Opinião

Entre justiça ordinária e arbitragem: novas e antigas tendências europeias na resolução de disputas

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  • é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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12 de dezembro de 2024, 6h01

A jurisdição arbitral é um instrumento amplamente utilizado geralmente por grandes empresas para resolver disputas de maneira rápida e confidencial, tentando evitar — principalmente — a duração dos processos judiciais tradicionais.

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A arbitragem (como a Alternative Dispote Resolution ou ADR em geral) se propõe de oferecer inúmeras vantagens, como a flexibilidade processual, a possibilidade de escolha de árbitros especializados em áreas específicas e a confidencialidade, que é particularmente valiosa para empresas que desejam evitar publicidade negativa ou a exposição de informações estratégicas [1].

Nos últimos anos, no entanto, surgiram várias críticas relacionadas à independência e imparcialidade dos árbitros. Grandes empresas, em especial, vêm demonstrando crescente preocupação com a vulnerabilidade do sistema arbitral frente a possíveis conflitos de interesse ou pressões indevidas [2].

Em particular, uma das maiores dificuldades reside na independência efetiva dos árbitros. Ao contrário dos juízes dos tribunais estatais, os árbitros são frequentemente profissionais do setor privado (advogados, consultores, acadêmicos) e podem ser escolhidos diretamente pelas partes envolvidas na disputa. Esse sistema, embora permita a seleção de figuras profissionais altamente especializadas, também pode abrir margem para situações de conflito de interesse. Por exemplo, um árbitro pode ter relacionamentos prévios com uma das partes ou pode esperar ser escolhido para futuras arbitragens, o que pode comprometer sua imparcialidade.

Além disso, os árbitros nem sempre estão sujeitos a critérios rigorosos de impedimento e suspeição como os Juízes (dependendo das jurisdições) [3]. Temem-se que alguns árbitros possuam interesses econômicos ou pessoais que dificultem sua atuação objetiva e imparcial, e que nem sempre seja possível garantir uma revisão eficaz das decisões arbitrais, dada a natureza autônoma e “definitiva” da arbitragem.

Diante disso, as grandes empresas encontram-se em uma posição delicada: se, por um lado, a arbitragem representa uma alternativa valiosa aos tribunais ordinários (frequentemente oberados de casos de varia natureza); por outro lado, existe o risco concreto de que o próprio processo arbitral possa apresentar uma qualquer patologia que — para ser resolvida — precisa voltar á Justiça Ordinária (ex. ação de declaratória de nulidade da sentença arbitral, liminares, etc.).

Discute-se muito, portanto, sobre possíveis reformas ou aprimoramento do sistema arbitral, por exemplo através da criação de critérios mais rigorosos — sobretudo — para a seleção de árbitros, incluindo i) verificações aprofundadas para evitar conflitos de interesse e assegurar que os árbitros sejam realmente imparciais; (ii) a implementação de códigos de ética mais rígidos; (iii) a previsão de sanções severas contra comportamentos antiéticos; (iv) a possibilidade de submeter decisões arbitrais a uma revisão externa (como eventuais organismos de supervisão independentes); (v) a responsabilização da própria Câmera Arbitral, etc. [4]

Apesar destas necessidades de aprimoramento, o sistema arbitral representa um instrumento valioso e precioso para resolução das controvérsias sobretudo internacionais. Pensa-se, não unicamente á possibilidade de escolha de profissionais alta e tecnicamente especializados na matéria objeto da disputa, mas também á possibilidade de escolher um idioma “conhecido” [5], incluindo princípios internacionais uniformes e o respeito de todas as garantias constitucionais “aplicáveis” , além da ampla escolha de jurisdições assinalarias da Convenção de Nova York de 1958 para a execução da sentença [6].

Apesar dessas necessidades de aprimoramento, o sistema arbitral representa um instrumento valioso e essencial para a resolução de controvérsias, especialmente no âmbito internacional. Não se trata apenas da possibilidade de escolha de profissionais altamente especializados e tecnicamente competentes na matéria objeto da disputa, mas também da escolha de um idioma “conhecido”, da inclusão de princípios internacionais uniformes e do respeito a todas as garantias constitucionais aplicáveis, através da escolha do direito aplicável. Além disso, o sistema da Convenção de Nova York de 1958 — pelo altíssimo numero de países signatários — oferece uma ampla seleção de jurisdições para a execução das sentenças arbitrais.

Esse modelo é tão consolidado e apreciado que parece que até o Judiciário ordinário de certos países busca “copiar” e “oferecer” — dentro do próprio sistema — soluções e modelos semelhantes ao procedimento arbitral, apresentando, paradoxalmente, um sistema alternativo àquele que já se configurava como alternativa ao próprio Judiciário.

Modelos

Na Europa, por exemplo, o cenário judicial para litígios comerciais está passando por rápidas transformações. Vários países da União Europeia estão criando tribunais internacionais de negócios ou já implementaram essas cortes recentemente. Em particular, nas últimas décadas, a Inglaterra e o País de Gales — veja-se especificamente o London Commercial Court (Tribunal Comercial de Londres) — tentam consolidar-se como jurisdição para resolução de disputas comerciais [7].

O Tribunal Comercial de Londres,  funcionando dentro da Divisão do Banco da Suprema Corte de Justiça da Inglaterra e País de Gales, lida com litígios relacionados a contratos comerciais, questões marítimas, comércio internacional, seguros e arbitragens, entre outros temas relevantes ao comércio global [8]. O fenômeno não é por nada isolado considerado que a maior parte dos Países Europeus estão também implementando soluções similares àquelas implementadas pelo Tribunal Comercial de Londres, propondo-se — até — como próprias alternativas não só à arbitragem mas ao próprio Tribunal Comercial de Londres.

