Código de Matrix: normas de competência e órgãos públicos
12 de dezembro de 2024, 9h17
No filme “Matrix”, o personagem Neo descobre que tudo ao redor — agentes, lugares e ações — são variações do código em que está inserido. A ilusão da irrealidade é superada por ele em etapas, após ingerir a pílula vermelha oferecida por Morpheus. Ela o ajuda a escapar da realidade virtual de Matrix e a enfrentar os desafios e as ameaças do mundo real.
No plano da organização administrativa do Estado há situações análogas. Órgãos públicos, cargos e competências formam as unidades básicas da semântica da organização administrativa. Em seu manejo comum entram em cena normas constitutivas e normas regulativas.
Nessa matrix organizatória — trazida à luz por agentes públicos investidos em competências, cargos e órgãos — esses três conceitos básicos da organização são usualmente apresentados de modo indistinto, sem diferenciação precisa e adequada delimitação de planos. Órgãos são conjuntos de competências? Cargos são conjuntos de competências? Competências são permissões ou obrigações jurídicas? O que distingue cargos, competências e órgãos públicos?
A vagueza e a circularidade das definições ocultam a complexidade da dinâmica da distribuição das competências na organização administrativa. Porém, nesse domínio, a única pílula vermelha disponível é a analítica conceitual oferecida pela teoria geral do direito. Antes dela, vale revisar brevemente o estágio atual do conceito de competência em direito administrativo brasileiro.
Competência administrativa: medida de poder/medida de dever ou nada disso?
Na doutrina administrativa, define-se usualmente competência como “conjunto de atribuições”, “feixe de atribuições”, “círculo de atribuições”, “conjunto de poderes e deveres públicos conferidos por lei a um órgão ou entidade para a emissão de atos ou para o desempenho de suas atividades”. [1]
Em todas essas definições, a expressão “conjunto de atribuições” é equivalente a “conjunto de poderes e deveres, prerrogativas e obrigações”. Mas o que isso significa? Para o mestre Celso Antonio Bandeira de Mello, que critica o conceito de competência como “feixe de poderes”, diante do caráter instrumental dos poderes conferidos a órgãos e entidades públicas e do caráter obrigatório da prossecução das competências, o correto seria empregar o conceito de poder-dever ou, melhor ainda, dever-poder para referir a situação de sujeição dos “titulares destas situações subjetivas”, pois “recebem suas competências para as exercerem em prol de terceiro: a coletividade que representam”.[2]
Portanto, para a doutrina nacional, ora a competência traduz um conjunto de poderes, ora traduz um conjunto de deveres institucionais, operacionalizados por poderes instrumentais, conferidos a órgãos ou entidades públicas para o desempenho da atividade administrativa e emissão dos correspondentes atos.
Nesse contexto, as competências nada mais significam do que situações subjetivas prescritas a órgãos e entidades e conformadoras de obrigações para os seus titulares, mesmo quando enunciadas sob a forma de permissões de agir. Esse é o entendimento amplamente majoritário hoje, o que não significa que seja enunciado de modo consistente e preciso.
No essencial, portanto, as competências administrativas são percebidas na doutrina brasileira como normas obrigacionais de conduta finalista dirigidas a órgãos e a entidades públicas, e aos seus titulares, que prescrevem deveres de prossecução obrigatória e ao mesmo tempo atribuem poderes instrumentais necessários ao atendimento dos referidos encargos ou deveres.
Crítica à teoria convencional
A partir das lições da teoria analítica do direito, a compreensão das normas de competência enunciadas pela doutrina do direito administrativo pode sofrer uma dupla crítica: inconsistência lógica e confusão de planos de análise.
A inconsistência lógica decorre da exaustividade e interdefinibilidade dos modos deônticos das normas de conduta. Há três — e apenas três — modos deônticos, segundo a teoria analítica do direito. Se afirmo, a partir de enunciados normativos, que uma conduta x é permitida, isso equivale a afirmar, perante o mesmo ordenamento, que a conduta x não é obrigatória e não é proibida ou vedada. O modo deôntico permissivo confere — em princípio — discricionariedade em agir e não agir, contrapondo-se ao modo deôntico proibitivo e impositivo. E, reversamente, se afirmo que uma conduta x é obrigatória, afirmo que a conduta x se contrapõe ao modo permissivo.
