidade de aportar recursos para seu custeio, operação e manutenção;

VI – não comprovação da suficiência dos recursos orçamentários e financeiros para conclusão do empreendimento ou de etapa útil com funcionalidade que permita o imediato usufruto dos benefícios pela sociedade;

VII – incompatibilidade com a política pública aprovada no âmbito do órgão setorial responsável pela programação;

VIII – incompatibilidade do objeto proposto com o programa do órgão ou ente executor;

IX – ausência de pertinência temática entre o objeto proposto e a finalidade institucional da entidade beneficiária;

X – não apresentação de proposta ou plano de trabalho ou apresentação fora dos prazos previstos;

XI – não realização de complementação ou de ajustes solicitados em proposta ou plano de trabalho, bem como realização de complementação ou de ajustes fora dos prazos previstos;

XII – desistência da proposta pelo proponente;

XIII – reprovação da proposta ou plano de trabalho;

XIV – insuficiência do valor priorizado para a execução orçamentária da proposta ou plano de trabalho;

XV – não indicação de instituição financeira e da conta específica para recebimento e movimentação de recursos de transferências especiais pelo ente federado beneficiário no sistema Transferegov.br ou em outro que vier a substituí-lo;

XVI – omissão ou erro na indicação de beneficiário pelo autor da emenda impositiva individual ou de bancada estadual;

XVII – inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) não correspondente à do beneficiário;

XVIII – incompatibilidade do beneficiário com o subtítulo da programação orçamentária da emenda;

XIX – inobservância da aplicação mínima obrigatória de 70% (setenta por cento) em despesas de capital nas transferências especiais, por autor;

XX – atendimento do objeto da programação orçamentária com recursos inferiores ao valor da dotação aprovada para o exercício financeiro, observado que o impedimento incidirá sobre os saldos remanescentes;

XXI – impossibilidade de atendimento do objeto da programação orçamentária aprovada, ou de uma etapa útil do projeto, em decorrência de insuficiência de dotação orçamentária disponível;

XXII – não observância da legislação aplicável ou incompatibilidade das despesas com a política pública setorial e com os critérios técnicos que a consubstanciam;

XXIII – incompatibilidade, devidamente justificada, com o disposto no art. 37 da Constituição Federal;

XXIV – alocação de recursos em programação de natureza não discricionária;

XXV – ausência de indicação, pelo autor da emenda, do objeto a ser executado, no caso das transferências especiais;

XXVI – indicação, no caso de transferências especiais, de objeto com valor inferior ao montante mínimo para celebração de convênios e de contrato de repasses previsto no regulamento específico do tema; e

XXVII – outras hipóteses previstas na lei de diretrizes orçamentárias.”

Da análise do dispositivo acima, é possível categorizar os impedimentos de ordem técnica em ao menos dois grandes grupos: falhas na categorização orçamentária e falhas na formulação das políticas públicas. Como exemplo de caracterização orçamentária tem-se o seguinte dispositivo “incompatibilidade do beneficiário com o subtítulo da programação orçamentária da emenda”, já como exemplo de falhas na formulação das políticas públicas tem-se os “óbices cujo prazo para superação inviabilize o empenho no exercício financeiro ou no prazo previsto na legislação aplicável”.

Em análise mais aprofundada dos impedimentos de ordem técnica, é possível observar uma nova função parlamentar: a de formulador de políticas públicas. Nesse sentido, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.697/DF questionou a compatibilidade deste modelo de execução orçamentária com o princípio da separação dos poderes. Em sede de cautelar houve decisão para suspensão da execução de emendas impositivas “até que os poderes Legislativo e Executivo, em diálogo institucional, regulem os novos procedimentos”.

Análise substantiva das emendas parlamentares: município do Cabo de Santo Agostinho

Para dar dimensão prática ao que está sendo debatido, foi realizada uma análise das emendas impositivas de municípios pernambucanos. Selecionou-se para análise o município do Cabo de Santo Agostinho (PE), que dispõe em sua lei orçamentária de um anexo com o quadro de das emendas parlamentares aprovadas. Vale o registro que a elaboração desse anexo já pode ser considerada uma boa prática para transparência das emendas. O nível de transparência do município possibilitou uma análise mínima da execução das emendas parlamentares. A transparência ainda não pode ser considerada uma regra na execução desses recursos.

O critério utilizado é o artigo 10 da Lei Complementar nº 210/2024, que indica os impedimentos de ordem técnica em âmbito federal. O objetivo é identificar o grau de maturidade na formulação de políticas públicas por parte dos parlamentares bem como trazer exemplos de problemas encontrados na alocação desses recursos. Assim, foram comparadas as emendas parlamentares à Lei Orçamentária de 2024 no município do Cabo de Santo Agostinho com o disposto no artigo 10 da Lei Complementar nº 210/2024.