O caso holandês merece, sem duvida, especifica menção, sendo que planos para o estabelecimento de um Tribunal Comercial dos Países Baixos foram iniciados desde 2003, e completados em 2019 com a entrada em vigor do Netherlands Comercial Court (NCC), abordando dois pontos principais. O primeiro diz respeito ao uso do inglês nos processos e nas decisões da NCC. O segundo ponto abordado pela legislação da NCC envolve as taxas judiciais. O objetivo é que a NCC seja básica e financeiramente autossustentável, tornando os custos destes tribunais competitivos respeito a outras jurisdições, incluindo aquela arbitral [9].

Da mesma forma, cita-se a existência de sistemas análogos na Alemanha, com a criação — em cidades específicas, como Stuttgart e Mannheim — de seções especiais denominadas Commercial Courts. Essas seções são voltadas exclusivamente para a resolução de disputas comerciais internacionais, nas quais o idioma inglês é reconhecido como língua oficial do processo. Vários aspectos dos Commercial Courts são semelhantes aos procedimentos arbitrais e visam atrair partes internacionais, contando todavia com juízes especializados em direito empresarial e, muitas vezes, com experiência internacional [10].

Na  França, foi estabelecido em 2018 o Centro Internacional de Comércio do Tribunal de Apelação de Paris (ICCP-CA), como divisão da Seção Econômica do Tribunal de Apelação de Paris. Esse tribunal internacional traz abordagem diferente para a resolução de disputas internacionais, baseando-se nas regras processuais já existentes, mas adotando uma perspectiva mais funcional. É admitido o uso da língua inglesa perante o tribunal, permitindo que as partes apresentem documentos, em inglês. No entanto, os procedimentos em si continuam sendo conduzidos em francês, e as sentenças ainda são proferidas em francês. Contudo, as partes podem solicitar uma tradução certificada em inglês [11].

Na prática, a escolha entre a justiça ordinária e a arbitragem depende do contexto específico de cada caso. Contudo, é inegável que a corrida por soluções cada vez mais alinhadas ao Princípio do Acesso à Justiça tem gerado impactos positivos significativos. Essa tendência promove não apenas maior eficiência e proteção às grandes empresas, mas também assegura que os destinatários finais do direito — sejam eles consumidores, parceiros comerciais ou outras partes interessadas — tenham seus interesses resguardados. Assim, o cenário atual de competição entre os sistemas jurisdicionais e arbitrais tende a beneficiar ambos os lados da equação jurídica, contribuindo para um ambiente de negócios mais equilibrado e responsável

A arbitragem, sem dúvida, oferece umas vantagens que os tribunais nacionais — pela própria estrutura e regulamentação — não conseguem igualar: autonomia privada das partes, velocidade, flexibilidade, confidencialidade e escolha do idioma a ser utilizado e de um terreno imparcial para a resolução do conflito, por meio — exatamente — da definição da sede arbitral. Além disso, um dos grandes benefícios da arbitragem é o caráter vinculativo de suas decisões e a facilidade de sua execução, garantida pela Convenção de Nova York.

No entanto, os tribunais comerciais possuem vantagens específicas que, em determinados casos, podem prevalecer sobre aquelas oferecidas pela arbitragem. Os processos conduzidos nesses tribunais tendem a ser menos onerosos e mais céleres. Ademais, a autonomia conferida às partes na arbitragem nem sempre se traduz em um benefício absoluto, podendo gerar ineficiências, especialmente no que tange a patologias relacionadas aos próprios árbitros.

Além disso, a autonomia atribuída às partes e aos julgadores na arbitragem não está desvinculada do ordenamento jurídico como um todo, sendo imprescindível que o procedimento arbitral e a respectiva sentença respeitem o arcabouço das garantias constitucionais associadas ao Direito de Acesso à Justiça. O descumprimento desses parâmetros pode acarretar a inconstitucionalidade da própria decisão arbitral [12].

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[1] http://mediate.com/arbitration-mediation-and-conciliation-differences-and-similarities-from-an-international-and-italian-business-perspective/

[2] https://www.conjur.com.br/2023-out-08/apenas-27-grandes-empresas-usam-arbitragem-frequencia/

[3] Vejam-se, no caso do Brasil, os artts. 252 e 254 do Código de Processo Civil.

[4] Veja-se, por exemplo, as Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesse em Arbitragem Internacional, aprovadas pelo Conselho da IBA, de 25 de maio de 2024:

https://www.ibanet.org/document?id=Guidelines-Conflict-Interest-Portuguese-2024

[5] Cf. Art. 22 do Modelo de Arbitragem Internacional da UNCITRAL que funciona de paradigma aos outros modelos de Arbitragem em geral.

[6] Cf. GAILLARD, Emmanuel et alii. The Relationship of the New York Convention with Other Treaties and with Domestic Law / Enforcement of Arbitration Agreements and International Arbitral Awards – The New York Convention Practice, Cameron May, 69 (2008) – 2008

https://www.newyorkconvention.org

[7] https://www.gov.uk/courts-tribunals/commercial-court

[8] Cf. https://www.judiciary.uk/wp-content/uploads/2022/06/Commercial-Court-Guide-11th-edition.pdf

[9] Cf. BAUW, Eddy. Commercial Litigation in Europe in Transformation: the case of the Netherlands Commercial Court, in Erasmus Law Review, Issue 1, 2019.

[10] Cf. Handelsgerichte ou Wirtschaftsgerichte, dependendo da região. https://www.commercial-court.de/en/

[11] https://www.tribunal-de-commerce-de-paris.fr/en/chambre-internationale

[12] ABBOUD, Georges; SILVA, Francisco de Assis; GAVAZZONI, Antonio. Arbitragem Constitucional. São Paulo, RT, 2024.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

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