É certo que o legislador pode, na descrição das consequências da ação ou na identificação das hipóteses de aplicação, introduzir margens de discricionariedade em normas originalmente obrigatórias ou proibitivas, ou permitir uma avaliação contextual da extensão da discricionariedade em normas permissivas. Mas — observado apenas o operador deôntico — as normas jurídicas não podem assumir simultaneamente os modos deônticos de obrigação e permissão. Diante disso, os conceitos de “dever-poder” e “poder-dever” carecem de sentido lógico, pois remetem a considerações de natureza contextual e fática que transcendem a estrutura abstrata das proposições normativas.
A segunda crítica é ainda mais cortante. Na teoria geral do direito, especialmente depois dos trabalhos de H.L.A. Hart, Carlos Alchourrón/Eugenio Bulygin, e Jordi Ferrer Beltran [3], distinguem-se as normas de competência radicalmente das tradicionais normas de conduta. E, sobretudo, distingue-se as normas que estatuem a competência (normas que conferem poderes normativos ou normas de competência em sentido estrito) das normas que regulam o exercício da competência (normas que disciplinam o comportamento dos agentes em face das competências a exercer) [4] Estas últimas não são normas de competência, porém são elas que dominam a atenção da doutrina convencional.
As normas de competência são normas constitutivas que estabelecem como, quando, por quem e onde outras normas podem ser criadas, suspensas ou revogadas. Atribuem capacidade a sujeitos de direito para produzirem ou revogarem normas abstratas ou emitirem atos normativos concretos. Não se confundem com as normas de conduta, ou regulativas, que estabelecem proibições, obrigações ou faculdades relativamente a comportamentos ou ações preexistentes para pessoas jurídicas, ou para unidades patrimoniais ou morais sem personalidade, e indivíduos ou órgãos públicos.
As normas de conduta criadas a partir de normas de competência é que podem ligar condutas a sanções. Tais normas podem ser gerais (isto é, voltadas a destinatários indeterminados) ou individuais (dirigidas a destinatários determinados ou determináveis antecipadamente). Podem ainda adotar enunciados abstratos (referidos a um número indeterminado de ocorrências de aplicação) ou concretos (vinculados a uma ou mais determinadas aplicações da norma no espaço e no tempo).
A violação de normas de competência não significa a violação de obrigações ou permissões: quando descumpridas, as normas de competência simplesmente geram nulidade ou anulabilidade, isto é, o ato realizado não terá os efeitos jurídicos desejados. Para uns, em casos ainda mais graves, geram inexistência do ato normativo. As normas de competência não regulam comportamentos preexistentes a elas: disciplinam atividades logicamente dependentes delas, cuja possibilidade de realização é indissociável da sua disposição. Elas definem as condições necessárias para que algo seja considerado como tal (contrato, ato, regulamento, etc). [5]
No direito administrativo, por antonomásia, denomina-se agente competente, órgão competente, cargo competente, aquela unidade da organização pública habilitada a emitir decisões administrativas (em princípio, normas concretas e individuais) ou expedir regulamentos (em princípio, normas gerais e abstratas) sobre determinada matéria ou conjunto de matérias no âmbito da função administrativa. Mas essa habilitação não se confunde com o dever de agir, omitir ou qualquer proibição dos titulares permanentes ou eventuais desses órgãos (normas de conduta relacionadas ao exercício da competência).
A competência administrativa atribui a sujeito determinado a capacidade jurídica para criar, modificar ou revogar normas administrativas, e produzir fatos institucionais ou status normativos, cujo significado é regulado pelas próprias normas de competência e não preexiste a elas.
Competências e órgãos públicos
O órgão não se confunde com a competência. Órgão possui competência, mas não se confunde com ela. Competência é esfera abstrata e autorizada de emanação de atos normativos (concretos ou abstratos) e órgão é unidade de atuação indissociável da expressão volitiva da pessoa jurídica ou de unidade de atuação com identidade organizatória conforme normas de direito. Em outras palavras, a competência é desenhada no plano legal abstrato, ou dele decorre (via regulamento ou delegação); órgão é forma de expressão concreta da vontade estatal. [6]
O órgão concretiza a competência através de agentes titulares ou substitutos que deliberam, emitem decisões concretas, ou que produzem interações dinâmicas e relações com os demais órgãos da pessoa jurídica em que se encartam. Os agentes titulares ou substitutos dos órgãos exprimem com as suas decisões e atuação uma fração da vontade e da atividade do Estado por um processo de imputação legal.
Órgão é unidade formada por três componentes estruturais essenciais: normas de competência, normas de conduta (dirigidas aos titulares dos órgãos) e os próprios titulares regulados (objeto de normas de conduta voltadas a dinamizar a competência legal ou delegada do órgão em atividades determinadas).