A Emenda nº 15/2023, no valor de R$ 100 mil, teve como objetivo a “a construção do auditório”. A emenda teve como destinatário a Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo (Sobac). Não foram identificados valores executados provenientes desta emenda parlamentar no ano de 2024. Dentre os prováveis impedimentos de ordem técnica para execução tem-se: a não comprovação da suficiência dos recursos orçamentários e financeiros para conclusão do empreendimento ou de etapa útil com funcionalidade que permita o imediato usufruto dos benefícios pela sociedade e a ausência de projeto de engenharia aprovado pelo órgão setorial responsável pela programação, nos casos em que for necessário.

As emendas são genéricas e não indicam uma análise do problema a ser atacado pela alocação de recursos. Algumas emendas indicam, em seu texto, que sua finalidade é tão somente a inclusão de uma organização da sociedade civil (OSC). São exemplos as eEmendas nº 35/2023, 36/2023 e 37/2023, que destinam valores para incluir a instituição Organização da Sociedade Civil Esperança de Pernambuco (Oscep) no orçamento de 2024, incluir a instituição Associação de Moradores da Praia de Gaibú no orçamento de 2024 e incluir a instituição Projeto Esperança de Vida no orçamento de 2024. São emendas vagas e sem propósito definido que apenas destinam recursos para entidade privada sem a formulação de política pública específica.

Da redefinição das responsabilidades do parlamentar na formulação de políticas públicas

Embora a análise substantiva, feita no tópico anterior, seja restrita a apenas um município, é evidente que o parlamentar enfrenta dificuldades em formular políticas públicas e detalhar a alocação de recursos de maneira que impacte a sociedade. Sem adentrar na discussão sobre o princípio da separação dos poderes, é necessário que o Poder Legislativo, ao assumir uma parcela significativa do orçamento público, também seja capaz de formular políticas públicas, indo além da mera alocação de recursos.

Para que a execução das emendas impositivas seja eficiente, eficaz e impactante, é necessário que o parlamentar, antes de alocar os recursos, detenha elementos mínimos acerca do que se pretende realizar. Caso a aplicação seja feita em uma entidade privada, por exemplo, é crucial que o parlamentar tenha acesso prévio ao plano de trabalho, a fim de verificar a utilidade da proposta e a suficiência dos valores para sua execução.

Nessa linha, ao analisar a ADI nº 7.697-DF o STF se manifestou nos seguintes termos:

“Nessa situação, grande parte da discricionariedade inerente à implementação de políticas públicas é retirada das mãos do Poder Executivo, transformando os membros do Poder Legislativo em uma espécie de ‘co-ordenadores de despesas’. Com efeito, as minúcias da execução orçamentária não dependem mais de deliberações administrativas no âmbito do Poder Executivo, e sim da aposição de meros carimbos a decisões de outro Poder.”

Também é necessário modificar a lógica de funcionamento parlamentar para promover a profissionalização dos gabinetes. Isso inclui a contratação de servidores efetivos para realizar uma análise prévia e independente de cada proposta de emenda parlamentar em todas as suas dimensões.

Na atuação administrativa atípica, o parlamentar deve ser capaz de atuar como um verdadeiro ordenador de despesa, verificando como será gasto o valor alocado, caso contrário, o mecanismo de emendas impositivas pode resultar em um jogo de empurra-empurra, propiciando corrupção e ineficiência: o Poder Legislativo diz que apenas aloca os recursos e enquanto o Poder Executivo declara que apenas executa uma verba previamente determinada.

 


Referência bibliográfica

GREGGIANIN, E.; DA SILVA, J. DE R. P. O Orçamento Impositivo das Emendas Individuais – Disposições da Emenda Constitucional no 86. 2015.

MENDES, M. Emendas parlamentares e controle do orçamento pelo legislativo: uma comparação do Brasil com países da OCDE. 2023.

Veja a cronologia do Orçamento Impositivo e entenda a polêmica do veto. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/642112-VEJA-A-CRONOLOGIA-DO-ORCAMENTO-IMPOSITIVO-E-ENTENDA-A-POLEMICA-DO-VETO>. Acesso em: 11 dez. 2024.

Autores

  • é graduado em Direito, especialista em Direito da Proteção e Uso de Dados pela PUC Minas, auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas de Pernambuco e diretor para Assuntos Técnicos e Jurídicos da Auditores TCE-PE.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!