Opinião

Os 40 Anos da Lei de Execução Penal: desafios e perspectivas (parte 1)

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  • é ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) alma mater UFPR (Universidade Federal do Paraná) e professor do programa de pós-graduação do Ceub (Centro Universitário de Brasília).

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14 de dezembro de 2024, 10h01

Em recente Encontro Nacional dos Conselhos Penitenciários (Enacopen) emergiu ocasião que convoca a uma reflexão para além da celebração do marco histórico dos 40 anos da Lei de Execução Penal. Este momento demanda, sobretudo, uma análise crítica e propositiva sobre os desafios que persistem e as ações que se fazem urgentes para a concretização de um comando constitucional, aquele que se vinca pela sociedade livre, justa e solidária, como preconizado no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal.

Spacca

A edição da Lei de Execuções Penais, ainda que em período pré-constitucional, em julho de 1984, representou importante codificação das normas regentes da execução penal, dispondo sobre regras de organização do sistema penitenciário nacional projetadas para os direitos e obrigações dos condenados presos e egressos; para os órgãos de Execução Penal; para os Estabelecimentos Penais; e, finalmente, para a Execução das Penas em Espécie.

Diferente do campo acadêmico de minha formação originária, nos últimos dez anos venho cotejando categorias, conceitos e concepções do Direito Penal, da Criminologia e do Processo Penal, inclusive da execução penal. Teoria e prática dessa década me permitem trazer singela contribuição que reconhece, de saída, que a lei foi exitosa em prever normas relacionadas ao atual modelo de progressão de penas implementado em todo o território brasileiro.

Em meu modo de ver, desde o início a norma teve como eixo o cumprimento da pena em conjunto com políticas de reintegração do preso, que detém não somente deveres, mas também direitos; sem contar com o fomento aos direitos dos egressos para retornarem ao livre convívio social.

Na lei fundamental da redemocratização e do Estado de Direito, essas disposições foram amplificadas nos direitos e garantias previstas na Constituição da República que, com fundamento na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), proíbe tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, III), imposição de penas cruéis (artigo 5º, XLVII, e) e assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5°, XLIX).

Além disso, traduziram o que já previsto na Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana da ONU, de 1948, no sentido de que as punições não podem ser constituídas por tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante, bem assim o que se encontra prescrito nas Regras de Mandela, no sentido de que :

“Todos os reclusos devem ser tratados com o respeito inerente ao valor e dignidade do ser humano. Nenhum recluso deverá ser submetido a tortura ou outras penas ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância.” (Regra nº 1).

Por outro lado, as quatro décadas da lei não lograram dirimir a complexa problemática do sistema penitenciário no Brasil. Há dois fatos: a ampliação da população encarcerada em ambientes superlotados e a consequente perda da capacidade de gestão, convertendo-se o sistema prisional, paradoxalmente, como um protagonista na gestação e fortalecimento de facções prisionais que constituem, hoje, um gravíssimo problema a pairar sobre a sociedade brasileira. Os instrumentos pensados para tornar a sociedade mais segura foram se transformando em ferramentas da insegurança e do crime.

Algo de relevo é imprescindível reconhecer nessa jornada: é inegável que os conselhos penitenciários desempenham um papel imprescindível de fiscalização e cooperação na elaboração e avaliação das políticas públicas. Suas atribuições ressoam como indispensáveis para a promoção de uma justiça penal que efetivamente contribua para a pacificação social com respeito aos limites constitucionais e aos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade.

A execução penal brasileira, marcada por desigualdades estruturais, reflete e perpetua ciclos de exclusão, realidade que deve ser enfrentada com ações pragmáticas e articuladas entre o Judiciário, o Executivo e a sociedade civil. No entanto, não se trata de ignorar as conquistas alcançadas ao longo dessas quatro décadas, mas de reconhecer que tais avanços coexistem com desafios que exigem novas respostas.

Assim, tomando esse ponto de partida, proponho que avancemos sobre algumas das questões que demandam nossa atenção.

Diagnóstico atual: dados e realidade do sistema carcerário

Os dados não são desconhecidos. A análise da realidade carcerária brasileira revela um cenário crônico de problemas, tais como a superlotação, as duras condições de trabalho (não raro, além de caracterizadas pela periculosidade, são descaradamente insalubres) para os servidores e policiais penais, a presença desproporcional de jovens de baixa escolaridade e a baixa capacidade de oferta de políticas de educação e trabalho, tudo isso associado a condições indignas de inúmeras unidades prisionais e à ausência de mecanismos de fiscalização e transparência.

Como se não bastasse, todas as evidências das últimas décadas apontam para o papel indutor e propulsor exercido pelo sistema penitenciário na formação de novas organizações criminosas, verdadeiras “facções prisionais”, para as quais a prisão em tais condições não somente não é uma resposta, mas um fator de fortalecimento.

Portanto, o quadro de violação contínua de direitos fundamentais e humanos no sistema penitenciário consiste também em um problema de segurança pública.

E o que fazer? Não há solução fácil, e não basta reconhecer essas problemáticas; é imperativo compreender suas raízes e propor soluções embasadas em evidências concretas e resultados mensuráveis.

Superlotação do sistema prisional

O ponto que merece maior reflexão, pois é, de certa forma, pano de fundo para os demais, diz respeito à relação entre população carcerária e o número de vagas disponíveis.

Os dados oficiais são alarmantes e exigem enfrentamento objetivo. Segundo informações da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), referentes ao primeiro semestre de 2024, o Brasil abriga 663.906 pessoas em celas físicas, ou seja, sem levar em conta pessoas em cumprimento de regime aberto ou em regime de monitoramento eletrônico, sendo capacidade oficial de apenas 448 mil vagas, resultando em uma taxa de superlotação de 136%.