Órgãos são instrumentos de ação, não recorte abstrato de esferas de ação ou de esfera de poderes e deveres. Órgãos são unidades de atuação, como expressamente o proclama a Lei 9784/99, e não unidades de competência. Se órgão fosse conceitualmente sinônimo de círculo de competência seria confundido com o conceito de cargo ou da própria competência e, assim, seria signo inapto para expressar o fenômeno da dinamização da vontade estatal.
Por outro lado, órgãos não são os indivíduos que titularizam as competências: os órgãos institucionalizam a manifestação da vontade estatal exercida por indivíduos que exprimem as competências em que foram investidos, e que atuam sob essa qualidade exclusivamente pela investidura orgânica.
Nesse sentido, órgãos são a síntese do abstrato (a competência) e do concreto (a vontade expressa dos titulares e substitutos investidos), sendo que estes indivíduos não atuam em nome próprio ou como pessoas físicas, mas como vocais de competências estatais. Órgãos são núcleos constitutivos de decisões administrativas. Por óbvio, órgão inativo e que não decide não é “unidade de atuação”. Órgãos são o contínuo dinâmico e real das decisões administrativas, não o conjunto abstrato e estático de normas de competência.
Assim definidas as normas de competência e os órgãos públicos talvez seja viável elaborar uma teoria geral das relações interorgânicas e compreender a matrix das competências no interior da organização administrativa. Delegação, avocação, substituição, coordenação, acordos procedimentais, conflitos de atribuição, transferência de competências decisórias e executivas, são temas que pressupõem uma adequada compreensão dos órgãos como unidades de atuação e dinamização da função administrativa. Temas cuja exploração aprofundada parece uma tarefa ainda incumprida pelo direito da organização administrativa no Brasil.
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[1] Esse uso conceitual é generalizado em alguns dos mais destacados manuais da disciplina, entre os quais refiro: DAL POZZO, Augusto Neves e ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024, p. 142; CABRAL, Flávio Garcial e SARAI, Leandro. Manual de direito administrativo. 3ª. Ed. São Paulo: Mizuno, 2024, p. 195-196. NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 4ª.ed, São Paulo: Atlas, 2014, p. 194. MARRARA, Thiago. Manual de Direito Administrativo, vol. I. São Paulo: Foco Jurídico, 2022, p. 108.
[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 36ª ed. Minas Gerais: Ed. Fórum, 2023, p.126-128.
[3] ALCHOURRÓN, Carlos e BULYGIN, Eugenio. Introducción a la Metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales (trans: Alchourrón C, Bulygin E) 5th reimpresión. Buenos Aires, Editorial Astrea, (tradução dos autores da obra Normative systems. Springer, New York, 1971)
[4] HART, H.L.A. O Conceito de Direito. Trad. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986; BELTRAN, Jordi Ferrer. Las normas de competencia. Un aspecto de la dinámica jurídica. Agencia Estatal Boletín Oficial del Estado, 2000; ALCHOURRÓN, Carlos e BULYGIN, Eugenio. Ob. cit, e o capítulo “Definiciones y Normas”, inserido no livro Análises lógico y Derecho, dos mesmos autores.
[5] Nesse sentido, a genial analogia de H.L.A. HART das regras constitutivas (regras de competência) com as regras do jogo de Xadrez. Segundo Hart, as normas constitutivas não disciplinam o jogo de xadrez, elas criam a própria possibilidade do jogo. (ob. cit, p. 38). Em verdade, ao lado das normas de conduta e das normas de competência, os sistemas jurídicos contemporâneos conhecem ampla variedade de disposições: normas interpretativas, normas de reenvio, normas sobre eficácia de normas, normas de solução de conflitos normativos, entre outras. Uniformizar toda essa variedade de normas em proposições hipotéticas de comportamento condicional é empobrecer — talvez demasiado — a compreensão da complexidade e heterogeneidade do sistema normativo.
[6] Este não é um entendimento novo. Sustentei a mesma orientação em vários estudos anteriores, alguns dos quais escritos há mais de uma década. Cf., por todos, MODESTO, Paulo. Legalidade e autovinculação da Administração Pública: pressupostos conceituais do contrato de autonomia no anteprojeto da nova lei de organização administrativa. In: Modesto, Paulo (org.) Nova Organização Administrativa: estudos sobre a proposta da Comissão de Especialistas constituída pelo governo federal para reforma da organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2009, p.150; 2ed, 2011, p.155. Ver, ainda, MODESTO, Paulo. Direito Administrativo da Experimentação: inovação e pragmatismo na gestão pública. São Paulo: Ed. Juspodium, 2024, p. 45-53 e 262-278.
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