Agrava esse cenário o fato de que 30% desses indivíduos são presos provisórios, em situação que desafia o princípio de que a liberdade é a regra e a prisão, a exceção. Em muitos casos, a prisão preventiva é aplicada de forma desproporcional, contrariando o princípio de que a liberdade deve ser a regra, conforme estabelecido pela Constituição.

O significativo volume de execuções penais em tramitação é observado por meio do Sistema Eletrônico de Execução Unificado (Seeu), o qual registra cerca de 1,2 milhão de processos de execução penal em tramitação nos tribunais de justiça e nos tribunais regionais federais. Esse número expressivo destaca o peso do sistema penal no Poder Judiciário e a importância de sua gestão eficiente [1].

A superlotação não é apenas um problema numérico; ela gera um efeito cascata que compromete as condições de saúde, segurança e dignidade dos presos e dos trabalhadores do sistema penitenciário. Além disso, a falta de infraestrutura adequada dificulta a implementação de atividades de inclusão como educação e trabalho, fundamentais para a reintegração social.

Seletividade penal e desigualdade social

Os dados do sistema prisional brasileiro também evidenciam a seletividade penal, que recai predominantemente sobre grupos sociais historicamente vulnerabilizados. Os números indicam a predominância de indivíduos autodeclarados pardos no sistema prisional, seguidos pelas categorias preta e branca. Essa configuração reflete o impacto das desigualdades estruturais e históricas no país, em que grupos raciais marginalizados compõem a grande maioria da população carcerária.

A totalização dos números por cor de pele, raça ou etnia no sistema prisional brasileiro revela os seguintes dados: há (i) 178.330 homens e 9.054 mulheres brancos, totalizando 187.384 pessoas; (ii) 99.980 homens e 3.819 mulheres pretos, somando 103.799 indivíduos; (iii) 306.571 homens e 14.250 mulheres pardos, alcançando um total de 320.821 pessoas; (iv) 5.749 homens e 214 mulheres amarelos, com um total de 5.963 indivíduos; (v) 1.345 homens e 91 mulheres indígenas, totalizando 1.436 pessoas; e (vi) 33.114 homens e 1.172 mulheres cuja raça ou etnia não foi informada, resultando em um total de 34.286 pessoas [2].

Esses dados evidenciam como a categoria parda constitui mais de 50% do total, reforçando o argumento de que as prisões brasileiras são o reflexo de uma maior concentração da persecução policial e penal sobre essa parcela da população. Além disso, a presença significativa de pessoas autodeclaradas negras, somando pretos e pardos, ultrapassa amplamente a de brancos, uma disparidade que requer análise detalhada e políticas públicas inclusivas.

Extrai-se também do relatório que a maioria é composta por homens jovens, de baixa escolaridade. A análise dos números revela que a maioria das pessoas privadas de liberdade está concentrada entre as idades de 18 a 45 anos, com destaque para os grupos de 18 a 24 anos e de 25 a 29 anos, os quais apresentam os maiores contingentes [3]. A alta concentração de pessoas encarceradas em idades economicamente ativas (18 a 45 anos) suscita reflexões sobre os impactos socioeconômicos e familiares do encarceramento em massa. Estes números reforçam a ideia de que o sistema prisional brasileiro atinge de maneira mais severa indivíduos que estão em fases produtivas de suas vidas, perpetuando ciclos de exclusão social.

Mais da metade (54,95%) da população carcerária tem como maior grau de instrução o ensino fundamental (completo ou incompleto).

A totalização por grau de instrução no sistema prisional brasileiro apresenta os seguintes dados: (i) 15.170 pessoas são analfabetas; (ii) 22.933 são alfabetizadas, mas sem cursos regulares; (iii) 290.754 possuem o ensino fundamental incompleto; (iv) 73.889 completaram o ensino fundamental; (v) 112.849 têm o ensino médio incompleto; (vi) 87.713 concluíram o ensino médio; (vii) 8.601 possuem ensino superior incompleto; (viii) 5.336 concluíram o ensino superior; (ix) 288 possuem grau de instrução acima do superior completo; e (x) 36.755 não tiveram o grau de instrução informado [4].

Esses dados sugerem que o sistema prisional, dessa forma construído e considerando a idade média da população carcerária, pode indicar a relação entre criminalidade e o aumento de evasão escolar, perpetuando obstáculos na busca por oportunidades de uma vida melhor e atingindo predominantemente a população mais pobre.

Condições indignas nas unidades prisionais

As condições de diversas unidades prisionais no Brasil são amplamente reconhecidas como degradantes. Inspeções realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e relatórios do Cadastro Nacional de Inspeções em Estabelecimentos Prisionais (CNIEP), destacam problemas como a falta de ventilação, alimentação inadequada, insalubridade e o descumprimento de normas mínimas de segurança.

Continua na parte 2

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[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Painel de Dados do Sistema Prisional Brasileiro. Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=f8f79a16-35a2-43fe-a751-34ba131ffc1f&sheet=74a59799-5069-461d-a546-91259016a931&lang=pt-BR&opt=currsel. Acesso em: 8 dez. 2024.

[2] SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS. Relatório de Informações Penitenciárias (RELIPEN): Dados estatísticos do sistema prisional, 16º ciclo SISDEPEN – Período de referência: Janeiro a Junho de 2024. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2024. Página 86.

[3] SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS. Relatório de Informações Penitenciárias (RELIPEN): Dados estatísticos do sistema prisional, 16º ciclo SISDEPEN – Período de referência: Janeiro a Junho de 2024. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2024. Página 86.

[4] SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS. Relatório de Informações Penitenciárias (RELIPEN): Dados estatísticos do sistema prisional, 16º ciclo SISDEPEN – Período de referência: Janeiro a Junho de 2024. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2024. Página 89

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